O DESASTRE TEM NOME: CAPITALISMO – Anarquistas no Sul do Brasil Falam Sobre as Enchentes e a Solidariedade no RS

Água invadindo a cidade de Porto Alegre em maio.

Nos primeiros dias do mês de maio de 2024, o território conhecido estado do Rio Grande do Sul, no assim chamado Brasil, foi atingido pela maior catástrofe climática de sua história. Mais de uma semana de chuvas intensas fizeram com que diversos rios transbordassem, arrasando dezenas de cidades e destruindo tudo no seu caminho, para então desaguarem no rio Guaíba causando a maior enchente já registrada na região da Grande Porto Alegre e outras cidades do estado. Até 1 de junho, 171 mortes foram confirmadas. Milhares de pessoas perderam tudo. 614 mil ficaram desabrigadas. Mais de dois milhões foram afetadas. Cidades inteiras praticamente apagadas do mapa pela força das águas.

Em números de pessoas afetadas e proporção dos danos materiais, a tragédia já supera a destruição causada pelo furacão Katrina na cidade em Nova Orelans, nos Estados Unidos em 2005. É o maior estrago econômico e estrutural causado por um evento climático no Brasil.

O Estado e o modo de produção capitalista têm responsabilidade direta pela devastação do planeta, produzindo cada vez mais catástrofes, derrubando florestas para dar lugar ao gado, às monoculturas e à mineração, degradando e impermeabilizando o solo com a expansão urbana. Em meio ao horror, fica evidente a completa incapacidade dos governos e dos ricos de cuidarem de nossas vidas e do nosso ambiente.

Município de Lajeado coberto de lama, após as águas da enchente de maio baixarem.

No centro dessa tragédia que anuncia uma nova realidade de eventos extremos cada vez mais frequentes, anarquistas, comunidades indígenas, quilombos e movimentos sociais organizam a solidariedade enquanto tentam reconstruir suas vidas e seus territórios gravemente afetados, seja pedindo e distribuindo doações, chamando por mutirões para limpar e voltar para imóveis atingidos, ou organizando novas ocupações de prédios vazios para abrigar pessoas que perderam suas casas.

Compilamos nesse artigo e em uma curta entrevista as reflexões sobre a atuação de anarquistas e outros movimentos de base atuando nessas campanhas por apoio mútuo em Porto Alegre e outras cidades atingidas pela maior enchente da história do Rio Grande do Sul.

Este artigo é também um vídeo produzido pelo coletivo Antimídia.

O ESTADO

No momento de um grande desastre “natural” – e até mesmo antes – o Estado deixa claro que sua prioridade nunca foi proteger nossas vidas. No longo prazo, o Estado brasileiro ignorou os alertas feitos décadas atrás sobre os perigos da devastação ambiental e das mudanças climática e também não tomou medidas eficazes para impedir catástrofes como esta. Mas mais do que isso, foi agente ativo da destruição – ora devastando de forma mais branda, ora devorando a terra de forma mais voraz. No governo neofascista de Bolsonaro, esse desprezo pela vida e ódio à natureza era escancarado. Mas mesmo os regimes sociais-democratas, incluindo governos progressistas de partidos como o PT, contribuíram em peso com o aquecimento global, apostando na indústria automotiva, na extração de petróleo e outras fontes de energia de alto impacto ambiental para alavancar o crescimento econômico. Em 2015, durante o governo de Dilma Rousseff, do PT, que relatórios científicos que apontavam para enchentes causadas pelas mudanças climáticas foram arquivados depois de serem considerados “alarmistas demais”.

Nos níveis estadual e municipal a negligência do Estado se repete com um impacto ainda mais direto e imediato sobre nossas vidas. Apesar dos repetidos comunicados dos sistemas meteorológicos, o governador e o prefeito não elaboraram planos nem realizaram alertas de evacuação adequados. Pelo contrário, não investiram o mínimo necessário na prevenção e proteção da população. O atual governador, Eduardo Leite (do partido de direita PSDB), retalhou a legislação ambiental do Estado para favorecer empresários e reduziu os investimentos na Defesa Civil durante seu governo. Quando questionado por jornalistas, Leite tentou justificar alegando que “tem esses estudos que, de alguma forma, alertam, mas o governo também tem outras agendas”.

Em Porto Alegre as comportas do dique que protegem a cidade falharam por falta de manutenção e erros no fechamento. O que ocorreu se tornou ainda mais grave pelo fato do DMAE (Departamento Municipal de Agua e Esgoto) ter acumulado as demandas do DEP (Departamento de Esgotos Pluviais), órgão responsável pelo sistema de diques, comportas e estações de bombeamento que protegem a capital gaúcha contra inundações, ter sido sucateado pelas últimas gestões da prefeitura de Porto Alegre. Segundo especialistas, a cidade não teria inundado se o sistema tivesse a manutenção e manejo adequados.

Para piorar o cenário, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, só decretou o racionamento de água depois que 85% da cidade já estava sem acesso à água potável. E a população de alguns bairros só foi avisada do desligamento das bombas que evitavam a inundação de suas casas depois delas terem sido desligadas, não lhes dando tempo hábil para evacuação.

CAPITALISMO É O DESASTRE

O modo de produção capitalista é a raiz das mudanças climáticas que ameaçam toda vida na terra. Ao mesmo tempo, as ações de corporações e grandes empresários que acumulam recursos materiais e financeiros fizeram pouco para ajudar nos resgates e aliviar o sofrimento da população. Pelo contrário, tornaram a situação ainda pior.

Os capitalistas fracassaram em manter os supermercados que ainda funcionavam abastecidos, pois ao estarem interessados no lucro das vendas, permitiram que pessoas com maior poder aquisitivo fizessem grandes estoques de água e mantimentos. Ao mesmo tempo, dezenas de lojas foram inundadas com água, alimentos e outros itens essenciais para a população trancados lá dentro sob a proteção de policiais e seguranças armados com fuzis, formando grupos paramilitares para impedir que pessoas famintas tivesse acesso a comida ou outros recursos. As empresas e o Estado se mostraram mais interessados em proteger essa mercadoria, do que deixar as pessoas terem acesso aos itens que mais necessitavam. Mesmo que esses itens fossem depois ser descartados ou indenizados por seguradoras.

Policial civil atira na direção de um suspeito de saquear supermercado em Porto Alegre.

