Crise política e Golpe de Estado em uma perspectiva anarquista – pt. 03 de 07

3. Um golpe de Estado? Fragmentos sobre Revolução, Estado de Exceção e porque dizemos Golpe

“Ao nos referirmos ao golpe de Estado, podemos dizer (ou queremos dizer) que é parte do passado, que é uma relíquia do passado; mas, com efeito, ele não estaria, na atualidade, ancorado no cerne da prática governamental? Não seria possível dizer que a prática governamental contemporânea se baseia numa modalidade permanente de golpe de Estado? Referir-se à noção de golpe de Estado não poderia significar que estamos interpretando a economia geral do poder nas nossas sociedades como se elas estivessem em vias de se encaminhar, cada vez mais, em direção a práticas de exceção? Falar de golpe de Estado, na atualidade, não seria uma maneira de afirmar que os mecanismos de funcionamento do poder se apoiam em medidas de exceção e que, consequentemente, a exceção é o paradigma para se interpretar nossa modernidade?”

Roberto Nigro – “Violência de Estado, golpe de Estado, estado de exceção.”

Quando falamos de golpe de Estado, tocamos em algo que ainda está fresco na memória do país. Em 1964, o Brasil viveu um golpe de Estado civil-militar que derrubou um governo democraticamente eleito e manteve generais no poder por 21 anos. Não havia qualquer indício sério de que uma luta armada estava para tomar o poder no país, mas as elites econômicas e militares achavam que era necessário agir “preventivamente”. O contexto era de Guerra Fria e brotavam ditaduras na América Latina apoiadas pela CIA e pelas forças armadas estadunidenses. No caso do Brasil, temiam que o Brasil “se tornasse uma nova Cuba ou uma China”. A operação Brother Sam, organizada pela marinha dos EUA em apoio aos militares brasileiros, levou toda a frota do Caribe para a gosta brasileira na véspera do golpe, dia 31 de março de 1964. O golpe tinha, portanto, as imagens clássicas de tanques e tropas ocupando as ruas, tomando os palácios e prendendo políticos, impondo leis marciais e o apoio bélico da maior potência do imperialista do mundo.

A imagem clássica: tanques nas ruas do Rio de Janeiro na manhã do golpe em 1 de abril de 1964

Golpe ou revolução

Na era moderna, um golpe é uma manobra usada por grupos das elites ou de dentro do aparelho estatal para tomar o controle do Estado e excluir outras elites desse controle. Ele não altera a ordem social ou posição das classes. Desde a Revolução Francesa e ascensão dos estados modernos, o golpe de Estado deixa de ser um ato louvável do Príncipe que precisa manter a ordem real, e passa a ser visto como uma violação da continuidade da razão de ser do Estado, algo não legítimo. Surgem então as narrativas que elogiam as revoluções através das quais se constituíram os estados modernos. Não coincidentemente, os militares envolvidos no golpe de 1964 no Brasil chamaram o evento de “revolução” – e seus atuais partidários ainda o fazem, assim como o golpe que instaurou a República é chamado de “Proclamação” e o que levou Vargas ao poder em 1930 também ganhou o apelido de “Revolução”.

Obviamente, quando as ruas foram inundadas com manifestações contra Dilma Rousseff e o PT em 2015, a classe média conservadora e alguns grupos de extrema direita reivindicaram a intervenção militar. Mas os militares disseram que “estão completamente inseridos na democracia e não voltarão“. Com o fim da Guerra Fria, a CIA não tem tanto interesse em apoiar governos militares na América Latina novamente, pois regimes democráticos se mostraram tão eficientes quanto as ditaduras em manter países em desenvolvimento sob controle político e econômico das instituições financeiras e do mercado externo – um modelo a ser espalhado por todo o globo1.

