DA DEMOCRACIA À LIBERDADE – parte 1 de 4

CAPAwebNOTA: Esse texto faz parte de uma série e um debate internacional analisando a Democracia sob uma perspectiva anarquista. Para saber mais e participar, veja o final do artigo.

DA DEMOCRACIA À LIBERDADE

“O que é democracia?”
“Bem, eu nunca tive isso muito claro.
Como toda forma de governo, deve ter algo
 a ver com homens jovens matando-se uns aos outros, creio eu.”

– Johnny Got His Gun (1971)

Democracia é o ideal político mais universal de nossos dias: George Bush o usou para justificar a invasão do Iraque; Obama parabenizou os rebeldes da Praça Tahrir por levarem-na ao Egito; o movimento Occupy Wall Street alegou tê-la destilado em sua forma mais pura. Da República Popular Democrática da Coreia do Norte até a região autônoma de Rojava, praticamente todo governo e movimento popular diz ser democrático.

E qual é a cura para os problemas da democracia? Todo mundo concorda: mais democracia. Desde a virada do século, nós vimos uma enxurrada de novos movimentos que prometem a democracia real, em contraste com instituições ostensivamente democráticas que eles descrevem como elitistas, coercitivas e alienadoras. Existe um fio que une todos esses diferentes tipos de democracia? Qual delas é a real? Alguma delas pode nos dar a inclusão e a liberdade que nós associamos com essa palavra?

Nossas próprias experiências em movimentos que fizeram uso da chamada democracia direta nos convida a retornar a essas questões. A conclusão é de que os dramáticos desequilíbrios nos poderes políticos e econômicos que levou as pessoas às ruas de Nova Iorque a Sarajevo, de Istanbul a São Paulo, não são defeitos incidentais em democracias específicas, mas características estruturais que datam das próprias origens da democracia; elas aparecem em praticamente todo exemplo de governo democrático da história. A democracia representativa preservou todo o aparato burocrático que foi originalmente inventado para servir aos reis; a democracia direta tende a recriá-los em escalas menores, mesmo fora das estruturas formais do estado. Democracia não é o mesmo que auto-determinação.

fig-1Muitas coisas boas são regularmente descritas como democráticas. Esta não é uma argumentação contra discussões, coletivos, assembleias, redes, federações ou contra trabalhar com pessoas com as quais você nem sempre concorda. O argumento, ao invés disso, é que quando nós nos engajamos nessas práticas, se nós compreendemos o que estamos fazendo como democracia – como uma forma de governo participativo ao invés da prática coletiva de liberdade – então mais cedo ou mais tarde, iremos recriar todos os problemas associados com formas menos democráticas de governo. Isto vale tanto para a democracia representativa como para a democracia direta, e até mesmo para processos de consenso.

Ao invés de celebrarmos os procedimentos democráticos como fins em si mesmo, vamos voltar aos valores que nos atraíram para a democracia em primeiro lugar: igualdade, inclusão, a ideia de que toda pessoa deve controlar seu próprio destino. Se a democracia não é a forma mais eficaz de alcançar isso, então qual é?

Enquanto lutas cada vez mais ferozes balançam as democracias de hoje, os riscos desta discussão ficam cada vez mais altos. Se continuarmos tentando substituir a ordem estabelecida com uma versão mais participativa da mesma coisa, vamos acabar exatamente onde começamos, e outras pessoas que compartilham da nossa desilusão vão se sentir atraídas por alternativas mais autoritárias. Precisamos de uma estrutura que possa realizar as promessas que a democracia traiu.

No texto a seguir, nós examinamos as diferentes linhas que conectam as diferentes formas de democracia, traçamos o desenvolvimento da democracia das suas origens clássicas até suas variantes contemporâneas – representativa, direta e baseada em consenso – e avaliamos como o discurso e os procedimentos democráticos servem aos movimentos sociais que os adotam. No caminho, nós delineamos como seria se buscássemos a liberdade diretamente ao invés de através do governo democrático.

Este projeto é o resultado de anos de diálogos transcontinentais. Para complementá-lo, estamos publicando estudos de caso de participantes em movimentos que foram promovidos como exemplos de democracia direta: o 15M na Espanha (2011), a ocupação da Praça Syntagma na Grécia (2011), o movimento Occupy nos E.U.A. (2011-2012), a insurreição na Slovênia (2012-2013), as assembleias na Bósnia (2014) e a revolução de Rojava (2012-2016).

O QUE É DEMOCRACIA?

O que exatamente é democracia? A maioria das definições na literatura fazem referência ao governo da maioria ou em um governo feito por representantes eleitos. Por outro lado, alguns radicais argumentam que a democracia “real” só acontece fora do monopólio do estado sobre o poder. Devemos entender a democracia como uma série de procedimentos para a tomada de decisão com uma história específica, ou como uma aspiração geral para políticas igualitárias, inclusivas e participativas?

Para definirmos o objeto da nossa crítica, vamos começar pelo termo. A palavra democracia deriva do grego antigo dēmokratía, que vem de dêmos, que significa “povo”, e krátos, que significa “poder.” Esta formulação de governo pelo povo, que ressurgiu na América Latina como poder popular, pede que perguntemos: qual povo? E que tipo de poder? As palavras raízes, demos e kratos, sugerem dois denominadores comuns para toda democracia: uma forma de determinar quem participa na tomada de decisões, e uma forma de fazer cumprir as decisões. Em outras palavras: cidadania e policiamento. Eles são essenciais para a democracia, são eles que fazem dela uma forma de governo. Qualquer coisa menos que isso será melhor descrita como anarquia – a ausência de governo, do Grego an – “sem” e arkhos – “governante”.