Enquanto pessoas se voluntariavam para resgatar dezenas de milhares de cães, gatos e cavalos de telhados, montavam e organizavam espaços para acolhê-los, com atendimento veterinário e alimentação, empresas que comercializam animais abandonaram peixes, aves e mamíferos em suas gaiolas dentro das lojas inundadas, ao mesmo tempo em que se preocuparam em transferir os computadores para um andar mais elevado. Animais vendidos como objetos e abandonados para morrerem afogados, evidenciando a lógica desse sistema: para capitalistas, a vida é apenas mais uma mercadoria, a ser contabilizada e indenizada.

O pouco apoio que as grandes empresas ofereceram foi irrisório. A Grendene, uma das maiores produtoras de calçados do mundo, sugeriu que suas trabalhadoras doassem itens de suas próprias cestas básicas para pessoas atingidas pela enchente.

A indústria de bebidas Ambev, maior cervejaria do mundo, cujo lucro anual equivale ao dobro do orçamento da cidade de Porto Alegre, envasou água potável em latas de alumínio, constituindo mais uma ação de marketing do que qualquer forma de solidariedade real.

A FIERGS, entidade que representa as indústrias do Rio Grande do Sul pediu auxílio de R$100 bilhões ao governo federal para a recuperação das empresas atingidas pela enchente. Deixando claro que quando empresários falam em Estado mínimo, é apenas quando se trata dos interesses das pessoas menos favorecidas, mas querem um Estado forte para apoiar e defender os interesses da elite.

Defensores do capitalismo louvaram as ações de bilionários e empresários que doaram porções irrisórias de suas fortunas para ajudar as vítimas da enchente. Isso quando as boas ações não eram mentiras completas, como a imagem que mostraria um helicóptero do bilionário Luciano Hang resgatando pessoas ilhadas, que na verdade era uma imagem gerada por inteligência artificial.

Enquanto isso, pessoas comuns, inclusive algumas que perderam tudo, se mostraram muito mais solidárias e dispostas a ajudar, doando proporcionalmente muito mais de seus recursos que os super-ricos. Uma live solidária de uma banda de rock, arrecadou um valor maior do que as doações que o governo dos Estados Unidos e o bilionário egocêntrico Elon Musk enviaram para o Rio Grande do Sul, somados.

Isso pra não mencionar que capitalistas lucraram diretamente com a catástrofe, como os grandes mercados que venderam todos seus estoques de água engarrafada para pessoas desesperadas, muitas vezes a preços abusivos, e ainda tiveram recordes de vendas com a generosidade de pessoas comuns que compravam itens para doar a quem perdeu tudo. E vão continuar lucrando enquanto as pessoas afetadas e aquelas que se solidarizam com elas estiverem lutando para reconstruir o que foi perdido.

APOIO MÚTUO DE BASE

O apoio mútuo e a solidariedade entre pessoas atingidas se mostrou essencial para a sobrevivência e para não deixar a situação se tornar ainda pior. Ainda assim, a prefeitura de Porto Alegre tentou atrapalhar grupos voluntários que organizaram centros de doações em espaços cedidos e os mantiveram funcionando durante semanas, ao fazer acordos com os proprietários dos imóveis para que estes assumissem as operações que até então eram autogeridas pelas voluntárias, que foram então excluídas e criminalizadas. Em outro episódio, dia 20 de maio, a Polícia Militar apreendeu caminhão usado para distribuir comida a pessoas afetadas pelas enchentes. A polícia alegou que o caminhão da Cozinha Solidária da Azenha, ligada ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), estava sem licenciamento, porém não era possível fazer o licenciamento já que o sistemas estavam fora do ar em todo o estado devido aos efeitos das chuvas.

De fato, na grande maioria dos bairros, o auxílio às pessoas afetadas pela enchente ficou a cargo da própria comunidade e outros grupos voluntários que se articularam para garantir suprimentos de água, comida, roupas e agasalhos. Esse foi o caso das pessoas encarceradas ilhadas em presídios da região, sem acesso à água, alimento e itens de higiene. Coube às famílias, também afetadas pelas cheias, se organizarem para levar tais itens básicos e, assim, evitar o sofrimento ainda maior de pessoas sequestradas atrás das grades.

Cozinha Solidária da Azenha, organizada pelo MTST em Porto Alegre.

Outro exemplo é do Quilombo dos Machado, no bairro Sarandi, em Porto Alegre, que, com o apoio de outros quilombos urbanos da cidade, organizou essas operações por semanas, sem qualquer suporte do Estado. Como disse Luiz Machado, morador do Quilombo dos Machado, “esse acolhimento que o Estado devia estar fazendo, a comunidade, a gente pela gente mesmo está fazendo”. Quando a comunidade do Quilombo solicitou ajuda ao governador Eduardo Leite, do PSDB, este respondeu que “o Estado e o poder público não tem estrutura para atender todas as pontas”.

A cada declaração, as palavras do governador evidenciam uma versão da necropolítica brasileira e do racismo ambiental, desenhando um sistema voltado para cumprir demandas econômicas dos ricos, garantir lucros e votos em vez de destinar recursos para estruturas que podem salvar vidas – especialmente se for o caso de populações pobres, negras e indígenas, como é o caso dos grupos mais atingidos pelas atuais enchentes. Ressaltamos que não se trata de inação ou falha do Estado. Essas situações são partes do projeto de extermínio em curso.

Chamado para doações para ocupações anárquicas e autônomas atingidas pelas enchentes em Porto Alegre.

DEPOIS DA CATÁSTROFE: AÇÃO DIRETA

Os governos municipais e estaduais pretendem construir cidades temporárias para as dezenas de milhares de pessoas desabrigadas, até que os bairros onde moravam sejam reconstruídos ou novas habitações sejam construídas em outros locais. No entanto, a construção de moradias temporárias são desnecessárias e apenas desperdiçarão materiais e energia. Só em Porto Alegre existe mais de 100 mil residências vazias. No centro da cidade, 30% das habitações estão desocupadas. Um número 10 vezes maior do que o número de lares temporários planejados na cidade. Esse plano nada mais é do que mais uma forma de gerar lucro para as empreiteiras e para políticos alavancarem sua popularidade através de medidas populistas e ineficazes, que não atacam as raízes do sofrimento e da desigualdade. Pior do que isso, é uma tentativa de deslocar a população pobre e negra para longe de áreas cobiçadas pelo Estado e por empreiteiras, abrindo caminho para a apropriação de seus antigos lares por construtoras e seus projetos predatórios.

