Organizar-se nunca quis dizer filiar-se numa mesma organização. Organizar-se é agir segundo uma percepção comum, seja a que nível for. Ora, o que faz falta à situação não é a “cólera das pessoas” ou a penúria, não é a boa vontade dos militantes nem a difusão da consciência crítica, nem mesmo a multiplicação do gesto anarquista. O que nos falta é uma percepção partilhada da situação. Sem essa comunicação, os gestos apagam-se no nadae sem deixar vestígios, as vidas têm a textura dos sonhos e as sublevações terminam nos livros escolares.”
“À Nos Amis”, Comité Invisível, 2014
Em outubro de 2013, ainda inspirados pelas lutas de junho, protestos e greves de professorxs da rede pública aconteciam simultaneamente no Rio de Janeiro e em São paulo. Em um deles, multidões atacaram a Polícia Militar em frente à Secretaria de Educação de São Paulo e dispersaram depredando bancos, lojas e destruindo uma viatura da Polícia Civil no centro da cidade. Horas depois, na mesma noite, duas pessoas que estavam fotografando o evento foram presas por policiais civis.
Com elxs não foi encontrado nenhuma prova consistente de sua participação além de uma câmera com fotos do protesto e uma capsula gás-lacrimogêneo deflagrada que encontraram no chão. Mesmo assim, foram sequestradas, torturadas física e psicologicamente, além de terem suas casas invadidas sem mandado e saqueadas pelos agentes. No momento da prisão o delegado responsável já declarou que seriam processadas pela Lei de Segurança Nacional, criada ainda na época da Ditadura Civil-Militar brasileira e que tipifica “depredar, provocar explosão ou incendiar para manifestar inconformismo político ou manter organizações subversivas”. A prisão causou repercussão pelo exagero em se usar uma lei anti-terrorismo que leva pessoas comuns a serem julgadas por um tribunal militar – o que não foi usado nem nos casos de uma série ataques cometidos por facções criminosas que mataram dezenas de policiais em São Paulo em 2006. Em dois dias um juiz decretou que respondessem ao processo em liberdade, mas ainda seguem correndo o risco de pegarem até 25 anos de prisão.
No dia seguinte à liberação das duas pessoas presas, o DEIC (Departamento Estadual de Investigações Criminais de SP) usou esse caso onde a Lei de Segurança Nacional foi acionada para abrir uma investigação que enquadra a tática Black Bloc como uma prática de associação criminosa, coordenada nacionalmente por uma grande quadrilha e não como delitos isolados a serem julgados individualmente. Fica óbvio que toda a operação foi uma montagem para se abrir uma investigação para mapear e criminalizar participantes de protestos e movimentos sociais em todo o país. Na época, queriam intimidar qualquer mobilização que viesse a atrapalhar a Copa do Mundo de 2014. O caso ficou conhecido também como “Inquérito Black Bloc, foi levado sob sigilo numa coordenação entre as Polícias, Secretarias de Seguranças de São Paulo e do Rio de Janeiro junto com o Ministério Público.
O desespero de um Estado frente a ameaça de uma difusão de táticas e ações insurrecionárias justifica o uso de qualquer recurso disponível para neutralizar o inimigo interno. Inúmeros casos no mundo inteiro, do Chile à Grécia, mostram um mesmo padrão na criação de montagens e mentiras pelo Estado. Mas nesse episódio que descrevemos há dois pontos muito particulares a serem analisados.
Primeiramente, o Inquérito Black Bloc parte do pressuposto de que uma tática que se tornou comum em quase todas as cidades onde houveram protestos não pode ser uma série de ações isoladas e espontâneas. Ou os agentes do Estado são realmente estúpidos e não conseguem entender uma forma de agir decentralizada e que não responde ou é “financiada” por um órgão central, ou eles sabem que isso é perfeitamente possível e preferem afirmar que há uma organização nacional instruindo formando pessoas para realizar os ataques. A segunda é especialmente útil para justificar penas mais severas aplicadas contra manifestantes, como o de formação de quadrilha. E é claro que o espetáculo midiático e um perfil criminoso criado pela polícia ajudou na propaganda da imagem do Black Bloc. Mas precisamos reconhecer que a rápida difusão da tática, seus modos de agir no anonimato, em pequenos grupos de afinidade independentes passaram muito bem a mensagem: “somos muitas pessoas indignadas, estamos nos encontrando, não aceitaremos a violência da polícia de braços cruzados, vamos apoiar e ter apoio de quem também deseja um mundo livre, não gostamos de bancos, lojas e seus bens de consumo”.
O Estado reconhece seu medo diante de um inimigo que, mesmo se dizendo decentralizado e sem lideranças, ainda demonstra grande eficiência para difundir seus métodos, sua mensagem, sua postura de enfrentamento e ainda sair impune. Esse é sem dúvida o maior elogio que pode ser feito a uma tática anarquista – que para a imensa maioria daquelxs que usaram dela, ainda segue sendo um crime perfeito, sem provas, rastros ou punições para suas ações ilegais.