De qualquer forma, o fato é que “golpe” é um termo mal visto e ultrapassado. A solução para uma elite querendo se livrar ou derrubar outra – sim, o PT é apenas mais uma elite – seria um procedimento com a aparência legal e democrática, como um julgamento baseado em acusações controversas que dividem as opiniões de cientistas políticos e juristas caminhando no limite entre o legal e o ilegal. Manobras semelhantes a essas vimos em Honduras em 2009 e no Paraguai em 2012, e talvez indiquem que estamos entrando em uma nova era, onde um novo tipo de golpe é formulado dentro do jogo democrático, construindo sua legitimidade com o apoio da mídia conservadora e de manifestações de rua. Assim, não conseguimos chamar isso de Golpe de Estado e eles não precisam chamar isso de Revolução2.

Porque dizer golpe

Com o fim da Ditadura Militar e a consolidação da nova Constituição Federal de 1988, foi constituído o Estado Democrático de Direito no Brasil. Isto significa que o Estado Brasileiro pretende limitar seus poderes com base nos princípios do Estado de Direito (respeito aos direitos humanos e fundamentais internacionais) e do Estado Democrático (respeito às eleições democráticas e às leis constituídas, promoção da igualdade de todos perante a lei e da igualdade social). Um Estado de Exceção é exatamente o oposto disso: a inversão dessa normalidade, onde as leis constitucionais, os direitos das pessoas à liberdade e sobre o seu corpo e sua vida são suspensos para que o governo concentre em suas mãos total poder para solucionar uma situação de emergência ou crise que ameace o Estado. Prisão sem justificativa ou defesa, repressão a movimentos sociais, tortura, assassinatos: vale tudo para garantir a lei e a ordem.

Não queremos contribuir para meras polarizações ou maniqueísmos entre Estado de Direito e Estado de Exceção. Sabemos que o Estado de Direito é também um estado policial, sob o controle das classes dominantes e do Capitalismo, que protege os cidadãos que se submetem, vigia, prende e extermina quem se rebela, quem não é parte da normatividade hegemônica – torna alvo as populações periféricas, não-heteronormativas, negras e indígenas. Entendemos que o Estado de Direito não elimina o autoritarismo ou a expansão colonial; e que o Estado de Exceção tem se tornado cada vez mais uma normalidade. Fugir às regras, suspender direitos e liberdade fundamentais tem se tornado cada vez mais a norma para os Estados modernos.

Mas desta vez, em 2016, não vimos a mesma paisagem militarizada de 1964 e ainda chamamos isso de golpe devido às características extra-legais e de exceção que presenciamos nesse episódio. Os aliados de Lula e Dilma dizem que houve “golpe” para se colocar como meras vítimas, como se não tivessem se relacionado com aqueles que arquitetaram a sua queda, como se fosse a redenção depois de anos trabalhando para a lubrificar as engrenagens capitalistas enquanto a direita não voltava ao poder. Com tal discurso, afirmam que os governos do PT possuem uma legitimidade inquestionável porque foram eleitos pelo voto democrático. Não colaboramos com esse tipo de análise. É preciso pensar o termo golpe de Estado com uma perspectiva crítica ao Estado e suas leis, para descrever o que aconteceu em 2016. Precisamos tonar mais abrangente o uso dessa palavra para entender que existem características de um Estado de Exceção em muitas outras manobras que governantes usam para concentrar ainda mais poder. E, especialmente, para entender as medidas de exceção implementadas pelo próprio PT.

Dizemos golpe porque o governo do PT não caiu pelas forças vindas de baixo, rebeldes ou insurrecionárias. As instituições estatais e econômicas não foram abaladas, e o que aconteceu foi que um grupo de parlamentares provou que é possível usar um procedimento de Impeachment sem crime comprovado para derrubar um governo eleito pela maioria. Na democracia, capitalistas e políticos de carreira se revezam no poder de acordo com o resultado das eleições. Eventualmente, um partido de esquerda ou um político de origem pobre pode chegar ao governo se prometer fazer o jogo dos que normalmente ocupam seus cargos. Todo esse jogo é mediado por leis, isto é, por acordos feitos entre as elites e impostos aos resto da população. Quando essas leis são suspensas ou distorcidas para favorecer um grupo poderoso, chamaremos isso de golpe porque prova que o resultado do jogo eleitoral pode ser dissolvido quando uma elite conseguir manipular as leis ao seu favor. Mesmo que depois não seja instaurada uma ditadura e que as mesmas leis constitucionais continuem a valer da mesma forma.