Como resposta ao problema da falta de moradia, novas ocupações de prédios estão surgindo. Um movimento autônomo de pessoas desabrigadas ocupou um antigo hotel abandonado no centro de Porto Alegre para acolher 45 famílias. O Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLN) ocupou também outro prédio, agora chamado de Ocupação Rexistência, dedicado a abrigar dezenas de famílias de pessoas atingidas pela atual crise. Membros do movimento alegam que não querem a construção de uma “cidade provisória” para famílias afetadas, e sim que os imóveis vazios sejam destinados imediatamente para a moradia. No dia 8 de junho, o MTST ocupou um prédio abandonado de 25 andares do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), também em Porto Alegre, para abrigar famílias desabrigadas pelas enchentes. Provando mais uma vez que os movimentos sociais e a ação direta estão sendo muito mais eficientes do que os governantes para abrigar as 160 mil pessoas que perderam suas casas.

Ocupação Maria da Conceição Tavares, surgida em junho, em Porto Alegre para abrigar vítimas das enchentes.

Para políticos e empresários, a reconstrução da cidade é uma oportunidade de lucrar. Serão necessárias quantidades gigantescas de materiais para reconstruir a infraestrutura e as casas destruídas pela água. E capitalistas vão lucrar produzindo e vendendo esses materiais. Empresas serão contratadas através de licitações feitas às pressas. E, como em toda ação do Estado aliado ao Capitalismo, haverá atrasos, corrupção, superfaturamento, desvio de verbas, favorecimentos.

Não vamos nos iludir, pois nem mesmo os supostos governos de esquerda, como o governo federal do PT, têm coragem e poder para atacar de frente o capitalismo e sua turba de defensores reacionários. Não importa qual partido estava ou estará no governo, da centro-esquerda democrática do PT até a extrema-direita lunática de Bolsonaro, o Estado brasileiro está intrinsecamente conectado ao capitalismo, ao enriquecimento de uma elite, barganhando o futuro da vida no planeta em troca de governabilidade.

CONCLUSÃO: NÃO EXISTE CATÁSTROFE NATURAL

A tragédia que devastou o território ocupado pelo estado do Rio Grande do Sul não foi simplesmente uma catástrofe natural inevitável. É mais um em uma série de eventos climáticos extremos que estão acontecendo com frequência e intensidade cada vez maior como resultado de décadas de destruição e exploração do planeta, ignorando alertas de cientistas e reprimindo a autodeterminação e resistência de movimentos sociais e povos tradicionais, em nome do crescimento econômico. Um sistema brutal onde Estado e capitalismo se unem para saquear a terra e explorar nossos corpos, ao mesmo tempo em que sabotam medidas que podem diminuir ou evitar os impactos desses eventos na vida da população.

Sentimos localmente as consequências de um problema global. O mesmo sistema que causa inundações no Rio Grande do Sul causa incêndios no Pantanal e na Amazônia, promove genocídio em Gaza para controlar reservas de gás natural e oprime estudantes que se levantam contra esse massacre; contamina a água, viola territórios indígenas e afunda bairros inteiros para arrancar da terra minérios cobiçados, destrói florestas, oceanos, montanhas e desertos para garantir lucro a um punhado de pessoas privilegiadas, enquanto condena bilhões ao sofrimento e à miséria.

Se por um lado o Estado e o capitalismo mostraram mais uma vez que sua prioridade não é o bem-estar da população ou a vida de modo geral, por outro pudemos perceber que a solidariedade brota espontaneamente e somos capazes de nos apoiar mutuamente, suplantando até sérias diferenças ideológicas.

Milhares de pessoas tomaram a frente e organizaram resgates, com seus próprios recursos, arriscando suas próprias vidas para salvar a de outras pessoas, humanas ou não. A criação de abrigos e pontos de apoio como centros de distribuição de doações e cozinhas solidárias e emergenciais, que produzem diariamente milhares de marmitas para as pessoas desabrigadas, transportadas por motoristas voluntárias. Tudo mantido por uma rede massiva de solidariedade, que se estendeu para fora das regiões afetadas pelo desastre, se alastrando por todo território ocupado pelo Estado Brasileiro, e outros países.

Quando o desastre se instaurou, a meritocracia e o individualismo foram rapidamente deixados de lado pela maior parte da população, que dedicou seu tempo a ajudar outras pessoas sem se perguntar se elas mereciam aquela ajuda e sem esperar qualquer recompensa por isso. Pessoas que pagaram do seu próprio bolso para garantir que outras pessoas tivessem o que vestir e o que comer, compartilhando recursos materiais sem exigir uma troca financeira. Foram essas pessoas que colocaram suas vidas em risco para garantir a sobrevivência de outras. No meio da catástrofe, muitas as tiveram a chance de perceber que estamos todas juntas nisso e que dinheiro é de pouca ajuda quando não há mais água para vender no mercado.

O Estado e o mercado farão o que estiver ao seu alcance para assumir e centralizar as ações de solidariedade auto-organizadas. Seja tomando à força o controle das operações, requisitando os imóveis utilizados para retomada de aulas ou dos trabalhos, coagindo as pessoas a voltarem aos seus empregos ou formalizando e institucionalizando as organizações que permanecerem. Nossa auto-organização e nossa solidariedade irrestrita são uma ameaça real ao governo e ao capitalismo, pois eles dependem da nossa desunião, da nossa indiferença e inação frente ao sofrimento das outras pessoas.

Para evitar que capitalistas usem essa e as próximas catástrofes para avançar seus projetos destrutivos precisamos continuar nos mobilizando e nos coordenando. Cabe a nós nos organizarmos para tomar e ocupar imóveis ociosos e abandonados e garantir que sejam usados para benefício de nossas comunidades. Certificar-nos que prédios de igrejas sejam usados para apoiar pessoas em necessidade e não para espalhar ódio e intolerância. Lutar para que ninguém lucre com a tragédia, para que os recursos sejam distribuídos a quem precisa. Se precisamos reconstruir nossas vidas e nossas cidades, vamos ter certeza de construir algo melhor, mais justo.