Houveram debates acalorados e conflituosos quando o assunto era se posicionar quanto a presença de Black Blocs nos protestos. Se por um lado funcionou muito bem quando apoiaram protestos contra professores no Rio de Janeiro e se juntaram ao resgate de animais em um laboratório no interior de São Paulo, por outro os grupos Black Blocs foram explicitamente banidos de marchas de movimentos como os de trabalhadorxs sem-teto. E isso não necessariamente significa que estes sejam movimentos pacifistas ou que estejam sendo arrogantes. Quando preciso, entram em confronto com o Estado e nem sequer usam máscaras para tal, como foi no fim de abril de 2014 quando tentaram invadir e depredar a Câmara Municipal de São Paulo quando vereadores suspenderam a votação do Plano Diretor Estratégico, que determina como acontece o crescimento e a ocupação da cidade. Não entender que muitos movimentos simplesmente não precisam uma “ajuda” seria a verdadeira arrogância, além de cair num proselitismo imaturo e numa confiança exagerada em uma tática sem respeitar os métodos das outras pessoas em outras lutas.
Não precisamos entrar agora no mérito do embate entre princípios da não-violência e da diversidade de táticas dentro da esquerda, ou da direita pacifista que esteve nas ruas também em 2013. Mas vamos considerar que mesmo pessoas e grupos de esquerda que reconhecem a necessidade da auto-defesa violenta muitas vezes tiveram incômodos ou atritos com aquelas adeptas da tática Black Bloc desde 2013. Seja por ser difícil dialogar com seus membros sobre os objetivos de marchas específicas ou até mesmo por conta da performance masculinista e machista de muitos de seus membros.
Longe de ser um movimento social ou um modelo para qualquer coisa, Black Bloc é apenas uma tática que nos fez refletir sobre toda nossa ação. Uma tática anarquista que ficou conhecida em um momento do país no qual o anarquismo não era amplamente difundido, e que passou a ser o maior difusor de slogans e imagens, ocupando por meses as manchetes dos jornais como figura central dos protestos. Era comum ouvir nas ruas ou na mídia a associação mútua entre anarquismo e táticas Black Bloc. Importante salientar que muitas pessoas participaram pela primeira vez de protestos políticos através das ações Black Blocs, o que foi comprovado pela vivência nas ruas, por pesquisas realizadas nos atos e pela notável e massiva presença de adolescentes adotando a sua prática. Se havia um desencontro entre os movimentos autônomos e anarquistas com a nova geração que começava sua vida política através dessas táticas, a responsabilidade também recai sobre gerações mais velhas que até então não difundiram tão bem o debate e sua bagagem em lutas sociais radicais.
Além disso, uma ampla diversidade de pessoas que não se encaixam nas fileiras dos novos movimentos sociais autônomos que estavam a frente das lutas de junho de 2013, seja por não querer ou não poder, se juntou às manifestações através dos Black Blocs. Num momento de vazio político, passividade, cooptação dos movimentos e organizações sociais, de descrença e isolamento individuais, é muito positivo que uma tática anarquista tenha unido pessoas e suas potências para mostrar na prática que os maiores inimigos do povo e a liberdade são a polícia, o Estado e a elite econômica.
A ação anônima, entre afinidades, imediata e espontânea pode ser uma das poucas formas realmente participativas e disponíveis para poder agir sobre a realidade sem ser apenas a “base” organizada por universitários e seu senso de militância. Vestir máscaras e atirar de volta seu ódio nas ruas foi talvez a única forma de tornar visível a presença de corpos que ainda permanecem invisíveis no tano cotidiano da vida comum e quanto nos meios ativistas. O que nos leva a considerar que o perfil compartilhado pela maioria dos membros dos núcleos duros dos movimentos de luta pelo transporte não está acessível para a maior parte da população que atuou nas ruas nos últimos anos: um perfil masculino, estudante, branco, cis-heterossexual, que mora perto do centro da cidade e que não precisa trabalhar em tempo integral e pode se dedicar a “militância” ou “trabalho de base”.
Finalmente, devemos analisar o significado do artigo 15 da Lei de Segurança Nacional de 1983 que prevê a pena de 3 a 10 anos para quem pratica sabotagem contra “instalações militares, meios de comunicações, veículos e vias de transporte, estaleiros, portos, aeroportos, fábricas, usinas, barragem, depósitos e outras instalações congêneres”. Ela segue uma lógica militar de proteger o que há de essencial para o funcionamento da economia: as infraestruturas que organizam a logística de seus recursos materiais e energéticos. Além de servir como punição exemplar e intimidadora para os movimentos sociais, o uso dessa lei nos indica qual é o verdadeiro medo e o verdadeiro ponto fraco desse sistema.