Toda essa bagunça e instabilidade deixa claro a tal Democracia se instalou aqui no sul do globo de uma forma muito diferente da fórmula europeia e estadunidense. Podemos ver com mais nitidez que as forças comandando o país são maiores que os partidos e que o voto. Nos países democráticos, os Estados herdaram dos reis e impérios seus exército, suas leis, suas prisões e suas fronteiras. No Brasil, os anos de ditadura também nos deixaram o mesmo aparato policial/jurídico e a mesma burguesia no comando da indústria, da mídia e dos bancos. E essa herança está longe de ser superada e é impossível de ser reformada.

Um século de ditaduras com breves lapsos de democracia burguesa

“Não há uma distinção clara entre ditadura e democracia. Todos os governos impõem, muitos ditadores são eleitos e algumas pessoas vivendo sob uma ditadura muitas vezes encontram meios de influenciar o governo que são mais diretas do que os meios disponíveis para cidadãos vivendo sob democracias”.

Peter Gelderloos – O fracasso da não-violência

A relação entre o a República Brasileira, democracia, golpes e regimes autoritários é conturbada e intensa, mas ajuda a visualizar onde estamos e o caminho que nos trouxe até aqui. Quando Dilma Rousseff foi eleita presidente em 2010, era a única candidata que tinha um vice-presidente de um outro partido: Michel Temer, do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro). Esse é o maior partido do Brasil, que abriga hoje os membros de centro-direita, mas principalmente conservadores.

A manobra de Dilma não foi algo novo, mas a repetição do seu antecessor: Lula ficou famoso como o primeiro presidente com uma origem operária e um passado como dirigente sindical. Porém, convidou José Alencar, um rico empresário de um partido de centro-direita para ser seu vice-presidente. Desde o início, o governo do PT pretendia construir uma aliança entre elites estatais, políticas e econômicas, e a aristocracia dos sindicatos operários e movimentos sociais.

A origem do PMDB remete à Ditadura civil-militar brasileira, quando apenas dois partidos foram autorizados a existir. O ARENA foi o partido militar e o MDB foi fundado em 1966 como o único partido a fazer oposição ao regime não clandestinamente, uma vez que todos os partidos se tornaram ilegais e alguns daqueles de esquerda se uniram às guerrilhas armadas. Após a abertura democrática, os partidos deixaram de ser ilegais e o MDB tornou-se o PMDB, o maior e mais antigo partido brasileiro. No mesmo período de abertura, surgiram partidos como PT e seu maior opositor atual, o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira).

A história do PMDB é construída com relações sempre vantajosas com grupos, partidos e políticos poderosos. Em 2016, Temer se tornou terceiro político do PMDB a assumir o cargo de presidente desde o fim da ditadura em 1985 – e nem ele nem seus predecessores foram eleitos diretamente por voto. O primeiro foi José Sarney, que tomou o poder quando Tancredo Neves, o primeiro presidente civil escolhido através de uma eleição indireta após o fim do regime militar, morreu antes de tomar posse. O segundo foi Itamar Franco, que assumiu a presidência em 1992 após o Impeachment de Fernando Collor, primeiro presidente democraticamente eleito, envolvido em escândalos de corrupção. Itamar então impulsionou seu sucessor, Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, presidente de 1994 a 2001, logo antes de Lula.

Esses episódios já são o bastante para comprovar o qual tumultuada e frágil é a recente era democrática brasileira. Mas podemos ir além e relembrar que foi um golpe militar que derrubou o Império e fundou a primeira República no Brasil em 1889; e que tivemos outros dois golpes de estado no século XX, sendo que o primeiro ocorreu em 1930. Dos dezoito presidentes que chegaram ao poder, somente oito foram eleitos e apenas quatro completaram seus mandatos.