Se o que se chama de humanidade tem futuro, esse futuro será coletivo. Ou, simplesmente, não será.


Entrevista com membros do Território Okupado dos Mil Povos

A Okupa dos Mil Povos é uma ocupação com quase 20 anos de história em Porto Alegre. Localizada em um dos bairros mais afetados pela enchente, o território ficou submerso por 24 dias. Dentre os habitantes, estão crianças, cães e gatos que ainda sofrem com os efeitos da água, da lama, dos óleos e produtos químicos que restaram depois das enchentes. Além dos efeitos causados pelos produtos para limpeza pesada necessários para reativar e retomar o espaço. Nessa breve entrevista, conversamos com participantes da ocupação sobre os desafios e os trabalhos de solidariedade e captação de recursos para recuperar o espaço e retomar a vida após a tragédia, agora que, mais do que nunca, catástrofes climáticas não são mais uma ameaça futura, mas parte do presente de todos que sobrevivem ao capitalismo.

1. Fale um pouco da Okupa dos Mil Povos, sua atuação nos últimos anos e como as enchentes de maio afetaram os espaço, a vida e as atividades no espaço.

O Território Okupado dos Mil Povos nasce como um coletivo autônomo no começo do ano de 2021. Este coletivo anárquico, composto por várias pessoas vindas de diferentes partes do mundo, surge dentro de uma okupa surgida em 2005 quando expropriou o capitalismo e a especulação imobiliária para construir uma alternativa real à vida inerte do neoliberalismo imperante. Nestes poucos anos de vida como coletivo deu rédea solta ao acúmulo de conhecimentos que o Movimento Anarkopunk construiu durante décadas, seguindo também a herança rebelde e combativa de muitas gerações de anarquistas que deram suas vidas para construir o presente de luta que hoje levamos a cabo com autogestão e ação direta. Temos sido parte ativa da Teia dos Povos em luta do Rio Grande do Sul, criando e mantendo uma banca de difusão de material teórico e gráfico por 2 anos, aproximando as pessoas das ideias de autonomia da Teia que se expande por todo o Brasil.

Construímos junto com aldeias indígenas e quilombolas a 5ª Assembleia dos povos (2022), realizamos também jornadas de saúde com indígenas Warao que imigraram desde a Venezuela, autofinanciamos com rifas e vendas de camisetas serigrafadas a casa de cura e reza para a comunidade Kaingang na retomada em Canela, na Serra Gaúcha, bem como muitas jornadas de construção, hortas, muralismo (2022), conversas e discussões. Fomos parte de um coletivo de propaganda e muralismo que se reunia no Ateneu Batalha da Várzea (2021, 2022). Neste Ateneu nosso coletivo realizou em 2022 uma jornada de difusão sobre os conflitos na América Latina que chamamos de “latinoamérica em chamas”, onde tivemos participações desde a Colômbia, Equador e Chile.

Realizamos chamados abertos de manifestações de rua, denunciando a perseguição e desaparecimento de indígenas Yanomami (2022) e em apoio ao povo colombiano em 2021. Visitamos, acompanhamos e promovemos retomadas de territórios ancestrais ao lado de povos indígenas Kaingang, Xokleng e Guarani. Escrevemos pelos muros da cidade de Porto Alegre mil vezes, de dia e de noite, em manifestações ou na escuridão da noite.

As inundações de maio somente confirmam e reafirmam que a luta contra o capitalismo e os Estados de todo o mundo é cada dia mais imprescindível e vital. Nossa casa, junto com o espaço comunitário, ficou debaixo d’água, debaixo do barro, dos químicos e óleos contaminantes por mais de 20 dias. Seguiremos limpando e continuaremos construindo autonomia e rebeldia popular anárquica, sem líderes nem partidos, até destruir o último pilar da sociedade carcerária.

Território Okupado dos Mil Povos

2. Como tem sido organizadas as ações de apoio mútuo agora, um mês após as enchentes?

Agora, após o primeiro mês desde a inundação, já não sobra mais doação que não seja institucionalizada ou burocratizada com registros sociais e persoais. Neste contexto, para nós é muito difícil recuperar algo desde essas plataformas. Nossas únicas entradas de dinheiro, por assim dizer, são de companheirxs solidárixs e de pessoas conhecidas que sabem de nossa situação e nos ajudam com alguma coisa. Seguimos muito necessitadxs de coisas básicas como camas, uma cozinha e uma geladeira. São coisas que não temos acesso por falta de recursos econômicos, com nossos trabalhos não conseguimos cubrir os gastos de coisas como essas. No começo chegaram todas as ajudas e, apesar de não ter sido suficiente frente a tudo o que perdemos, ficamos muito felizes de sentir e ver o apoio mútuo de pessoas, em especial dos meios anárquicos, que é onde mais se vê a solidariedade em um momento de perdas como este. Também vemos uma constância na geração e acumulação de dados por parte da maioria das ONGs e instituições de entrega.

3. Quais ocupações foram afetadas e como tem sido a colaboração entre centros sociais radicais, ocupações e outros movimentos para se reerguer?

Em Porto Alegre existem várias okupações, todas muito diferentes umas das outras, de tendências de esquerda e outras também anarquistas, de dissidências de gênero etc. Desde nossa experiência enquanto casa, creio que o apoio entre esses centros tem sido quase nulo, é triste, mas real. Existe um centro social não okupado que fez uma ponte entre esses espaços anarquistas, o coletivo “Esp(A)ço” fez uma campanha grande onde conseguiram comprar algumas ferramentas coletivas que, em certo sentido, foi a ponte para o mínimo de diálogo e comunicação. É importante assinalar que as relações de afinidade pessoal também levam e trazem esse fluxo de comunicação que não é tão visível, mas existe. No final das contas, todxs sabemos como estão xs companeirxs de outros espaços por esse boca-a-boca que desde as sombras se comunica. Outros canais de entrega de doações normalmente são muito limitados e precários, além de burocráticos. Em geral nós recebemos pouca coisa e nos dedicamos a contribuir com outros espaços de resistência, apesar de não sermos tão próximxs em relação ao pensamento e a ação. Vemos a urgência da necessidade de coordenação mínima de espaços anárquicos e também na construção de instâncias colectivas meramente ácratas.

