artigo: ANARQUIA EM TEMPOS DE CRISE E DE DEMOCRACIA

presidiariosMuro

“As novas épocas não começam de repente.
Meu avô já vivia num tempo novo,
Meu neto com certeza ainda vai viver no antigo.
A carne nova é comida com os velhos garfos.”

Bertolt Brecht

O MURO

A cena é simbólica: no gramado da Esplanada dos Ministérios, presidiários erguem um muro de metal para separar manifestantes que vão acompanhar a votação do processo de Impeachment da presidente Dilma Rousseff no dia 17 de abril de 2016. Do lado direito, ficarão grupos pró-Impeachment, do lado esquerdo, os que defendem a continuidade do governo petista.

Quando comparada aos protestos e conflitos que tiveram essas ruas e esse gramado como palco nos últimos anos, tal cena parece um pouco perturbadora: em vez de marchar em direção aos palácios para atirar sua raiva contra seus portões e pressionar autoridades, manifestantes que querem um ou outro tipo de governo se preparam para assistir deputados decidindo sobre nosso futuro, divididos por baias como gado, para que não briguem entre si.

Os presidiários levantando o muro são vistos aqui como imagem de todas as pessoas que estão excluídas dos processos políticos em nossa sociedade e não poderão tomar partido ou expressar sua opinião nessa disputa. Seu verdadeiro papel talvez seja nos lembrar de que não importa quem fique no poder depois do processo de Impeachment: nada irá mudar a condição das classes excluídas e silenciadas. O mesmo se aplica ao homem de cinquenta anos que ateou fogo em si mesmo na frente do Palácio do Planalto e foi levado ao hospital com cerca de 70% do corpo queimado no exato dia em que o muro era erguido. Seu gesto se compara ao de Mohamed Bouazizi, tunisiano que se matou com gasolina e fogo em frente a um prédio público e foi o estopim das revoltas hoje conhecidas como Primavera Árabe. Ambos os atos denunciam a violência de uma sociedade que cala e isola indivíduos até que não sobre nada além da solidão e do desespero. Na impossibilidade de se encontrar com outros corpos para organizar a revolta, a opção é transformar o desespero em potência – com a diferença de que a do brasileiro não iniciou nenhum grande levante.

O cenário tem, portanto, os elementos chave para perceber o momento político do país: palácios intocados; um muro separando manifestantes que oferecem mais uma ameaça para si mesmos do que para as autoridades; e as pessoas que – por não poder ou não querer – não terão voz nesse teatro.

dia 17 de abril, durante a votação do Impeachment na Câmara.
dia 17 de abril, durante a votação do Impeachment na Câmara.

As ruas em disputa

Para entender de onde veio essa polarização, precisamos voltar um pouco no tempo. Em 2013, a situação era bem diferente em diversos contextos. Multidões incontroláveis marchavam de forma imprevisível para cercar e invadir os palácios do Poder Legislativo e do Governo Federal com pedras e coquetéis molotov. O protagonismo era autônomo e horizontal nas ruas de todo o país, rompendo com o silêncio imposto por uma década de governo do Partido dos Trabalhadores. Movimentos que traziam a bagagem das lutas antiglobalização do início dos anos 2000 inspiraram pessoas a tomarem as ruas em mais de 100 cidades do país contra o aumento das passagens no transporte urbano. A luta levou a uma vitória inédita dos novos movimentos sociais autônomos em escala nacional, com pessoas se organizando para além das formas tradicionais dos movimentos, partidos e sindicatos. A descrença nos processos democráticos e na classe política como um todo era ainda mais forte, o que indicava que essa seria a chance de novas formas de políticas autônomas e da ação direta se tornarem as principais alternativas – a chance que anarquistas sempre esperaram para difundir suas metodologias.

Por décadas, as elites no governo (inclusive as da esquerda partidária e sindical) colaboraram para esvaziar, descontextualizar e depreciar a ideia em torno de “fazer política”. Este fazer, que ficou resumido à prática institucional, recuperou seu real significado: as pessoas ocupando as ruas estavam fazendo política em cada gesto, em cada escolha, em cada afeto. As manifestações se transformaram em um corpo vivo proporcionando uma experiência intensa e potente de construção coletiva. Para muitas, aquela foi a primeira vez em que saíam de um campo “neutro” para demarcar uma posição, e elas nem sempre eram coesas: haviam vozes dissonantes e interesses diversos tanto em diálogo como em confronto e disputa.

20 de junho de 2013: faixas e mensagens contra o governo do PT e com um tom nacionalista eram vistas desde os primeiros protestos contra o aumento da passagem em São Paulo.