Denominadores comuns da democracia:

  1. DEMOS: uma forma de determinar quem *participa da tomada de decisões

  2. KRATOS: uma forma de fazer cumprir as decisões

  3. POLIS: um local para a tomada de decisões legítima

  4. OIKOS: os recursos para sustentá-la

Quem se qualifica como demos? Algumas pessoas argumentam que, etimologicamente, demos nunca teve a intenção de significar todas as pessoas, mas apenas algumas classes sociais. Mesmo quando seus defensores alardeiam sua suposta inclusão, na prática a democracia sempre exigiu uma forma de distinguir entre os incluídos e os excluídos. Que pode ser o status na legislatura, direitos de voto, cidadania, filiação, raça, gênero, idade ou participação nas assembleias de rua; mas em toda forma de democracia, para que hajam decisões legítimas, têm de haver condições formais de legitimidade, e um grupo de pessoas que as possui.

Neste aspecto, a democracia institucionaliza a característica chauvinista e provinciana de suas origens gregas, ao mesmo tempo em que ela aparentemente oferece um modelo que pode envolver todo o mundo. É por isso que a democracia provou-se tão compatível com o nacionalismo e o estado; pois ela pressupõe o Outro, que não possui os mesmos direitos ou poderes políticos.

O foco na inclusão e exclusão é claro o bastante no começo da democracia moderna na obra “Do Contrato Social” escrita por Rousseau no século XVIII, na qual ele enfatiza que não existe contradição entre democracia e escravidão. Quanto mais “malfeitores” estiverem acorrentados, ele sugere, mais perfeita será a liberdade dos cidadãos. Liberdade para o lobo é a morte para o cordeiro, como Isaiah Berlin colocou mais tarde. O conceito soma-zero da liberdade expresso nessa metáfora é a fundação do discurso dos direitos concedidos e protegidos pelo estado. Em outras palavras: para que os cidadãos sejam livres, o estado deve possuir autoridade máxima e a capacidade de exercer controle total. O estado busca produzir ovelhas, reservando a posição de lobo para si.

Por outro lado, se entendermos a liberdade como cumulativa, a liberdade de uma pessoa se torna a liberdade de todas: não é simplesmente uma questão de ser protegida pelas autoridades, mas de se intercruzar com as outras em uma forma que maximiza as possibilidades para todos. Neste contexto, quanto mais centralizada for a força coercitiva, menos liberdade haverá. Esta forma de conceber a liberdade é social ao invés de individualista: ela aborda a liberdade como uma relação com os nossos potenciais produzida coletivamente, não como uma bolha estática de direitos particulares¹.

Vamos agora para a outra raiz, kratos. A democracia compartilha deste sufixo com aristocracia, autocracia, burocracia, plutocracia e tecnocracia. Cada um destes termos descreve um governo por alguma parte da sociedade, mas todos compartilham uma lógica comum. E esse fio que os une é o kratos, poder. Que tipo de poder? Vamos consultar os antigos gregos mais uma vez.

Na Grécia clássica, todo conceito abstrato era personificado por um ser divino. Kratos era um Titã implacável que incorporava o tipo de força coercitiva associada com o poder do estado. Uma das fontes mais antigas na qual Kratos aparece é a peça Prometeu Acorrentado, atribuida a Ésquilo nos primeiros dias da democracia de Atenas. A peça inicia com Kratos escoltando agressivamente Prometeu que, acorrentado, está sendo punido por roubar o fogo dos deuses e dá-lo para a humanidade. Kratos aparece como um carcereiro cumprindo as ordens de Zeus sem pensar – um bruto “feito para os atos de qualquer tirano”.

O tipo de força personificada por Kratos é o que a democracia tem em comum com a autocracia e com toda outra forma de governo. Elas compartilham as instituições de coerção: o aparato legal, a polícia, e os militares, todos os quais precederam a democracia e repetidamente sobrevivem a ela. Estas são as ferramentas “feitas para os atos de qualquer tirano”, quer o tirano seja um rei, uma classe de burocratas ou o próprio “povo”. “Democracia significa simplesmente o espancamento do povo pelo povo e para o povo”, como disse Oscar Wilde. Muammar al-Gaddafi ecoou isso com aprovação um século mais tarde, sem ironia: “Democracia é a supervisão do povo pelo povo.”

No grego moderno, kratos é simplesmente a palavra para estado. Para entender a democracia, precisamos olhar para o governo mais de perto:

“Não existe contradição entre exercitar a democracia e um controle administrativo centralizado de acordo com o bem conhecido equilíbrio entre centralização e democracia… A democracia consolida as relações entre pessoas, e sua principal força é o respeito. A força que emana da democracia consegue um grau maior de adesão no cumprimento de ordens com grande precisão e zelo.”

– Saddam Hussein, “Democracy: A Source of Strength for the Individual and Society”

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MONOPOLIZANDO A LEGITIMIDADE

“Se nos governos absolutistas o Rei é a lei, então nos países livres a lei deverá ser o Rei.”

– Thomas Paine, Common Sense

Como forma de governo, a democracia oferece uma forma de produzir uma única ordem de uma cacofonia de desejos, absorvendo os recursos e atividades da minoria em políticas ditadas pela maioria. Em qualquer democracia, existe um espaço legítimo para a tomada de decisões, separado do resto da vida. Pode ser um congresso em um prédio de parlamento, ou uma assembleia geral em uma calçada ou um aplicativo que pede votos pelo iPhone. Em todos os casos, a legitimidade não são os seus desejos e necessidades imediatas, mas um protocolo e processo específicos para tomada de decisões. Em um estado, isso é chamado “estado de direito”, embora o princípio não exija necessariamente um sistema legal formalizado.