Precisamos admitir que as manifestações que nos últimos anos cercaram, atacaram ou ocuparam prédios do governo não causaram muito além de um transtorno momentâneo e que se um palácio for ocupado ou mesmo derrubado, basta os governantes encontrarem outros lugares de onde se organizar para controlar nossas vidas. Além disso, sabemos que o verdadeiro controle em nossa sociedade se dá fora dos palácios, câmaras e senados. Ela acontece em salas fechadas onde líderes não-eleitos das corporações e carteis decidem como a classe política vai governar em favor de seus interesses de mercado. Se queremos causar algum transtorno e ter nossas vozes ouvidas, não será segurando cartazes na frente de prédios, bloqueando uma rua ou uma avenida no fim da noite. Devemos considerar bloquear o fluxo massivo de matéria-prima, mercadorias, energia, força de trabalho e informação como algumas das poucas formas de realmente interromper o funcionamento desse sistema e chantagear seus chefes. Nosso entendimento compartilhado deve ser o de que devemos nos tornar a crise que queremos ver no Capitalismo, e aprender a viver dentro dela – não necessariamente nessa ordem.
As origens do Black Bloc enquanto tática, tal qual conhecemos hoje, remonta às lutas de resistência dos movimentos autônomos da Alemanha nos anos 80. Movimentos que defendiam ocupações e comunidades contra os despejos forçados pela polícia. Quando adotamos uma tática, é importante questionarmos a qual objetivo ela está servindo e em qual estratégia ela se encaixa. O que estamos defendendo quando marchamos ou lutamos nas ruas? Contra quem estamos lutando? Quem está ao nosso lado? Em um primeiro momento, esse tipo de ação radical pode ter sido adotada como uma válvula de escape para um grito entalado há tempos e a falta de objetivos ou senso de estratégia não torna menos importante o seu papel. Mas estar sempre apoiado no espontaneísmo pode fazer com que essa válvula de escape se torne justamente um alívio que nos permite voltar para o trabalho e para a miséria de nossos lares no dia seguinte. Assim como qualquer espetáculo, festa ou jogo de futebol. Ou pior, nossa tática pode se tornar tão inofensiva quanto previsível.
Também não parece interessante limitar nossa forma de ação a formas de ação dentro de protestos, ou seja, ações reativas provocadas por uma determinada conjuntura. Devemos nos organizar para criar as conjunturas específicas para as ações que queremos tomar. Uma vez que não há mais o fator surpresa e pessoas passam a organizar páginas do Facebook para o Black Bloc de cada cidade, fica cada vez mais fácil para o Estado exercer o controle, o isolamento e a repressão. E a tática que foi a porta de entrada para pessoas se envolverem em alguma ação política pode se tornar inviável novamente.
Uma noção compartilhada de quem são os inimigos, quem são nossxs amigxs, o que queremos e o que não queremos em um mundo livre foi a base para a difusão das táticas Black Bloc por todo o Brasil em poucas semanas. Como uma erva-daninha, ou seja, uma vegetação pioneira, ela pode ter aberto o caminho para que formas de organização mais complexas surjam junto a debates e ambições mais profundas. Inclusive sobre como usar certas táticas e a que elas servem. Mas isso ainda vamos descobrir nos próximos anos. O movimento alemão de ocupações que deu origem a sua forma clássica há três décadas atrás resiste até hoje em todo o mundo com os mesmos princípios: propriedade é um roubo, e se quisermos algo, devemos nos organizar para tomar, ocupar e resistir. Outras formas de ação surgem e se espalham. A primeira ZAD (Zona a Defender), começou no noroeste da França para proteger uma região que seria devastada pela construção de um aeroporto e deu origem a uma ocupação do território onde centenas de pessoas resistem e vivem plantando, produzindo e compartilhando o que precisam. Outras surgiram para impedir a construção de uma barragem no sudoeste e um complexo turístico nas florestas do sul da França. Hoje são dezenas delas para frustrar os interesses do governo e das empresas. Acolhem imigrantes, estimulam trocas e o apoio mútuo ao invés do uso do dinheiro e pretendem permanecer para deixar seu legado de resistência para as próximas gerações.
Muitas outras formas de entender e agir sobre o mundo ainda vão surgir. E muitos outros exemplos de resistência estão na luta que povos indígenas e quilombolas travam até hoje contra a expansão da sociedade em que vivemos e sua supremacia branca, urbana e industrial. Caberá a cada grupo saber fazer de seu lugar e tempo um campo fértil para novos experimentos. Seja ocupando ruas, praças ou territórios inteiros. Derrubando presidentes ou quebrando empresas. Para liberar o espaço e nossas vidas sem que o Capitalismo os tome de volta, vamos continuar a compartilhar nossas experiências e nossas noções sobre como alcançar nossos objetivos.
Para saber do caso e apoiar as duas pessoas presas na Lei de Segurança Nacional em 2013, acesse:
solidariedadelibertaria.noblogs.org