4. Como pessoas de fora do Rio Grande do Sul e também de fora do Brasil podem ajudar o trabalho de reconstrução e retomada das atividades nas ocupações em Porto Alegre e região?

Para responder a última pergunta, gostaríamos de dizer que vemos a solidariedade ácrata desde vários pontos de vista. O primeiro é o material, sem dúvida, muitas vezes é urgente para o cotidiano e a subsistência. Nesse sentido, ainda temos canais abertos para receber apoios desde qualquer parte do planeta. Acreditamos que a solidariedade combativa é muito importante. Seguir fortalecendo a luta frontal contra todas as estruturas de poder também faz parte da ferramenta chamada solidariedade. Outra dimensão importante que vemos é a comunicação para além do Instagram ou Facebook. A conversa direta é importante para aproximarmos as diferentes realidades e gerar afinidades futuras. Para terminar, agradecemos a todxs que ainda acreditam que a anarquia é possível, que construí-la é uma tarefa cotidiana e que se esforçam para viver cada dia mais concretamente suas ideias de liberdade!!!

Abrazos para todxs!!!

Desde el territorio okupado de los mil pueblos,
8 de junio 2024, Porto Alegre
Individualidades organizadas y colectivo anárquico de los mil pueblos


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Contra a Criminalização da Revolta! Fim do processo contra Caio e Fábio!

2013: 10 anos depois, a revolta pode ir a julgamento novamente

A justiça do estado do Rio de Janeiro definiu a data do júri popular dos ativistas Fábio Raposo Barbosa e Caio Silva de Souza, acusados pela morte do cinegrafista Santiago Andrade em fevereiro de 2014. A sessão plenária do 3º Tribunal do Júri está prevista para as 12h, do dia 12 de dezembro de 2023. Fábio e Caio respondem por homicídio doloso qualificado e explosão. Há quase dez anos, Santiago foi atingido por um rojão na cabeça enquanto registrava confrontos entre manifestantes e policiais sem qualquer tipo de equipamento de proteção, para a TV Bandeirantes, no Centro do Rio, perto da Central do Brasil. Apesar do que o Estado, através do punitivismo populista penal e a mídia, através do linchamento discursivo, tentam emplacar, Caio e Fábio não poderiam ser responsabilizados pela morte de Santiago Andrade. A explosão de um artefato como aquele não tem previsibilidade e, portanto, qualquer noção de intenção teria que ser descartada. Se fizéssemos dez reconstituições do incidente, obteríamos dez resultados diferentes. Além disso, não existe nenhuma prova conclusiva de que o morteiro que acertou o jornalista tenha sido disparado pelos manifestantes, já que existem relatos de testemunhas, de que naquele dia, a própria polícia estava com morteiros.

A criminalização de Caio e Fábio se confunde com a própria criminalização da revolta popular, e foi a maneira que o Estado encontrou para tirar as pessoas das ruas no Rio de Janeiro. Lembrando que até aquele momento na cidade as manifestações atraíam grandes massas e contavam com grande apoio popular. Somente através da fabricação de uma acusação de assassinato, diante de um terrível e evitável acidente sofrido pelo jornalista Santiago foi possível emplacar um discurso para fazer as pessoas temerem sua própria capacidade de insurreição. Importante ressaltar que a rede Bandeirantes enviou Santiago para uma zona de conflito sem nenhum material de proteção.

Diante disso, o julgamento segue confirmado sem que a rede bandeirantes tenha liberado as imagens completas que estavam na câmera do jornalista quando foi atingido. A emissora foi intimada a entregar essas imagens, mas entregou apenas uma parte claramente editada. Não podemos então deixar de perguntar: o que há para se esconder nesses arquivos? Por que querem que os manifestantes sejam julgados sem que essas imagens apareçam? Nossa luta neste momento é para que o julgamento seja adiado e não ocorra dia 12 de dezembro sem que a defesa tenha acesso às imagens completas, garantindo assim o amplo direito de defesa de Caio e Fábio. Mas é também pela sua absolvição e pela extinção de todos os processos fabricados, envolvendo manifestantes e lutadores das jornadas de 2013.

Sabemos que os verdadeiros assassinos seguem matando diariamente e de muitos modos na nossa sociedade. Sabemos que o caso em questão é apenas mais um para barrar a autodefesa popular e criar uma situação de pânico diante da exploração da morte e do sofrimento pela mídia, que sabemos ser sempre convenientemente seletiva, para que a revolta seja tirada de cena. Fazer isso é instrumentalizar a morte e a dor das pessoas para um fim político e de controle social. Não há qualquer respeito genuíno com o sofrimento das pessoas quando se usa vidas dessa forma. O que é, aliás, o modo geral de proceder do capitalismo: a instrumentalização dos afetos.

O caso lembra o que ocorreu na Grécia, em 2010, quando um incêndio em um banco durante um protesto levou três pessoas a óbito, e isso foi amplamente usado para jogar a opinião pública contra os protestos, esvaziar as ruas, e gerar um pânico na população, como se se rebelar pudesse gerar mais mortes do que as próprias políticas de austeridade que se pretendia barrar. Sabemos, entretanto, que isso não é verdade, que os bancos ceifam direta e indiretamente muito mais vidas do que qualquer incêndio. Que se as mortes convenientes, quando não são diretamente fabricadas, são pelo menos facilitadas e exploradas para abafar as revoltas. As inúmeras mortes diárias contra as quais nos revoltamos seguem numerosas e constantes, sendo naturalizadas e tomadas como inevitáveis.

A morte de Santiago não foi a única morte em contexto de manifestações, tivemos manifestantes jogados de uma ponte pela polícia; tivemos professoras asfixiadas com gás; e não é como se não morressem tantas pessoas diariamente pela violência policial; pela precarização da vida; pelos motivos que justamente levaram a população às ruas para protestar. Mas as mortes invisíveis, de tantas pessoas matáveis, foram contrapostas pela morte de um “cidadão de bem”, o acidente conveniente foi então usado como instrumento e moeda de troca para que a revolta se tornasse condenável. Mas quem usa pessoas como moeda, que nos usa como um meio para aumentar suas riquezas e poderes, não se importa de fato com a vida. Por isso defender Caio e Fábio é defender a possibilidade da revolta, é defender o direito a uma outra forma de vida diante do capitalismo que cada vez mais nos tira as mínimas condições de sobrevivência. Somos todys nós que não nos conformamos com essa vida sem o mínimo, que não nos calamos diante das opressões, e que lutamos por uma outra sociedade livre e igualitária, que também estamos indo a júri sem direito de defesa.