Esta é a essência do governo: decisões feitas em um espaço determinam o que pode acontecer em todos os outros espaços. O resultado é a alienação – o atrito entre o que é decidido e o que é vivido.

A democracia promete solucionar esse problema envolvendo todo mundo no espaço da tomada de decisões: o estado de direito por todos. “Os cidadãos de uma democracia se submetem à lei porque eles reconhecem que, por mais que de forma indireta, eles estão submetendo-se a si mesmos como criadores da lei”. Mas se todas as decisões fossem realmente tomadas pelas pessoas que elas afetam, não haveria a necessidade de um meio de fazer cumprir essas decisões.

“A maior dificuldade está nisso: você primeiro deve capacitar o governo a controlar os governados; e a seguir obrigá-lo a controlar a si mesmo.”

– James Madison, The Federalist

O que protege as minorias nesse sistema onde o vencedor leva tudo? Defensores da democracia explicam que as minorias serão protegidas pela separação dos poderes e pelas diferentes instituições governamentais. Em outras palavras, a mesma estrutura que detém o poder sobre elas deve protegê-las de si mesma². Nesta abordagem, democracia e liberdade pessoal estão fundamentalmente em lados opostos: para preservar a liberdade dos indivíduos, um governo deve tirar a liberdade de todos. E mesmo assim, é muito otimismo confiar que as instituições serão melhores que as pessoas que as mantém. Quanto mais poder investirmos no governo na esperança de que ele proteja os marginalizados, mais perigoso ele será quando for usado contra eles.

Até que ponto você compra a ideia de que o processo democrático deve pisotear os seus valores e a sua consciência? Vamos tentar um exercício rápido. Imagine-se em uma república democrática com escravos – digamos na Atenas ou na Roma antigas, ou nos Estados Unidos até o fim de 1865. Você obedeceria a lei e trataria as pessoas como propriedade enquanto se esforça para mudar as leis, sabendo que enquanto isso gerações inteiras podem viver e morrer acorrentadas? Ou você agiria de acordo com a sua consciência e desafiaria a lei, como Harriet Tubman e Zumbi dos Palmares?

Se você seguisse os passos de Harriet Tubman, então você, também, acredita que existe algo mais importante que o estado de direito. Este é um problema para todas as pessoas que querem fazer da vontade da maioria e da obediência à lei os principais árbitros da legitimidade.

“Pode haver um governo no qual o certo e o errado não seja virtualmente decididos pelas maiorias, mas pela consciência?”

– Henry David Thoreau, Desobediência Civil

“Isto é uma democracia, não anarquia. Nós temos um sistema no país para mudar as regras. Quando você estiver na Suprema Corte, você poderá tomar essa decisão.” – Robert Stutman
“Isto é uma democracia, não anarquia. Nós temos um sistema no país para mudar as regras. Quando você estiver na Suprema Corte, você poderá tomar essa decisão.” – Robert Stutman

A DEMOCRACIA ORIGINAL

Na antiga Atenas, o tão celebrado “berço da democracia”, nós já vemos a exclusão e a coerção que têm sido as características essenciais dos governos democráticos desde então. Somente homens adultos com treinamento militar podiam votar; mulheres, escravos, endividados e todos aqueles que não tinham sangue ateniense estavam excluídos. No melhor dos casos, a democracia envolvia menos de um quinto da população.

De fato, a escravidão era mais comum na antiga Atenas do que em outras cidades-estado gregas, e as mulheres tinham menos direitos comparado aos homens. Maior igualdade entre os cidadãos masculinos aparentemente significava maior união contra mulheres e estrangeiros. O espaço das políticas participativas era uma comunidade cercada.

Podemos mapear as fronteiras desta comunidade cercada na oposição ateniense entre público e privado – entre polis e oikos. A polis, a cidade-estado grega, era um espaço de discursos públicos onde os cidadãos interagiam como iguais. Por outro lado, a oikos, o lar, era um espaço hierárquico no qual os homens proprietários reinavam supremos – uma zona fora da jurisdição da política, mas que serve como sua fundação. Nesta dicotomia, a oikos, representa tudo que provê os recursos que sustentam a política, mas é tida como algo que a precede e portanto está fora dela.

Estas categorias seguem conosco ainda hoje. As palavras “política” (“os assuntos da cidade”) e “polícia” (“a administração da cidade”) vem de polis, enquanto “economia” (“o gerenciamento do lar”) e “ecologia” (“o estudo do lar”) derivam de oikos.

Democracia ainda se baseia nesta divisão. Enquanto houver distinção política entre público e privado, tudo desde o lar (o espaço patriarcal de intimidade que sustenta a ordem dominante com trabalho invisível e não remunerado³) até continentes e povos inteiros (como a África durante o período colonial – ou até mesmo a negritude em si) pode ser deixado de fora da esfera da política. Da mesma forma, a instituição da propriedade e a economia de mercado que ela produz, que tem servido de apoio à democracia desde a sua origem, são postas como inquestionáveis ao mesmo tempo em que são protegidas e reguladas pelo aparato político.

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Felizmente, a antiga Atenas não é a única referência para a tomada de decisões igualitária. Uma rápida olhada em outras sociedades revela vários outros exemplos, muitos dos quais não são afirmados na exclusividade ou na coerção. Mas devemos classificá-los como democracias, também?