Sendo assim, parece que o golpe de Estado contra o PT em 2016 segue uma espécie de “ordem natural” na democracia brasileira, que busca sempre manter o controle do poder executivo nas mãos de determinadas elites através de meios não-tão-democráticos.

Contra a PEC dos gastos públicos em dezembro de 2016: nossa maneira clássica de ocupar uma capital.

1 Para mais detalhes sobre as manobras imperialistas atuais dos gringos, ver a doutrina militar da Guerra Híbrida.

2 Dentro da Guerra Híbrida, o termo para essa estratégia é Revolução Colorida, como a desestabilização política que aconteceu Ucrânia.

Continua…

Crise política e Golpe de Estado em uma perspectiva anarquista – pt. 02 de 07

2. A necessidade do golpe: o combate à corrupção como ferramenta para destruir inimigos políticos

“Para mim, não há dúvidas de que a pior das democracias é sempre preferível à melhor das ditaduras, pelo menos do ponto de vista educativo.”
Errico Malatesta

Mesmo sendo o PT um partido cheio de políticos condenados ou investigados por corrupção, a presidente Dilma não estava evolvida em nenhum crime comprovado. O procedimento de Impeachment foi um golpe institucional disfarçado de combate à corrupção, onde interpretações e manipulações tendenciosas das leis permitiram a anulação de uma eleição inteira para colocar no poder um partido e um programa político que não vence eleições há mais de uma década. Como não conseguiram derrubar nem Lula nem Dilma nas disputas eleitorais, o golpe foi a única saída encontrada pela oposição para continuar com um projeto de país ainda pior do que o construído pela social-democracia do PT.

Dilma com seus ex-aliados: a saída não vem de cima.

A necessidade do golpe foi política e não ética. Isso fica óbvio quando a acusação não consegue provar qualquer relação de Dilma Rousseff com os crimes apurados pela operação Lava Jato. Essa operação, organizado pela Polícia Federal, investiga o maior escândalo de corrupção da história do Brasil, e já indiciou por corrupção 50 políticos de 6 partidos e diretores das 10 maiores empresas e empreiteiras no país e do mundo incluindo a empresa brasileira Petrobras. Quando a polícia passou a investigar políticos do PT, especialmente o ex-presidente Lula, a mídia fez questão de mostrar isso como uma prova que o polítcos do PT eram os principais ou os únicos corruptos na política, e passou a incitar as manifestações de rua que dariam legitimidade ao golpe. Seria muito útil para a elite colocar outro presidente no comando e em seguida frear a investigação para salvar o resto. Talvez o maior benefício da operação Lava Jato foi mostrar que a corrupção é inseparável do sistema e permeia praticamente todos os partidos e as maiores empresas do paíse que financiam tanto as campanhas eleitorais da direita ou da esquerda.

Doações do grupo Odebrecht, cujo presidente e principais executivos foram presos por corrupção, a partidos: PT ficou com as maiores doações – e propinas. Fonte: TSE e Estadão

No entanto, mais da metade dos parlamentares que estavam investigando a presidente também estão sendo investigados ou já foram condenados por crimes de corrupção, como o deputado Eduardo Cunha, responsável por dar início ao processo de Impeachment em 2015. Cunha foi preso em outubro de 2016 sob a acusação de estar envolvido com suborno e lavagem de dinheiro.

As “pedaladas fiscais”, isto é, o atraso no pagamento de empréstimos bancários utilizados para programas sociais (como o Bolsa Família) não são um crime nem mesmo para o procurador do Ministério Público Federal, mas uma técnica usada por muitos prefeitos, governadores e quase todos os ex-presidentes antes de Dilma. Mesmo assim, isso não foi considerado pelos parlamentares quando afastaram uma presidente escolhida em eleições democráticas. E apenas dois dias após votar pelo Impeachment, o Senado aprovou uma lei que torna as pedaladas uma manobra permitida pelo governo federal. Depois de usarem tais manobras como principal acusação contra Dilma Rousseff, o Congresso torna impossível que tais acusações sejam usadas contra o novo presidente.