FIM DO PROCESSO PARA CAIO E FÁBIO!

NÃO PODE HAVER JÚRI SEM ACESSO ÀS IMAGENS!

VIVA A ANARQUIA!

Anarquia e Luta Conjunta na Palestina e em Israel – por Uri Gordon

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O presente texto foi lançado em 2007 como um capítulo do livro “Anarquia Viva!”, escrito pelo anarquista israelense Uri Gordon. O capítulo mobiliza análises sobre as lutas e perspectivas anarquistas na faixa palestina ocupada militarmente pelo Estado de Israel. Achamos oportuno fazer circula-lo em formato zine/brochura agora que o genocídio palestino perpetrado por Israel atinge uma nova etapa, já considerada a mais letal da história desse conflito. Também porque, como se observa há mais de 75 anos, as tecnologias coloniais de ocupação militar e controles ambientais usadas pelo Estado de Israel dá o tom de como diversos grupos armados estatais atuam na contenção e extermínio de grupos resistentes.

No dia 7 de outubro de 2023, o braço aramado do grupo palestino Hamas lançou um ataque surpresa no território reivindicado por Israel. Ao menos 1.400 pessoas foram mortas, a maioria civis e outras centenas foram feitas de reféns. Ação que expôs o óbvio da atual utopia securitárias das democracias: não existe sistema de segurança, por mais hightech que seja, imune à ataques, pois as pessoas que vivem sob a violência estatal ostensiva e permanente vão reagir por diversos meios, legítimos ou não.

O Estado israelense respondeu com um cerco total à Faixa de Gaza, cortando os suprimentos de alimentos, água, energia e combustíveis, e bombardeando indiscriminadamente a região com ataques aéreos, enquanto prepara uma grande ofensiva terrestre que foi colocada em marcha no dia 28 de outubro, produzindo um montante de mortes e destruição sem precedentes.
Nos primeiros seis dias de conflito mais de 6 mil ataques aéreos a Gaza — uma das regiões com a maior densidade populacional do planeta — atingiram principalmente alvos civis, incluindo hospitais, escolas, prédios residenciais e rotas de saída através das quais parte do povo palestino e cidadãos de diversos países tentavam fugir da área de conflito e dos campos para pessoas refugiadas. Até a conclusão desta edição, um mês após o primeiro ataque, esses bombardeios mataram mais de 10 mil pessoas, incluindo mais de 5.000 crianças, e feriram outras centenas de milhares. Mais de um milhão de pessoas foram forçadas a deixar suas casas e muitas estão desaparecidas sob os escombros de prédios residenciais, escolas, hospitais e universidades bombardeadas por Israel.

Este é apenas o capítulo mais recente de mais de um século de violência colonial genocida contra o povo palestino. O Estado de Israel comprova que não surge como uma resposta, mas uma continuação das práticas de extermínio do Holocausto, já que mobiliza as mesmas tecnologia políticas de contensão, controle e execução perpetradas pela Alemanha nazista, mas contras os povos que habitam a faixa de Gaza e com acréscimo de um militarismo hightech. Mesmo antes os ataques do Hamas em outubro, a política de Apartheid e terrorismo do etno-estado israelense reproduz a mesma lógica dos guetos nazistas tanto na Faixa de Gaza quanto na Cisjordânia, onde o Hamas sequer tem atuação, e colonos e as forças de segurança israelenses praticam torturas, fuzilamentos, sequestros e bombardeios.

Menos de dois anos antes dos ataques do Hamas e da agressão genocida israelense, houve o início da invasão russa e a guerra na Ucrânia. Ambos ressaltam os interesses geopolíticos e militares que atravessam os territórios e trazem ao debate o fantasma de uma nova guerra mundial nuclear. E em ambos, anarquistas e demais movimentos radicais de base ressaltam a importância da solidariedade internacionalista, a autodefesa e a autodeterminação dos povos.

O texto de Uri Gordon aborda as origens socialistas e internacionalistas dos kibutz nos anos 1920, antes da política sionista se materializar em um Estado étnico-nacionalista; as contradições e desafios dentro da luta anarquista e anticapitalista radical em geral ao se envolver no conflito Palestina/Israel junto aos povos; e também aponta para algumas saídas possíveis. Ademais, demonstra que não há saída para o conflito mais significativo de nossa era pela via estatal, confirmando a hipótese histórica dos anarquistas no século XXI. Também contribui para que o debate, que os novos ataques militares de Israel suscitam, saiam do binarismo e possam ser abordados de um perspectivas da diversidade dos povos contra a violência dos Estados.

Baixe, leia, copie, distribua e organize a solidariedade!

Facção Fictícia,
primavera de 2023.


Para saber mais, recomendamos o recente vídeo do coletivo Antimídia:

Do Rio Ao Mar – Uma mensagem pela libertação da Palestina

BLACK BLOCS E LIBERTAÇÃO ANIMAL – 10 anos de uma das ações radicais mais emblemáticas de 2013

Exatamente 10 anos atrás, em outubro de 2013, um protesto contra o uso de animais em testes realizados em um laboratório no interior do estado de São Paulo se transformou em uma das mais emblemáticas ações diretas daquele ano que mudou o cenário político e os movimentos sociais no Brasil. O evento por si só já chama a atenção pelo tamanho, pela eficiência das diferentes ações e pelo sucesso alcançado, ainda mais no contexto brasileiro, pouco familiarizado com ações radicais pela libertação animal aliada a uma perspectiva anticapitalista.

Acreditamos ser importante revisitar tais acontecimentos para aprender com suas limitações e desenvolver seus acertos no que diz respeito a diversidade de táticas, coordenação de diferentes movimentos, radicalidade e contundência da ação que pode inspirar outros grupos e novas campanhas. Para isso, revisitamos essa breve análise e entrevistas feitas logo nas semanas seguintes com duas participantes das linhas de frente dessas ações.