“Devemos acreditar que antes dos atenienses, nunca ocorreu a ninguém, em lugar nenhum do mundo, a ideia de juntar todos os membros da sua comunidade para tomar decisões conjuntas de forma que a opinião de todos tenha peso igual?

– David Graeber, Fragments of an Anarchist Anthropology

Em sua obra Fragmentos de uma Antropologia Anarquista, David Graeber critica seus colegas por identificarem Atenas como origem da democracia; ele conjetura que os modelos iroqueses, bérberes, da ilha de Celebes ou do povo Tallensi, não recebem tanta atenção simplesmente porque nenhum deles é centrado no voto. Por um lado, Graeber está certo em chamar nossa atenção para sociedades que se preocupam em construir o consenso ao invés de praticarem a coerção: muitas delas incorporam os melhores valores associados à democracia de forma muito melhor que a antiga Atenas. Por outro lado, não faz sentido para nós rotularmos esses exemplos como verdadeiramente democráticos enquanto questionamos as credenciais democráticas dos gregos, que inventaram o termo. Isso também é etnocentrismo: afirmar o valor de exemplos não-ocidentais concedendo-lhes status honorário em nosso paradigma admitidamente inferior. Em vez disso, vamos aceitar que a democracia, como prática histórica específica originária de Esparta e Atenas e imitada por todo o mundo, não alcançou os padrões estabelecidos por muitas dessas outras sociedades, e não faz sentido chamá-las de democráticas. Seria mais responsável, e mais preciso, descrevê-las e honrá-las em seus próprios termos.

No fim das contas, isso nos deixa com Atenas como a democracia original. E se Atenas não se tornou tão influente por causa da liberdade, mas por como ela usava a política participativa pra fortalecer o Estado? Na época, a maioria das sociedades da história humana tinham sido sem Estado; algumas eram hierárquicas, outras horizontais, mas nenhuma sociedade sem estado tinha o poder centralizado de kratos. Os Estados que existiam, no entanto, não eram nada igualitários. Os atenienses inovaram com um formato híbrido onde a horizontalidade coexistia com a exclusão e a coerção. Se você aceita que o Estado é desejável ou pelo menos inevitável, esse formato soa atraente. Mas se o Estado é a raiz do problema, então a escravidão e o patriarcado da antiga Atenas não eram pequenos erros de um recém nascido modelo democrático, mas um grave sinal dos desequilíbrios de poder contidos em seu DNA desde o princípio.

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Fim da primeira parte.


notas:

1. Sobre isso, Mikhail Bakunin disse: “Só sou realmente livre quando todas as pessoas, homens e mulheres, são igualmente livres. A liberdade de outras, longe de negar ou limitar a minha liberdade, é sua premissa necessária e sua confirmação.

2. Grupos Anarquistas Coordinados, Contra la Democracia

3. Cf. Sarah Song, “The Boundary Problem in Democratic Theory: Why the Demos Should Be Bounded by the State.”

Esse texto faz parte de uma série e um debate internacional analisando a Democracia sob uma perspectiva anarquista. Não só a democracia representativa burguesa é abordada, mas também as experiências de democracia direta nos diversos movimentos e levantes ao redor do mundo nos últimos anos.

Outros textos serão publicados desenvolvendo a questão localmente. Encorajamos também um debate fora das redes. Convide e organize debate sobre a relação entre democracia e anarquaia na sua região.

Um grupo de discussão está sendo organizado via Crabgrass e pode ser acessado no link: we.riseup.net/democracyandanarchy
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publicação: PORQUE ELA NÃO TÁ NEM AÍ PRA SUA INSURREIÇÃO

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Um texto que fala sobre machismo num contexto específico estadunidense, na cena anarquista insurrecionária da qual a autora faz parte. Ela faz uma breve análise sobre como condutas sexistas estão presentes mesmo neste contexto, pois as mulheres enfrentam a opressão do patriarcado fora, mas também dentro de espaços anarquistas e libertários. Poderíamos dizer espaços supostamente anarquistas e libertários e não estaríamos sendo radicais, apenas sendo coerentes, pois não é possível que nestes espaços o machismo seja aceito, que seja uma opressão praticada como normalidade ou mesmo “apenas” ignorado. Não é possível ignorar o machismo. Isso só acontece porque existe interesse em manter as mulheres sob domínio dos homens. Lendo o texto percebemos que é uma situação análoga as cenas das quais nós também nos encontramos.

CONTRA A DEMOCRACIA, CONTRA O LEVIATHAN

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O Brasil ainda sofre com a ferida não cicatrizada da última Ditadura Civil-Militar (1964-1985), que só acabou para a classe média branca, mas perdura nas vilas, nos becos, favelas, ocupações, nos campos e nas prisões. Mas o golpe não foi feito apenas por generais, seus exércitos e armas, nem nos deixou como legado apenas um Estado policial que vigia seus cidadãos como a inimigos internos. O regime se sustentou no apoio de empresários, fazendeiros e da imprensa organizados contra trabalhadorxs, sindicatos, ligas campesinas e contra a liberdade de expressão e de informação. Todos esses saíram ganhando quando os oficiais constrangidos aceitaram, quase que de boa vontade, a “abertura política”. Se por um lado os militares não pagaram por seus atos, do outro, os empresários, latifundiários e os veículos de comunicação que cooperaram com o regime saíram-se muito bem e ainda gozam da prosperidade alcançada por sua cumplicidade.