Essa potência coletiva também chamou a atenção das elites que brigam pelo poder do Estado. Essas elites passaram a construir estratégias para cooptar as multidões e oferecer as soluções que muitas delas desejavam mas ainda não organizavam, como as saída do PT do governo. Desde então, as ruas voltaram a ser o palco de intensas disputas políticas no Brasil, tanto para quem queria mudanças sociais radicais, como para quem queria uma renovação conservadora.

Após as eleições presidenciais de 2014, no entanto, o protagonismo desses movimentos autônomos nos protestos de rua foi ofuscado pela polarização entre a esquerda governista e uma nova direita que não aceita mais um mandato presidencial do PT. Essa última, iniciou a uma onda conservadora que deu apoio e legitimidade para que políticos membros das classes mais conservadoras e oligárquicas finalmente conseguissem tirar, o PT do poder através do Impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 e colocassem em seu lugar o seu vice-presidente, Michel Temer, encabeçando o governo mais conservador e reacionário das últimas décadas. Assim, a crise política que tomou o Brasil, principalmente após os escândalos de corrupção envolvendo os governos de Lula e Dilma, foi útil para ascensão de uma nova direita nas ruas e o fortalecimento dos partidos tradicionalmente conservadores que estavam sedentos por voltar ao topo do poder. Por um momento, esses grupos tornaram-se os mais fortes atores nas ruas. Somente após o afastamento da presidente, quando em que vimos direitos básicos e movimentos sociais na mira do novo governo temporário de Michel Temer, lutas populares retomam sua força para resistir ao declínio da democracia brasileira, expandindo as ocupações de escolas iniciadas por secundaristas no fim de 2015 e ocupando prédios ligados ao Ministério da Cultura.

junho de 2013: 60 mil pessoas cercam o Palácio do Itamaraty com uma mensagem muito mais empoderada.

Os levantes não respeitam fronteiras – e a reação também?

Esse fenômeno, com movimentos de direita emergindo logo após agitações populares, não é um problema só do contexto brasileiro. É preciso analisar a conjuntura local com olhos atentos ao contexto internacional. Da Venezuela à Ucrânia, da Grécia aos Estado Unidos, grandes momentos de agitação popular levaram pessoas às ruas nos últimos anos e tornaram manifestações e ocupações de espaços públicos uma ferramenta atraente. Podemos notar que, após a onda mundial de levantes iniciados em 2011 com a Primavera Árabe, onde o caráter autônomo, radical e horizontal se tornou relevante, observamos que movimentos de direita e de extrema-direita, em diferentes países, se sentiram mais à vontade para aproveitar a revolta popular para ir às ruas difundir suas agendas.

Enquanto multidões gritam pelo Impeachment da presidente Dilma Rousseeff linchando quem usa vermelho ou tem “cara de esquerdista”, Donald Trump chama atenção e conquista apoio de milhões de pessoas nas eleições presidenciais nos Estados Unidos com uma campanha neoliberal, abertamente anti-imigrante e cheia de declarações racistas e sexistas. Tudo isso menos de um ano depois que o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) se espalhou pelo país em resposta aos constantes assassinatos de jovens negros por policiais brancos. No Egito, os levantes que levaram à queda da ditadura de Mohamed Morsi, abriram caminho para que um golpe militar se instalasse no país, com um poder tão ou mais totalitário que a ditadura anterior. Na Grécia, a desilusão com a esquerda, que chegou ao poder com uma campanha de anti-austeridade em 2014 para rapidamente trair quem votou em seu candidato, abriu espaço para que partidos da extrema direita se fortalecessem usando a mesma pauta. Na Ucrânia, protestos que começaram em 2014 ocupando praças como fizeram manifestantes na Primavera Árabe ou nas centenas de cidade que aderiram ao movimento Occupy, deram lugar a confrontos de enormes proporções protagonizados por neo-nazistas e todo tipo de fascistas contra a polícia. E logo o resultado foi o início de uma guerra civil separatista de caráter nacionalista.

Onde há muros, há o que esconder.
Onde há muros, há o que esconder.

Tendo isso em mente, olhamos para as vitórias de 2013 como uma lição com acertos que fortaleceram os movimentos autônomos, mas também erros que abriram caminho para a regeneração da direita e do conservadorismo. Foi possível convidar novas pessoas para uma forma diferente de fazer protestos com mobilização horizontal a apartidária, conquistando uma vitória inédita em forma e dimensão. Mas mesmo sentindo a necessidade de ampliar as pautas, não foi possível expandir a luta para além de demandas do transporte coletivo, que apenas reformam o Capitalismo. Não conseguimos impedir que parte das pessoas que convidamos para as ruas se interessassem pelos discursos da direita. Quando convidamos a população para nos organizar de forma apartidária, fortalecendo estratégias que não buscam a via eleitoral, por exemplo, encontramos milhares de pessoas que, como dito acima, já estavam descrentes em partidos e na política institucional. Mas grupos de direita também combatiam a presença de partidos políticos nas ruas e ganharam a simpatia de mutias pessoas com sua versão de “apartidarismo” – ou melhor, partido único fascista – como solução para a corrupção e outros “males da sociedade”.