A ação em São Roque: bons exemplos mas não um modelo pronto

Após dias acorrentadas nos portões do Instituto Royal, na cidade de São Roque, denunciando o uso e o assassinato de animais com técnicas como a vivissecção (cortar animais ainda vivos e sem anestesia para experimentações), ativistas atraíram a atenção da mídia e de outras organizações para a causa. E na madrugada do dia 18 daquele mês a manifestação se tornou uma ação de resgate dos animais que libertou quase 200 cães da raça beagle e dezenas de ratos. Toda a ação foi fotografa e filmadas pelas participantes.

Do lado de fora do laboratório, a estrada foi tomada por barricadas logo pela manhã. Uma viatura da polícia militar e um carro da imprensa foram queimados por manifestantes. Algumas pessoas menos acostumadas com a dinâmica de resistência em protestos de rua ainda tentaram formar uma barreira para proteger os carros de emissoras de TV da destruição, mas não adiantou. Do lado de dentro, jaulas foram esvaziadas, computadores, documentos e materiais de pesquisa foram destruídos. Paredes pixadas por símbolos da Frente de Libertação Animal (ALF) e ruas tomadas por Black Blocs que montaram barricadas para impedir que a tropa de choque chegasse ao laboratório e prendesse manifestantes.

Carro de emissora de TV depredada e viatura da Polícia Militar incendiada na estrada em frente ao laboratório.

Para muitas pessoas ali, era como se enfim chegasse o dia que toda uma geração de movimentos pela libertação animal, anticapitalistas e anarquistas sonharam e trabalharam para ver. Era o momento em que táticas radicais se encontram, convergem permitindo que movimentos distintos, com táticas distintas, operassem em conjunto para uma ação efetiva. Foi possível atingir tanto seu objetivo imediato (resgatar os animais e impor consequências ao laboratório pelo uso e tortura dos mesmos), quanto objetivos de médio e longo prazo (o fechar o laboratório e a educar a opinão pública sobre o tema). A ação chamou a atenção do público geral e tomou as notícias em todo o país, provocando uma mudança inédita no imaginário das pessoas sobre o que é possível fazer em uma ação direta pelos animais e educando as pessoas sobre o quão perverso e inútil são os testes em animais e o uso dos animais para qualquer fim. Tudo isso devido a uma janela de possibilidades aberta nas ruas em junho de 2013 nos grandes levantes contra o aumento das passagens no transporte público.

A invasão do Instituto Royal é um exemplo emblemático mas que também desperta curiosidade e demanda reflexão. Como nas ruas tomadas na luta contra o aumento em todo o país em junho daquele ano, a batalha em São Roque contou com a presença de uma grande diversidade de pessoas. Diferentes idades, posições políticas, classes sociais e também diferentes táticas e modos de luta e organização: ativistas que defendem o “bem estar animal” (ou que focam sua ação apenas em cães e gatos) estavam lado a lado com grupos veganos anticapitalistas. Personalidades da TV ou manifestantes de classe média que defendem a causa animal protegidas atrás de barricadas feitas por Black Blocs anarquistas. Um mosaico de inúmeras formas e contextos de luta se aliaram com um objetivo comum. A articulação prévia de longos dias foi organizada por um número reduzido de pessoas e catalisou a luta que surgiu de forma espontânea para centenas de pessoas que aderiram ao movimento imediatamente após um chamado aberto para a ação direta. Uma estratégia improvisada e repentina se tornou a principal arma contra uma polícia despreparada e incapaz de prever os movimentos de pessoas determinadas a agir.

Animais foram resgatados, o laboratório declarou falência e o impacto nas leis e na opinião pública foi maior do que todo o ativismo estritamente legalista ou outros protestos simbólicos contra a empresa durante os cinco anos anteriores: até o início de 2014, novas leis que regulam e restringem o uso de animais em testes foram aprovadas, incluindo a proibição desse tipo de teste para cosméticos em todo o país. O que nos prova que mesmo quando as pessoas querem apenas reformas, novas leis ou o fim de uma instituição opressiva, é melhor demonstrar força popular para realizar essas mudanças por nossas própria ações do que pedir pacificamente e esperar a boa vontade de poderosos. Se nos mostrarmos irredutíveis e com disposição para ação, as autoridades vão correr para nos atender antes que consigamos algo por nossa conta. Nesse momento é que os movimentos devem buscar ainda mais força para dobrar as autoridades.

Manifestantes rompendo as barreiras policiais e ativistas resgatando cães dentro das dependências do Instituto Royal.

A invasão ao Instituto Royal serve com um exemplo de sucesso obtido quando a organização de longo prazo encontra a imprevisibilidade de ações imediatas, inovadoras e capazes de mudar de táticas para encontrar uma brecha no sistema, antes que a repressão policial seja capaz de reagir à altura. Questionando o discurso tradicional das lutas sociais legalistas, vimos que a diversidade de táticas e de formas de organização, quando aliadas, podem ser a chave para vitórias que tornam possível o que era até mesmo impensável.

Ainda assim, o episódio é um bom exemplo e não um modelo ou receita a serem seguidos metodicamente. Mais do que buscar repetir suas táticas e etapas de ação, é preciso entender e assimilar as posturas que permitiram o sucesso da ação. Mesmo conflituosa e divergente para muitas pessoas que participaram, a ação mostra que uma diversidade de táticas e frentes de luta diferentes pode ser muito mais eficientes, tanto a curto quanto a longo prazo. Diferentes níveis de luta, como ação direta e confronto com forças de repressão, mídia independente e autônoma, comissões legais e porta-vozes, ajudam a distribuir a legitimidade dos movimentos e torna difícil a tentativa do Estado de isolar e silenciar “minorias infiltradas” ou “grupos radicais” do resto da luta. Essa harmonia e cumplicidade entre formas diferentes de ação se mostrou muito efetiva para libertar os animais, impor danos ao laboratório e não dividir o movimento entre “legítimos” e “ilegítimos”, “legais” ou “ilegais”, impedindo que as autoridade encontrassem divisões fáceis entre participantes que permitisse isolar e prender quem realizou ações ilegais de invasão, dado a propriedade.

O sucesso imediato e a continuidade do debate sobre o uso de animais como objetos e sua condição de propriedade em um sistema capitalista conseguem ir para além do reformismo bem-estarista (que visa apenas regular o uso de animais) e desafia o moralismo burguês dos movimentos abolicionistas (que lutam para que nenhum animal seja considerado propriedade) que se baseiam, muitas vezes, em princípios pacifistas como valores absolutos.