Até hoje, toda vez que mobilizações, tensões ou conflitos denunciam e confrontam a miséria de nossas vidas com a urgência da luta social, ouvimos sempre vozes, da mídia aos governantes, da esquerda à direita, que insistem em frisar que toda luta é válida desde que conserve os “valores e direitos conquistados com consolidação da Democracia”, além de sempre reafirmar o quanto devemos nossas liberdades de hoje à conquista das lutas pela abertura política e aos “heróis” que lutaram por ela.

poraoDemocratizar já virou sinônimo de tornar inclusivo, acessível a qualquer pessoa. E isso se tornou bandeira da maioria dos movimentos e setores em luta por direitos: sindicatos buscam uma forma mais confortável de inserção no mercado, a esquerda quer se incluir na política formal para controlar a máquina estatal e implementar seus programas. Ambos são parte do problema que queremos encarar porque legitimam as instituições autoritárias e pretendem integrá-las ao invés e aboli-las desde já, rompendo com sua influencia ao longo do processo. Geralmente, movimentos que buscam somente a inclusão de membros da sua classe, cor ou gênero num posto de poder no sistema político e econômico, são os mais fáceis de se cooptar. Se o outro mundo que queremos criar aqui e agora não fizer parte do meio para chegar até ele, nos provendo durante o processo a igualdade e a justiça que tanto reclamamos, estaremos derrotando a nós mesmxs desde o início, fazendo do processo um jogo político tão hierárquico, alienante e não-participativo quanto a política que controla esse mundo.

Presenciamos última desilusão política nacional com os 12 anos de esquerda no poder. A era Lula manteve o projeto neoliberal de seus antecessores e o aprimorou com o que a esquerda sabe fazer de melhor: inclusão econômica. A esquerda petista combinou a fama de amiga dos pobres com a de parceira dos banqueiros e empreiteiras. Aumentou o acesso a renda e crédito, alavancou uma massa empobrecida para a única forma de inclusão realmente útil para as elites: a do consumo. O resultado contou com a precarização do trabalho (especialmente para a juventude), a ofensiva das políticas neoliberais na gestão das cidades, a paralisação da reforma agrária, aumento da violência no campo, crescente criminalização dos movimentos sociais, embrutecimento da polícia militar com operações literalmente de guerra em favelas e a presença de milícias perpetrando chacinas nas periferias. A máscara democrática esconde um permanente estado de guerra e as lutas de junho de 2013 contra o aumento da passagem, os mega-eventos e as remoções só trouxeram à superfície a face dessa política social que só as favelas, o campo, as prisões e os mortos conhecem bem.

A regra será apenas uma série de exceções

Os cães do Capital
Os cães do Capital

A brutalidade desproporcional da violência policial que marcou os levantes de junho de 2013 não é nem um pouco novidade, apenas foi exposta a exaustão para quem não estava acostumado a encará-la diariamente. E, claro, que não foi por conta da mídia mas das próprias pessoas registrando e compartilhando tudo o que viam nas ruas. As leis e protocolos que regulam os cidadãos e a conduta da polícia deveriam valer, dentro da imaculada Democracia, da mesma forma para todos. Mas sabemos que isso nunca ocorreu. A ilegalidade das ações policiais que atacavam manifestantes desarmados e gritando por não-violência ao fim dos primeiros atos nos remete às operações ilegais nas favelas, perpetrando abusos, roubos, violações e extorsões. Assim como nas operações de desalojo e reintegração de posse, onde pessoas são obrigadas a deixar suas casas através da tortura, abuso sexual, dano e roubo de seus pertences para serem largadas sem o menor auxílio do Estado.

Em 2012 a desocupação do bairro do Pinheirinho, em São José dos Campos, interior paulista, chamou atenção pela irregularidade da ordem de reintegração de posse, assim como pelo escândalo de corrupção e violência policial que marcaram suas história. O terreno estava abandonado desde 1990, quando o seu proprietário, Naji Nahas declarou falência. Quando foi ocupado em 2004, o imóvel já devia milhões em impostos e Nahas já era conhecido por escândalos envolvendo lavagem de dinheiro. O bairro contava já com ruas, eletricidade e água, abastecendo 1600 famílias quando foi ameaçado de despejo. Moradores demonstraram disposição para resistir e a imagem de mulheres e homens armados com escudos e paus ficou famosa no mundo todo. O pedido foi negado pelo Tribunal Regional Federal, mas ignorado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Quando os moradores já não contavam com a reintegração de posse, uma operação da polícia comandada por Geraldo Alckimin atacou a comunidade, ferindo ao menos uma pessoa com arma letal, ferindo 500 com balas de borracha, bomas e golpes diversos, destruindo casas e os pertences de moradores que tiveram que sair, em muitos casos, apenas com a roupa do corpo. Foram dezenas de denúncias de estupro e abusos sexuais cometidos por agentes da ROTA e muitas pessoas continuam desaparecidas após a ação policial. Milhares de pessoas foram largadas à sua própria sorte enquanto um empresário corrupto teve de volta sua propriedade, que permanece sem função social e acumulando dívidas.

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Pinheirinho rompendo com o monopólio da auto-defesa.

