Como nossa forma de comunicar pode sabotar nossos esforços*
Nas últimas duas décadas nossos costumes avançaram pelo menos um pouco no sentido de aceitação da homossexualidade, na luta contra o racismo, na igualdade de gêneros e no respeito às minorias de forma geral. Agora estamos assustadas com uma onda reacionária que dominou o país, propagando um discurso de ódio e intolerância com as minorias e com os movimentos sociais, ao ponto de pipocarem agressões homofóbicas, antifeministas e esquerdofóbicas por todo o lado. O que deu errado? Por quê as pessoas estão se opondo tão violentamente a mudanças que visam construir um mundo com mais tolerância e igualdade e sentem tamanho ódio por ativistas e pessoas que defendem a igualdade das mulheres, a igualdade de gêneros?
Em termos de conteúdo, nosso discurso pode ser muito diferente do da direita reacionária e conservadora, mas, pelo menos até o momento, tem sido idêntico na forma. “Eu tô certo, você está errado!” é a forma de comunicação preferida na civilização ocidental e nas suas esferas de influência desde o seu surgimento. Seja com nossas famílias, em nosso círculo de amizades, com nossas colegas de trabalho ou com uma pessoa estranha na rua, quando nos deparamos com uma discordância, somos ensinadas desde pequenas a argumentar, jamais a dialogar. Quando uma criança faz algo que pessoas adultas não aprovam, ela logo é posta em seu lugar: “Não pode!”, “Sua irresponsável!”, “Isso é errado!”. Ao invés de dialogarmos com ela para descobrir por que fez e o que estava tentando fazer com aquilo, somos impelidas (pela nossa própria criação) a demonstrar todas as formas em que elas erraram.
E nas nossas discussões sobre política e transformação social, agimos da mesma forma. Estamos sempre prontas para acusar e criticar, mas jamais para tentar compreender o que faz aquela pessoa pensar e agir daquele jeito, nem para expor nossos sentimentos e juntas tentarmos encontrar uma solução para nossos problemas. Quando fazemos isso sem ouvi-las e buscar a empatia, estamos negando a validade do seu ponto de vista, da sua vivência e tentando impor a nossa visão como a Verdade.
E isso parece não estar dando certo para ninguém.
Todo ataque, gera resistência.
Assim como a violência do Estado e do capitalismo gera resistência por parte das pessoas que lutam por liberdade e por um mundo com mais igualdade, quando agimos ou dizemos algo que outras pessoas interpretam como crítica, julgamento ou reprovação, é muito provável que surja resistência às mudanças que estamos tentando realizar. É normal ficar na defensiva durante um ataque, mesmo que argumentativo, e, dentro de um certo limite, isso é até mesmo saudável para não aceitarmos acriticamente tudo que nos dizem e sermos manipuladas.
Os últimos anos de avanços na igualdade social, como o maior acesso da população negra às universidades através das cotas, o empoderamento das mulheres para denunciar abusadores publicamente e a coragem de casais homoafetivos de demonstrar o seu amor em público, entre outros, trouxeram no seu encalço uma resistência feroz. Pessoas que se sentiram julgadas ou acusadas de serem machistas, racistas, homofóbicas, e todo mundo que se identificou com elas por ser parte de uma cultura que ainda propaga esses valores, ficaram na defensiva e ali se entrincheiraram. Isso colaborou com a polarização política que acabou levando Bolsonaro, Mourão e uma horda de reacionários ao Palácio do Planalto, o que agora pode pôr tudo a perder.
Ainda estamos presas a uma mentalidade de tentar realizar transformações acusando as outras pessoas de estarem erradas, e isso não está funcionando.
Quando abrimos mão do diálogo, a única forma de mudar o comportamento opressivo de outra pessoa é através do constrangimento ou do medo. Ou seja, através da ameaça de ostracização ou de uso da força. A ostracização não resolve o problema, apenas o afasta de nossos olhos. Por exemplo, ostracizar uma pessoa homofóbica não fará com que ela deixe de ser hostil a pessoas em relacionamentos homoafetivos, apenas fará com que ela faça isso longe de nossos olhos e de nossa esfera de influência – ou seja, empurramos o problema para outras pessoas.
Já a força não é uma forma eficaz de convencimento e de mudanças a longo prazo, principalmente se o que queremos é um mundo baseado no princípio da liberdade. O uso da força pode sim ser eficiente como defesa, para preservar a vida frente a uma ameaça. Se a polícia representa uma ameaça à liberdade e à vida das pessoas, a força pode ser útil para impedir o seu avanço, protegendo as pessoas da repressão. Se uma mulher está prestes a ser violentada por um homem, esfaqueá-lo pode ser uma forma eficaz de preservar a integridade física e mental dela. A ameaça de violência física também pode dissuadir um grupo fascista de cometer ataques homofóbicos e racistas, e a sabotagem pode proteger uma floresta do desmatamento iminente. Embora a força possa ser uma boa solução para ameaças imediatas à vida, não é a melhor solução a longo prazo.
“As pessoas foram treinadas a criticar, insultar e se comunicar de formas que distanciam as pessoas.”