A corrupção é um termo usado apenas para personificar um indivíduo ou grupo como inimigos da moral e dos bons costumes. Esse teatro criado pela mídia, que apela ao senso comum e foi legitimado pelas multidões na rua só ataca corruptos quando consegue usar isso para enfraquecer inimigos e blindar os aliados. Ou seja, um mero pretexto para suspender os procedimentos democráticos comuns, distorcer as leis e garantir que o poder continue nas mãos de poucas pessoas, sem questionar a essência do sistema e a corrupção que o sustenta. Governos democráticos são, por definição, o controle de poucos sobre o resto, usando o espetáculo eleitoral para dizer que tem legitimidade; são sistemas excludentes, autoritários e opressivos, onde nossa participação ou nossa autodeterminação são limitadas a todo instante pela representação política e pela repressão policial. Mas, quando seus agentes e instituições começam a violar e distorcer abertamente suas próprias leis para tirar ainda mais benefício delas, isso indica que teremos ainda muito mais problemas adiante e que não serão direitos constitucionais ou o voto da maioria que vão nos proteger.

Continua…

Crise política e Golpe de Estado em uma perspectiva anarquista – pt. 01 de 07

1. Introdução: governar sem voto

As ruas dizem: “Golpe!”

Em 2016, parlamentares brasileiros destituíram a presidente Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores, sob acusação de cometer “irregularidades contábeis” conhecidas como “pedaladas fiscais”. A votação do Impeachment na Câmara dos Deputados foi transmitida ao vivo na televisão como uma partida de futebol no dia 17 de abril: o país inteiro viu os políticos declarando que votavam em nome de Deus, Jesus, da família e da moral e em memória de torturadores e assassinos da Ditadura Militar (1964 – 1985). Ao fim desse espetáculo perturbador, 367 dos 513 deputados votaram pelo afastamento da presidente. Assim, Dilma Rousseff deixou temporariamente o governo e seu vice-presidente, Michel Temer do PMDB, assumiu o cargo como interino. Quatro meses depois, no dia 31 de agosto, o Senado aprovou definitivamente o Impeachment por 61 votos contra 20 e Temer se tornou presidente e deu início a uma radical reestruturação de todo o governo e dos ministérios. Foi o fim dos 13 anos de governo do PT, a mais longa gestão de um partido político na presidência do país desde a redemocratização.

Os deputados e senadores que votaram pelo Impeachment da presidente são os porta vozes das elites industriais e agrárias do país, sendo que muitos são também evangélicos. Toda essa articulação foi abertamente apoiada pelas principais mídias e movimentos de direita e conservadores em geral – os mesmos grupos por trás dos protestos “anti-corrupção” que ocorreram em centenas de cidades.cidades do país. Se as coisas não estavam boas com o governo petista, sua queda anuncia um futuro ainda pior para toda a classe trabalhadora, periferias, populações indígenas, negras e LGBTIQ. Os ganhos econômicos e as políticas sociais implementadas pelo partido de Lula e Dilma não têm grande valor para a elite tradicional. Sem Dilma, o PMDB de Temer e seus aliados ficaram mais à vontade para implementar medidas agressivamente neoliberais e antipopulares para atender a demanda por austeridade por parte dos empresários. Temer ganhou o poder como se não tivesse sido eleito na mesma chapa eleitoral que Dilma. Passou a exercer um mandato e um projeto político próprio, representando elites políticas e econômicas que, por décadas, acostumaram-se a governar sozinhos, com ou sem voto. Mas o caminho até o Impeachment em 2016 é longo e muito mais complexo do que a polarização entre traídos e traidores. Antes de ser traído por seus aliados, o PT traiu seus próprios princípios e o de muitos que o apoiaram a chegar no governo. É partindo de uma análise dessa trajetória que vamos abordar a crise política atual.