A “era democrática” nunca chegou para as prisões e para as comunidades pobres. Ainda estamos sob o reinado das torturas, aprisionamento, morte e censura. Essa é a forma de operação padrão da polícia no Brasil e a quem ela serve. Quem não vê ou reconhece esse fato está, provavelmente, tão protegido por seus privilégios de classe, cor e gênero que não sente ou nem ao menos consegue visualizar a violência imposta pelo Estado e pelo Capital. Foi assim no Pinheirinho, mas ainda é nas ainda rotineiras operações militares nas favelas e nos ataques de milicianos nas periferias. Foi assim nos massacres de Eldorado dos Carajás, em Corumbiara, no Carandiru, na Candelária e em Vigário Geral. Foi assim com Amarildo e também com Cláudia no Rio de Janeiro. Tem sido e continuará sendo com as obras e as políticas implementadas para a realização da Copa do Mundo. É preciso encarar que há uma política e uma prática de guerra organizada contra a população e todas aquelas que se colocam no caminho do progresso ou que sobram dele. As leis que regulam os protocolos de conduta da polícia ou os procedimentos judiciais não são seguidos pelas autoridades que em tese as representam. Quebrar as leis só traz consequências para quem não tem poder. Para os poderosos, quebrar suas próprias leis é apenas mais um procedimento justificável para a instauração e manutenção de seu autoritarismo.

O contexto de recrudescimento das leis, assim como o uso de Leis de Segurança Nacional da era da Ditadura, a possível instauração de leis anti-terrorismo e o recém-aprovado Decreto de Lei e Ordem indicam que os mega-eventos se tratam apenas de dispositivos para fortalecer os aparelhos de controle estatais que viabilizam e estimulam a atuação soberana das empresas e corporações. O resultado já podemos sentir: os Estados vem se tornando quase que exclusivamente uma força policial que garantirá globalmente o controle e a contensão necessários para o Capital e suas corporações imporem regras, circularem livremente e lucrarem cada vez mais com seus monopólios e cartéis. Tudo isso pode ser entendido como mais uma ofensiva de um grande projeto neoliberal de cidade em escala global, voltada para a produção, consumo e circulação de produtos e a força de trabalho necessária para sua realização. Vemos um aparato legal montado para criminalizar movimentos sociais pautado em definições totalmente subjetivas, como “forças oponentes” para caracterizar movimentos sociais, ou “causar pânico” ou “provocar ou instigar ações radicais e violentas” para qualquer manifestação ou protesto, contra os quais o governo autoriza a atuação das Forças Armadas; tribunais de exceção montados para atender casos durante a Copa; a suspensão do direito de greve; o enquadramento de ações como o bloqueio de vias nas leis anti-terrorismo; além de justificar a compra de equipamentos, como canhões d’água, drones, armas menos-letais – capazes de aleijar e também matar –, além de treinamento para conter os chamados “distúrbios civis”. Tudo isso articulado com a cooperação das forças policiais mais repressoras do mundo, como a francesa e a israelense. Esse tremendo aparato legal, tenológico e bélico só precisava de uma porta de entrada para se instalar permanentemente e se tornar o verdadeiro e principal legado dos mega-eventos. Só a tomada de consciência dessa situação nos permite também pensar formas de nos organizar para resistir e lutar oferecendo, talvez, a única forma de sobrevivência e superação desse regime.

Capitalismo é o crime mais bem organizado

Assim como no caso da violência, o Estado e o capitalismo não enxergam qualquer crime ou atividade ilegal como uma ameaça. Pelo contrário, muitos deles são necessários e complementam seu poder de operação. Esse sistema autoritário é mantido pelas leis, pela legitimidade da violência que mantém o vigor dessas leis, mas também da sua “legitimidade” para quebrar e operar fora de suas próprias regras. Engana-se quem pensa que é possível separar capitalismo, mercado, o Estado, as corporações e o sistema financeiro do crime organizado – ou nem tão organizado assim. Não é só a propriedade e o lucro que são um roubo numa visão anarquista, mas o próprio mercado considerado ilegal pelo sistema vigente é uma das grandes fontes que sustentam esse sistema e seus bancos, empresas, instituições financeiras e a economia dos Estados.

"direita" e "esquerda" são os dois braços do Leviathan.
“direita” e “esquerda” são os dois braços do Leviathan.

Segundo a ONU e o FMI são lavados por ano mais de 600 bilhões de dólares em paraísos fiscais do mundo todo. A maioria deles se encontram em países desenvolvidos como Suíça, ou em microterritórios extremamente ricos, como as Ilhas Caimã na América Central, onde bancos operam com legislação fiscal frouxa, praticam receptação anônima de capitais, sem exigir comprovação de procedência ou arrecadando impostos de renda. Se por um lado um vemos uma guerra sangrenta contra as drogas ilícitas na América Latina encabeçada pelo imperialismo americano e justificando intervenção militar, assim como uma guerra interna no Brasil e em muitos outros países diante do mesmo “inimigo”, por outro vemos a total conivência e compreensão com países e instituições financeiras que aceitam receber e lavar o dinheiro proveniente desse mercado considerado ilegal, mas também de empresários comuns que simplesmente preferem escapar da taxações de seus próprios países.

As mesmas regras econômicas valem para tanto para os mercados ilegais quanto para os legais, produzindo as mesmas concentrações de poder. Cartéis de narcotraficantes funcionam numa estrutura similar a das empresas legais, mas temos a impressão de que são mais violentas. O aparato estatal, no entanto, é uma versão maior e mais centralizada das máfias. E o mercado ilegal não é necessariamente mais violento que o resto do sistema econômico: o que pode ser mais violento que o sistema prisional, a tortura como instituição policial, os “autos de resistência”, o genocídio da população negra e periférica, os desalojos, as reintegrações de posse, a agressão ao meio ambiente e aos povos originários? Tudo que nos choca quando cometido pelo crime organizado é rotineiramente cometido pelo Estado, mas de tão frequente se tornou invisível.