Os novos “movimentos sociais” conservadores e partidos de direita usam a corrupção generalizada da democracia brasileira como uma forma de criar vilões específicos, como se a elite política e econômica pudesse ser dividida entre “corruptos” e “honestos”. Valores vagos, moralistas e que mantêm o debate afastado do que realmente importa: a opressão sistemática das classes pobres e populações periféricas e minoritárias. Esse discurso que, com ajuda da mídia, clama por punição aos corruptos que não fazem parte das alianças dos grupos mais poderosos e a prisão comum para o menor de idade que roubou um celular, ainda parece propor uma agenda atraente atraente para a população. Com um discurso imediatista, medidas de impacto a curto prazo e narrativas que mexem com os medos e inseguranças do cidadão médio urbano, a direita conseguiu avançar e convidar milhões para as ruas contra a corrupção, mas apenas a praticada pelo Partido dos Trabalhadores. Todos os outros partidos, inclusive o dos proponentes do Impeachment, que possuem processos abertos em casos de corrupção e outros crimes, saem ilesos desse teatro.

Devemos refletir sobre os diferentes eventos que acompanhamos em todo o país desde os levantes de 2013 e o que eles têm a nos ensinar. Toda vez que protestos começarem a surgir em diferentes cidades, em regiões onde há muito tempo não acontece algo do tipo, é possível que as pessoas se juntem em massa às mobilizações sociais. Mas cada indivíduo ou grupo terá seus próprios motivos para expressar sua revolta. E talvez eles não tenham nenhum objetivo claro ainda, ou objetivos bem diferentes dos nossos enquanto anticapitalistas. Se quisermos convidar ou inspirar as pessoas a agir, devemos cuidar para que não apenas nossos métodos ou estratégias sejam inspiradores. Porque eles mostram o que é possível fazer através da ação direta, com organização, autonomia e poder social. Para ir além, devemos mostrar que é possível querer ou desejar outra sociedade, outra vida. Qualquer pessoa pode organizar uma marcha, bloquear uma via, iniciar um movimento, ocupar uma praça por meses até lutar com a polícia para conseguir seus objetivos. O desafio é fazer isso de uma forma que distribua nosso poder coletivo e não fortaleçam relações ou instituições que concentram o poder na mão de poucos.

Manifestantes na Av. Paulista contra Dilma, em março de 2016

Da crise em diante

Momentos de crise podem dar lugar a lutas e reformas que vão aliviar tensões do sistema, mas também podem abrir a oportunidade para explorar outras saídas radicalmente diferentes. Cabe a nós analisar nossos passos nesse últimos anos, entendermos que não somos as únicas pessoas propondo soluções e compreender que que tipo de crise vivemos para antecipar que tipo de soluções o Estado e os capitalistas vão tentar nos impor. Não devemos esperar as mesmas dinâmicas favoráveis da mesma forma agora, ou nos próximos anos. Estamos diante de um novo cenário. Não somos mais uma surpresa para o Estado e nem a mais atraente novidade para a população, como foi em 2013. E tanto a esquerda partidária e autoritária quanto a direita em sua pior roupagem despertaram inspiradas pelas vitórias dos movimentos autônomos para disputar o protagonismo das lutas sociais.

Diferentemente dessa direita que emerge logo após nossas revoltas populares, não queremos reformas que garantam os privilégios das classe médias e altas enquanto esmagam ainda mais as classes baixas, as periferias urbanas, as populações negras e LGBTTQ, assim como indígenas e imigrantes. Divergimos também da esquerda autoritária e/ou partidária descolada quando ela quer reformas que custam nossa autonomia, abrindo mão de nos organizar e desenvolver nossas capacidade de construção coletiva para eleger alguém que “nos represente de verdade”, para “mudar o sistema de dentro”. Não queremos eleger outro “herói” ou “heroína” do povo, não queremos ninguém da nossa classe, cor ou gênero no controle das instituições que nos oprimem. Pois sabemos que, para governar, eles precisam levar junto a elite que não vai abrir mão de seu poder econômico e sua influência obscura sobre toda a classe política, da direita à esquerda.

Queremos desenvolver nossas habilidades e nosso poder de nos organizar para além dessas instituições, torná-las obsoletas e destituí-las de uma vez por todas de seu poder. Autonomia, autogestão, horizontalidade não são apenas “estilos” de se fazer política, hashtags ou palavras estilosas que se tornaram populares recentemente. São formas de luta que espelham o fim que buscamos: sociedades livres, autônomas, autogeridas e horizontais. Para que não haja muros entre nós, minorias excluídas e nem palácios intocados.

Estaremos aqui, mesmo se ninguém convidar.