Não uma luta de classes, mas o pacto de classes

…em círculos da esquerda governista, no auge da crise mundial, foi elaborada uma ideologia delirante do “Brasil potência” que ia muito além da esperança na retomada do crescimento e no combate à miséria que garantiram a primeira vitória eleitoral de Lula – o que não deixou de incluir as medidas repressivas de administração da crise como o emprego das Forças Armadas nas favelas. A crença de que o Brasil estaria em vias de se tornar uma potência global – com hegemonia sobre a América Latina – retomava a primeira versão desse projeto elaborada durante a ditadura militar. No passado, o Brasil teve a oportunidade de concluir sua matriz industrial tomando empréstimos do exterior, mas o desenvolvimento foi travado por falta de financiamento já no final da década de 1970; agora a retomada do desenvolvimento apenas simulava uma situação de normalidade em termos de investimentos e de “pleno emprego”, enquanto todos ficaram à espera de uma superação da crise internacional que jamais ocorreu. Por fim, a crença exagerada nessa simulação estatal do crescimento – de modo semelhante à crise do período militar – minou o pacto político entre governo e grupos empresariais.”

A implosão do “Pacto Social” brasileiro – Marcos Barreira, Maurílio Lima Botelho

Michel Temer só está no comando do país hoje porque foi convidado pelo próprio PT para ser o vice de Dilma, como parte de sua estratégia de conciliação de classes, que trouxe para dentro do governo as serpentes que morderiam sua mão. Assim como Temer, a burguesia não esteve fora do governo de Lula ou de Dilma: mesmo com o PT no governo, estas elites estavam lá nos bastidores sendo aliadas quando era útil para ambas as partes. A conciliação de classes foi a grande estratégia petista para conseguir vencer a eleição em 2002. Em sua Carta ao Povo Brasileiro, Lula busca acalmar o mercado financeiro que temia a vitória de um presidente sindicalista. Na carta, ele afirma que pretende respeitar os compromissos do Estado com a dívida externa e não tomar medidas unilaterais. Como podíamos esperar, a esquerda no poder com o PT não foi uma inimiga das elites, mas sim uma aliada em processo de desenvolvimento capitalista.

Durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2008) e de Dilma Rousseff (2011-2016), o Brasil tornou-se uma economia emergente baseada na produção primária de commodities, preços internacionais altos, criação de 1,5 milhão de novos empregos de salário mínimo e poder aquisitivo para as classes pobres, principalmente através de expansão do micro-crédito (ou seja, endividamento massivo dos pobres e da classe média baixa). Enquanto isso, a dívida pública só aumentou e os lucros dos bancos e dos sistema financeiro foram os maiores da história.

O contexto externo favorável foi determinante. A crise de 2008 estagnou a economia na Europa e nos EUA, levando os capitais dos países centrais para serem investidos nas periferias. Além disso, a China continuava crescendo e tornou-se o parceiro internacional mais importante do Brasil, comprando matérias-primas e vendendo produtos industrializados. Com isso, sobravam os recursos necessários para implementar enormes programas sociais que tiraram 45 milhões de pessoas da pobreza extrema. Lula convidou os ricos a ficarem mais ricos, convencendo-os de que pode ser rentável dar dinamismo à economia e incluir nas relações de consumo as regiões e classes historicamente excluídas.

Aliado a medidas que facilitaram o acesso ao crédito pessoal, esse foi um passo estratégico para ampliar o mercado interno e beneficiar populações excluídas em regiões que estiveram por décadas sob a influência dos políticos mais oligárquicos, como o nordeste do Brasil e a maior parte dos bairros urbanos pobres e favelas. Todas essas pessoas se sentiram beneficiadas como nunca num curto prazo de tempo. Como a esmagadora maioria da população brasileira é pobre, o Partido dos Trabalhadores garantiu uma sólida base política para ser eleito quatro vezes seguidas.

Assim, a curto prazo, os ricos e os pobres ficaram satisfeitos ao mesmo tempo e os movimentos sociais eram abafados, diretores sindicais ganharam cargos no governo e suas lutas deixaram de enfrentar diretamente qualquer postura do governo federal, por mais reacionária que fosse: a reforma agrária praticamente parou desde que Lula chegou ao poder e a demarcação de terras indígenas na gestão de Dilma Rousseff foi a menor da era democrática. Uma vez que precisava assegurar os interesses dos grandes nomes do agronegócio e dos latifúndios, o PT optou por não garantir o direito à terra para povos indígenas ou famílias camponesas.