As desigualdades da lei garantem sempre pesos e medidas diferentes para beneficiar quem já concentra poder: se você não tiver como depositar seu dinheiro num paraíso fiscal, a Receita Federal vai te por na malha fina ou na cadeia; se você não for a Coca-Cola não vai poder comprar coca legalmente – leis vão dizer que cocaína fazem mal para a saúde, mas não vão impedir o comércio de cigarros e álcool. Prostituição pode ser criminalizada, mas sempre haverá uma “casa de massagem” operando livremente. O consumo de combustíveis fósseis é um dos mais destrutivos, tanto para o planeta quanto para nossa saúde, e não há a menor chance dele se tornar ilegal.

Reforçar a proibição de alguns nichos ou produtos também abre oportunidades de lucros ainda maiores. Em ambos os mercados, a principal lógica é a dos riscos dos investimentos comparados ao retorno que eles podem dar. Cada pessoa ou organização vai ter seu nível aceitável de riscos mas se um sistema ilegal que funciona muito bem para as classes dominantes começa a entrar em conflito e prejudicar com o resto da economia, as leis poderão ser alteradas para garantir que os lucros sejam maior que os prejuízos. Por exemplo, as facções criminosas e os cartéis de narcotraficantes se tornaram tão poderosos que podem desafiar alguns estados com seu poder de fogo, o que gera um custo cada vez mais alto para a “guerra às drogas” e mostra quão inúteis são as campanhas contra o consumo de entorpecentes. Não é coincidência que nunca se discutiu tanto a legalização das drogas como hoje em dia.

Claro que o maior peso repressivo que recai sobre os mercados ilegais não atinge quem está no topo. Para muitas pessoas o tráfico de drogas pode oferecer oportunidade econômicas que nenhum outra atividade legal jamais lhe daria. Mas a legalização das drogas também não significaria uma inclusão para elas, uma vez que os monopólios iriam operar de forma a centralizar o controle e os lucros, como em qualquer outra indústria. O capitalismo ilegal não é em si uma saída que nos permite viver para além do capitalismo. É apenas sua outra face, sem a lentidão burocrática e as formalidades e etiquetas das relações econômicas legais. Nossa única opção ainda é resistir a formas hierárquicas e autoritárias de se relacionar e impor uma economia de escassez criada.

Pelo fim da Democracia, dissemine a resistência           

Devemos lutar por melhores salários ou pelo fim do capitalismo? Queremos uma cidadania universal ou a abolição do Estado? Queremos um mundo em que todas sejam classe-média ou o fim de todas as classes? Como retomar o controle de nossas vidas? O problema do sistema sob o qual vivemos não é que ele está nas mãos erradas e só precisa ser dirigido pelas pessoas certas, competentes ou honestas. O desequilíbrio, a miséria e a vulnerabilidade que ele nos impõe é o que ele precisa para funcionar. Se pessoas concentram poder e autoridade em suas mãos, é porque nos falta poder e autonomia. Governos nos prometeram direitos, mas apenas nos tiram liberdades. Tudo o que eles têm o poder de garantir, eles também têm o poder de tirar. Mercados oferecem recompensas àqueles que exploram seus iguais. A única forma de assegurar aquilo que importa para nós será construindo redes de apoio mútuo sem líderes e capazes de se auto-defender. Prover auto-defesa é tão importante para uma comunidade quanto prover alimento, abrigo ou lazer.

Capitalismo é um sistema que se pauta na livre gestão e acúmulo de seu capital privado. Mas isso só seria mesmo garantido para todas as pessoas a qualquer um se todas já partissem de um mesmo patamar – que não só não é desejado pelos capitalistas, como é impossível para o sistema se manter se todas tivéssemos direito a um mesmo ponto de partida ou com um mesmo capital inicial. Capitalismo depende de que as riquezas e poder fluam constantemente da base da pirâmide para se acumular em seu topo, nas mãos de elites cada vez menores que comandam instituições e corporações cada vez mais poderosas – e nada democráticas. Nos prometem um lugar no mercado de trabalho, mas nem mesmo há espaço para todo mundo lá.

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Portanto, o capitalismo só garante a livre gestão e o acúmulo de capital àqueles que já têm seu capital garantido. Como efeito, todas as outras instituições na Democracia operam pela mesma regra de privilégios, heranças, oligarquias e monopólios que operavam em todos os sistemas anteriores a ela. Toda a mobilidade social e a ascensão de novas classes é limitada e só serve para manter o balanço dessa ordem e a ilusão de que podemos ter um pedaço do bolo se trabalharmos duro. Quando nos lembram que o governo é democrático, isso significa que ele está acessível para aqueles que tem poder para influenciá-lo e comandá-lo. Quando nos lembram que a imprensa é democrática, isso significa que qualquer um que tenha poder suficiente para gerir uma empresa que vende informação e gere anúncios pode veicular por seus meios o que lhe for mais conveniente.

estadosA verdade é que alguns de nossos antepassados lutaram contra ditaduras, outros contra monarcas e imperadores despóticos, derrubaram seus governos, mas não aboliram as instituições através das quais reis e ditadores comandavam: eles apenas as democratizaram. Sendo assim, quem quer que opere essas instituições – seja um rei, o presidente, um eleitorado ou o Füher – impõem as mesmas brutais consequências àquelas que estão sob seu comando. Leis, burocracia, polícia, tribunais e prisões existem muito antes da Democracia, e tanto nela quanto numa ditadura operam para impedir nossa auto-determinação e nos ameaçar caso não concordemos. A única diferença é que, como podemos votar em quem deve nos oprimir, temos a sensação de participar do sistema e de que ele é nosso mesmo quando usado contra nós. Todas as revoluções do século 20 apenas nos garantiram o direito de sermos comandados por alguém alguém da nossa própria cor, classe, gênero, ou credo. O desafio é criar espaços onde ninguém acumule poder sobre as outras pessoas.