— Marshall B. Rosenberg
Se forçamos alguém através do constrangimento, da coerção ou do medo de punição a fazer algo contra a sua vontade, essa pessoa voltará a fazer isso assim que enxergar uma oportunidade de fazê-lo sem sofrer retaliação. Se o número de pessoas constrangidas for grande, elas poderão fazer parte de um movimento reacionário.
Opondo-se a ideias, não a pessoas
Chamar alguém de fascista, machista, racista ou homofóbico pode fazer a gente se sentir bem, descarregar um pouco da nossa raiva e frustração e reforçar nosso sentimento de estarmos do lado da justiça e da liberdade. Mas vai ser pouco eficiente em transformar as ações dessa pessoa. Se ela luta por mudanças radicais, como nós, isso pode fazer com que se sinta inferiorizada, que não é boa ou pura o suficiente, e isso pode acabar imobilizando-a ou afastando-a do movimento. Se ela simpatiza com nossa luta, mas não é tão radical quanto nós, a probabilidade de afastá-la é ainda maior e poderemos ser taxadas de extremistas, reduzindo nosso apoio em grupos mais moderados. Por outro lado se ela for mais conservadora ou não for familiarizada com ideias mais radicais, ela pode acabar se identificando com os rótulos que impomos a elas, assumindo a pecha de antifeminista, de defensor dos direitos dos homens, passar falar de racismo invertido e outras formas de vitimismo.
Há uma diferença entre acusar alguém de “ser” racista e de ter agido de forma racista. O mesmo vale para o sexismo, a homofobia ou o fascismo. Essas opressões estão entranhadas dentro de nós e mesmo a pessoa mais esclarecida pode cometer atos machistas, racistas, sem ter consciência, mas isso não significa que ela pense que mulheres ou pessoas negras são inferiores ou que devem ser tratadas de forma diferente. Se em certo momento ela agiu de forma que consideramos opressora, se conversarmos sobre essa ação específica será mais fácil para nós dialogarmos abertamente e também para ela evitar realizar aquela mesma ação no futuro. Mas se a rotulamos como machista, racista, homofóbica, a congelamos no status de opressora, e será muito mais difícil para nós estabelecermos um diálogo com ela e mais difícil será para ela mudar, e portanto estaremos mais distantes do nosso objetivo de acabar com a opressão.
Se enxergamos as outras pessoas como iguais e não queremos oprimi-las, impondo nosso ponto de vista, a saída é estabelecer um diálogo. Para isso, precisamos ouvir e ser ouvidas, o que é muito raro hoje em dia. Realmente escutar nossa interlocutora não é ficar pensando, enquanto ela fala, em como retrucá-la, mas ouvir o que ela tem a dizer, tentar descobrir como ela está se sentindo e o que leva ela a se sentir assim. Muitas vezes, somente depois de ter certeza que você ouviu o que ela tinha a dizer, uma pessoa se abrirá para saber o que você sente, precisa e as mudanças que gostaria de ver. Precisamos aprender a discordar das ideias de alguém sem desumanizar a pessoa.
É improvável que conseguiremos resolver as disputas numa única conversa, mas mesmo que haja discordância é precioso mantermos os canais abertos para irmos compreendendo umas às outras e quem sabe um dia elas estarão prontas para atender nossos pedidos.
“O mundo não está dividido entre Oriente e Ocidente. Você é americana, eu sou iraniana, nós não nos conhecemos, mas conversamos e nos entendemos perfeitamente. A diferença entre você e seu governo é muito maior que a diferença entre você e eu. E a diferença entre eu e meu governo é muito maior que a diferença entre eu e você. E nossos governos são muito parecidos.”
— Marjane Satrapi, quadrinista iraniana.
Nem sempre é fácil manter um diálogo com quem pensa e fala coisas que ferem nossos princípios e valores. Fica mais fácil se mantivermos o foco em qual necessidade humana aquela pessoa está tentando proteger quando diz e pensa isso. Afinal, todas precisamos das mesmas coisas: sustento, segurança, liberdade, paz, compreensão, etc. É claro que manter esse tipo de diálogo demanda uma boa quantidade de disposição e energia e, por vezes, pode ser muito tentador mandar a pessoa catar coquinhos e seguir com nossa vida. Por essa razão, precisamos conhecer e respeitar nossos próprios limites. Se não estamos conseguindo manter um diálogo, temos que ter em mente que é sempre possível interrompê-lo e perguntar à outra pessoa se ela estaria disposta a continuar em outro momento. Também precisamos aprender a pedir ajuda quando necessário.
A fim de conseguirmos escutar alguém, precisamos nos sentir escutadas e para isso é importante ter pessoas em quem confiamos com quem podemos nos abrir e desabafar. Ao criar redes de pessoas que se escutam, começamos a criar uma cultura de diálogo. Essa cultura se faz muito necessária em uma conjuntura que, estimulada pelas redes sociais corporativas (Facebook, Instagram, etc.), facilita o bloqueio e a exclusão de pessoas de quem discordamos de nossas bolhas e da nossa própria existência digital.
Quem mais se beneficia do isolamento e da desintegração das comunidades é o Estado, o fascismo e qualquer grupo interessado em fazer perseguição política. Se queremos um mundo livre de opressão, precisamos encontrar formas não-coercitivas de criá-lo, senão estaremos reproduzindo as mesmas dinâmicas e estaremos portanto fadadas ao fracasso.
*Originalmente publicado por camaradas da revista Fagulha.