Da porta para fora, o PT era o partido do povo, que se preocupava com os trabalhadores e os pobres, mas dentro dos palácios, era quem apertava as mãos dos grupos conservadores, corruptos e neoliberais que de fato assumiram a economia enquanto o partido administrava o corpo social e as políticas públicas. Obviamente, a corrupção, a propina e as outras vias ilegais foram essenciais para que o PT se tornasse um partido tão desonesto quanto qualquer outro no poder.

Belo Horizonte, 31 de maço de 2017: “Nenhum governo é opcção!”

O fim de uma América Latina de esquerda

Nas últimas duas décadas, a América Latina esgotou-se da direita burguesa tradicional e o abriu espaço para governos de esquerda e origem popular em diversos países. Vimos presidentes operários, mulheres e indígenas assumindo diferentes posturas, mas que podem ser divididas em dois grande blocos: de um lado, países como Venezuela, Bolívia e Equador escolheram a bandeira do bolivarianismo, isto é, posturas anti-imperialistas, antineoliberais e antioligárquicas combinadas com o típico seu autoritarismo estatal contra suas populações. Outros, como Chile, Uruguai e Brasil formaram coalizões social-liberais, que aliam partidos originalmente de esquerda com outros de centro ou moderados, não romperam com as cartilhas neoliberais e o chamado Consenso de Washington. Continuam aplicando medidas progressistas, programas sociais de acesso a educação e a renda, melhorando minimamente as condições de vida dos pobres sem jamais desafiam as estruturas que produzem e mantêm a desigualdade.

No caso brasileiro, programas sociais como Bolsa Família, ficaram famosos no mundo todo como uma das maiores realizações do governo Lula, por tirar da miséria cerca de 45 milhões de pessoas. Mas o Bolsa Família não é nada além de um programa de transferência de renda condicionada recomendado pelas instituições financeiras mais agressivas, como o FMI. Sua média de R$ 176,00 por família (cerca de U$ 55,00) fazem a diferença para milhões de pessoas que não têmm nada, mas são uma esmola comparados ao seguro-desemprego e outros auxílios de países ricos como França ou Alemanha. Além disso, não garantem que as classes excluídas sejam de fato integradas à economia: apenas permitem o acesso a bens de consumo e não garantem acesso à casa própria ou ao ensino superior, por exemplo – fatores que significam ao menos uma real melhora a longo prazo para as camadas mais pobres.

Foi com o uso estratégico dessas políticas econômicas e sociais que Lula chegou e se manteve no poder. Após perder três eleições presidenciais consecutivas (1989, 1994, 1998), o PT diminuiu o radicalismo e escolheu o típico caminho da social-democraia: o socialismo que troca a luta revolucionária pela disputa eleitoral para controlar o Estado e realizar políticas sociais de emergência. Na prática, foi apenas um projeto de poder que abandona a luta de classes para buscar um pacto entre as classes em benefício das elites. Mas um erro estratégico do partido pode ter sido acreditar que governar para as antigas elites seria suficiente para ser considerado uma parte delas. A elite não aceita bem os novos membros e, quando muito, só confia nos seus. Mesmo quando trabalhava para os políticos da direita e conglomerados do agronegócio e da indústria, Lula e o PT ainda carregavam a imagem da classe trabalhadora, pobre, negra e de esquerda para aquelas elites – algo do qual era preciso se livrar em breve.