Quando nos falam de uma “crise de representação”, percebemos que está ficando claro que as classes políticas não são nem representam o povo. Eles não emergem do povo nem conhecem suas necessidades ou apenas as ignoram. São empresários fazendo da política mais um de seus negócios, e de seus negócios as políticas que afetam nossas vidas. Fica cada vez mais claro que a Democracia é só mais um fantasma, ou melhor, uma carcaça podre de um Leviathan que nos domina tendo como pretexto um contrato-social que nenhuma de nós assinou ou concordou. Não passa de uma utopia jamais realizada imposta pelos patrões. É um mais um contrato compulsório sob o qual somos jogadas desde que nascemos e que só funciona para as elites.

Exitem basicamente duas formas de buscar mudança social: uma é abolindo o sistema vigente e a outra é recomeçar o mesmo projeto do zero. É um erro pensar que instituições construídas para nos manter sob controle poderiam nos servir se apenas depormos nossos senhores. Esse é o erro de todas as revoluções anteriores. As armas de nossa libertação devem ser construídas durante a luta para alcançá-la.

É preciso superar a falsa dicotomia que joga tudo que se opõe à Democracia para o mesmo saco onde estão o fascismo, a ditadura, a intolerância e a violência gratuita e opressora. Precisamos reconhecer o fascismo e o poder ditatorial do capitalismo dentro do próprio regime democrático, que opera de forma obscura para manter a ordem e o progresso para as elites e a prisão e a morte para seus descontentes e dissidentes. Assumindo e deixando claro que a Democracia é apenas a mais eficiente das ditaduras, estaremos mais perto de aceitar que ela deve ser destruída por todos os meios necessários.

AAsp

publicação: OS 36 ESTRATAGEMAS

36

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As 36 estratégias apresentadas aqui são fruto de tradições orais populares da China antiga. Não são o trabalho de uma única autoria, como A Arte da Guerra – embora, mesmo no caso deste último, muitas pessoas também alegam que Sun Tzu não foi seu único autor. Com um pouco de criatividade, quase todas as estratégias podem ser aplicadas a praticamente qualquer situação, de guerrilhas expropriadoras à protestos de rua, de projetos auto-geridos à insurreições populares. Sendo assim, anarquistas também podem tirar proveito desse material.

Sugerimos que o texto seja debatido entre coletivos, grupos de afinidades, comitês ou grupos de trabalho. Lendo em grupo cada estratagema por vez e discutindo como e onde eles podem ser aplicados, que adaptações e mudanças podem ser adicionadas, a leitura pode contribuir para as lutas ou movimentos que o próprio grupo está envolvido. Obviamente, alguns pontos podem parecer inadequados para lutas anarquistas, por soarem autoritários, sexistas, nacionalistas ou mesmo obsoletos. Mas é aí que entra nossa criatividade de adaptar cada ponto sem descartar a ideia fundamental que há por trás dos 36 Estratagemas.

Nossos inimigos no topo das instituições que nos oprimem (ou qualquer outra posição autoritária) já não têm nenhuma misericórdia de nós e podemos contar que eles vão fazer o que for possível para nos deter em nossa tentativa de salvar nossas vidas e nosso mundo. No entanto, devemos considerar que nossa criatividade de adaptação não deve se limitar apenas à linguagem. Quando falamos de estratégias criadas com objetivos militares é tentador imaginar apenas formas de aplicá-las no combate com as forças policiais ou outros conflitos físicos. Na verdade, devemos buscar ocupar principalmente outros campos de batalha, uma vez que o poder revolucionário é muito mais social do que militar. E se consideramos nosso poder de influência no mundo de acordo com nosso poder bélico, já começamos uma guerra perdida.

Outra forma de engano é simplesmente imitar as estratégias e espelhar as estruturas de nossos inimigos, mesmo que em menor escala. Por vezes, parece que os revolucionárixs estão condenadxs a constituir-se sobre modelos idênticos àquilo que combatem. Dessa forma, como resumia em 1871 um membro da Primeira Internacional dos Trabalhadores, “se os patrões estão organizados mundialmente como classe em torno dos seus interesses, o proletariado deveria organizar-se mundialmente, enquanto classe operária e em torno dos seus interesses”.

Como explicava um membro do jovem Partido Bolchevique, o regime czarista estava organizado num aparelho político-militar disciplinado e hierárquico, o Partido deveria então, também ele, organizar-se como aparelho político-militar disciplinado e hierárquico. São infinitos exemplos históricos, todos igualmente trágicos, dessa maldição da simetria. Como o da FLN argelina, que esperava vencer tornando-se semelhante nos métodos ao ocupante colonial que enfrentava. Ou das Brigadas Vermelhas, que imaginavam que seria suficiente abater os cinquenta homens que, no seu entender, constituíam o “coração do Estado” para que conseguissem apoderar-se integralmente do aparelho. Nos dias de hoje, a expressão mais errônea desta tragédia da simetria sai das bocas trêmulas da nova esquerda: seria preciso opor a um império capitalista difuso, estruturado em rede, mas mesmo assim dotado de centros de comando, multidões também elas difusas, estruturadas em rede, mas mesmo assim dotadas de uma burocracia pronta para ocupar os centros de comando, assim que chegar seu dia.

Marcada por uma tal simetria, a revolta só pode fracassar – não só porque oferece um alvo fácil, uma cara reconhecível, mas sobretudo porque acaba por tomar os traços do seu adversário.

Boa leitura e nos vemos nas ruas – ou em qualquer campo de batalha que achar relevante!