Foi a própria elite, e não as classes pobres, que decidiram romper com o pacto criado pelo Partido dos Trabalhadores quando perceberam que este já não era mais necessário. O problema não era que os pobres estavam ganhando algum dinheiro, mas sim que os ricos já não estavam ganhando tanto. Os anos passaram e, quando o contexto externo não era mais favorável, a recessão atingiu o país, e a solução encontrada por Dilma em seu segundo mandato foi tentar governar com o pensamento a longo prazo e romper com os acordos que garantiam tranquilidade para a elite desde os primeiros anos da era Lula. O pacto já não era suficiente e a mesma elite por trás das indústrias, agronegócio e os bancos exigiram o mais puro neoliberalismo. Eles rapidamente reorganizaram sua agenda junto com seus aliados parlamentares, para impor mais cortes em direitos, na previdência, na educação, enfim, por políticas de austeridade.

Temer e Lula durante a posse de Dilma Rousseff em 2015: lembram-se de como chegamos até aqui?

Como o próprio Temer alega, as articulações para o Impeachment começaram quando Dilma se recusou a aceitar um projeto neoliberal, conhecido como “Uma Ponte para o Futuro”, desenhado pelo PMDB em 2015. O plano consistia em pagar a dívida pública aos bancos usando o dinheiro que iria para educação, saúde e programas sociais. A acusação de corrupção só veio mais tarde, como um pretexto mais legítimo para derrubar a presidente. Foi então que presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, também do PMDB, aceitou o pedido de Impeachment de Dilma Rousseff em dezembro do mesmo ano com a acusação de “irresponsabilidade fiscal” e a possível relação com o escândalo de corrupção revelado pela enorme operação Lava Jato, da Polícia Federal. A aprovação do governo que chegou a 80% apenas 3 anos antes, caiu para apenas 8% após massivos ataques do judiciário e da mídia. A porta de saída para Dilma Rousseff estava sendo aberta.

Não é apenas no Brasil: os projetos de governos de esquerda latinoamericanos estão se esgotando e não é uma surpresa que muitas pessoas, cansadas de esperar por alguma mudança social e econômica profunda, sejam seduzidas pelos discursos de direita. As elites locais já tentaram golpes na Venezuela, no Equador e na Bolívia e conseguiram em Honduras e no Paraguai destituir presidentes democraticamente eleitos que tentaram implementar reformas superficiais que incomodaram os ricos. Na Argentina, o peronismo de Cristina Kirchner deu lugar ao neoliberal Mauricio Macri e na Venezuela, o primeiro país a eleger um presidente socialista e bolivarianista na virada do século entra em profunda crise econômica que não parece ter uma saída. Na Bolívia, Evo Morales, o presidente camponês e indígena decepcionou sindicatos da cidade e movimentos dos camponeses e perdeu o referendo que permitiria que o presidente se candidatasse pela terceira vez. Ao prometer o que não se pode cumprir dentro do Capitalismo (justiça social e igualdade econômica), a esquerda alimentou a desilusão popular que vai ser combustível para políticos de direita trazerem de volta o neoliberalismo mais puro e agressivo.

Continua…

publicação: LUTANDO NO BRASIL em inglês

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Estamos felizes em divulgar o lançamento da publicação Fighting in Brazil, uma versão adaptada para o inglês do texto Lutando no Brasil. O texto foi publicado em português no final de 2015 e busca analisar as lutas sociais dos anos de 2013 a 2015, originalmente lançado pela Facção Fictícia, agora ganha uma versão do coletivo CrimethInc. dos EUA. A nova versão conta com o texto online e pdf pronto para impressão.

Divulguem para compas no exterior que se interessam pelo contexto brasileiro, e que tenham disposição para intercambiar reflexões e aprendizados.

Agradecemos mais uma vez aos coletivos e indivíduos que escreveram para o volume II do Lutando no Brasil, também lançado em 2015, que não chegou a ser traduzida para o inglês ainda.

Acreditamos ser importante difundir mais materiais produzidos localmente para outras línguas, especialmente num contexto onde análises, mesmo anarquistas, vindas da América do Norte e Europa ainda acumulam uma certa hegemonia devido ao privilégio linguístico – e muitos outros.

Gostaríamos de poder lançar mais em outros idiomas, principalmente o espanhol. Quem quiser contribuir e somar nessa empreitada, entre em contato:

facfic@riseup.net

Anarquia e luta!