Black Blocs formando um cordão de proteção para bloquear o avanço da polícia em direção ao laboratório.

É necessário sempre repensar táticas, ser capaz de inovar e sempre fazer uma autocrítica. Não há problema na radicalização das ações antiautoritárias e de libertação. O problema não é atacar ferozmente o sistema, mas sim não continuar atacando. Somente a radicalização aliada ao debate sobre uma diversidade de táticas e discursos pode impedir que a legitimidade das lutas seja determinada pela mídia, pelo Estado ou por ativistas privilegiados – empresários, apresentadoras de TV e políticos – que buscam sequestrar lutas sociais organizadas por pessoas anônimas ou invisibilizadas como forma de acumular ainda mais poder e privilégios.

Para compreender um pouco mais de como foi a luta por trás das barricadas e por baixo das máscaras, publicamos aqui dois relatos escritos por pessoas que estiveram na invasão do laboratório. Elas contam como foram esses momentos de luta e descrevem sua importância para ações futuras. É preciso mais debates e, principalmente, mais ações que desafiam as leis e as “receitas de bolo” revolucionárias.

Por uma luta de libertação animal e humana total, radical e anticapitalista!

Primeiro Relato:

Em meio ao instável cenário político que veio após os protestos de junho de 2013, ativistas pelos direitos animais começaram uma campanha para fechar o Instituto Royal, um laboratório localizado no interior do estado de São Paulo conhecido pelos testes em animais e pelas práticas de vivissecção.

Após alguns dias atraindo atenção para o assunto e para esse estabelecimento em particular, a noite que mudaria como a mídia, a população e até legisladores encaram a vivissecção estava por vir. E sua história seria escrita através da ação direta. Naquela noite, em especial, as pessoas se reuniam em frente ao portão do laboratório atraídas pelas notícias que circulavam nas mídias sociais. No momento que cheguei àquela área rural cortada por estradas de terra e algumas poucas casas, a polícia estava guardando os portões e podíamos ver funcionários e seguranças privados andando dentro do prédio. Caminhões entravam e saíam, aparentemente, levando documentos e animais por medo de uma invasão. Mas essa não era uma ação da Frente de Libertação Animal (ALF). Pessoas de todos os tipos estavam presentes. Algumas só se importavam com os beagles, outras com apenas cães e gatos em geral, outras eram ativistas dos direitos animais. Black Blocs também estavam lá e até apresentadoras de TV que apoiam causas animais chegaram pois a mídia começou a divulgar que uma invasão estaria para acontecer. O que fez com que a mídia burguesa aparecesse e também mais pessoas em geral.

A polícia logo ficou em menor número e claramente incapaz de lidar com o fenômeno que tomava forma ali. É importante lembrar que São Roque fica a uma hora de qualquer cidade maior. Em poucas horas éramos muitas à postos naquela estrada sem saída cercada de mato. A estrada termina em um portão com uma largura que cabe 15 pessoas enfileiradas. De repente não parecia mais ser uma barreira e a polícia já demonstrava não estar preparada para a situação. O que pode dizer que eles poderiam reagir de forma desproporcional, mas como não se tratava do batalhão de choque, era mais provável que iriam apenas recuar. Especialmente devido à diversidade da multidão composta por senhoras de cinquenta ou sessenta anos junto a estudantes e pessoas vestidas como um Black Bloc.

Por volta da meia noite os carros do laboratório não conseguiam mais sair pelo portão e os latidos dos cães nos lembrava que as pessoas do lado de fora não eram as únicas apreensivas. Redes sociais funcionavam fortalecendo centenas de nós que estavam ali. Às duas da manhã, no dia 18 de outubro, ficou óbvio que haveria uma invasão. Bastou alguém tomar a iniciativa de começar a bater no cadeado do portão com uma pedra para que todo mundo ver que estava na hora. O portão já estava sendo derrubado enquanto gente cortava as cercas e a multidão pressionava em todas as possíveis entradas.

Entramos! Uma pequena estrada leva ao prédio principal, com mais portas a serem quebradas e arrombadas. A polícia só conseguia olhar e a mídia estava lá dentro também com as câmeras ligadas. A maioria das pessoas usava máscaras como em um resgate aberto. Algumas de nós, que temiam o que podia acontecer depois, tínhamos o cuidado de cobrir nossos rostos.

Um por um, quase 200 beagles foram transportados no colo subindo o morro até onde, há poucos minutos, havia um portão onde outras ativistas esperavam com seus carros – praticamente todo mundo chegou lá de carro porque não havia outro meio de transporte para o local a essa hora da noite. Quem libertava os cães de suas jaulas não sabia para onde eles estavam sendo levados. O que importava era que estavam sendo libertos da exploração. Isso foi útil quando ativistas que estavam lá dentro sob o foco das câmeras começaram a ser identificados e sofrer acusações por roubar “propriedade privada”. Como argumentamos, as chamadas “propriedades” nunca foram tomadas como posse daquelas pessoas que os tiraram de lá.

Um grupo de advogados voluntários se formou para defender quem era identificado e uma rede clandestina de veterinárias se dispuseram a remover chips que poderiam identificar animais adotados. Curiosamente, um deputado que atua na área de bem estar animal também estava presente durante o resgate, atraído pela presença da mídia e pela multidão de ativistas. Ele adotou dois beagles que passaram a morar em sua casa e poucos dias depois a mídia estava lá para filmar os cães e contar sua história. Em seu benefício, a lei brasileira diz que um membro do congresso não pode ser acusado desse tpo de crime enquanto exerce seu mandato. Para pessoas menos privilegiadas, podíamos apenas ter a companhia de alguns beagles que sofreram abusos, com sinais de mutilação e traumas psicológicos que às vezes são difíceis de notar.

A invasão foi realmente uma cena caótica, sem planejamento prévio, nenhuma direção e, provavelmente, não é um modelo a ser repetido. Sua espontaneidade foi a mágica que fez com que tudo fosse possível. Sua diversidade foi um fator que fez os números de participantes possíveis e a repressão impossível. A compaixão de todo mundo presente foi a força que ampliou seu significado para além dos indivíduos salvos.

Poucas semanas depois, após extensiva e persistente cobertura da mídia sobre o assunto, leis começaram a ser propostas na cidade, no estado e no país. A prefeitura mandou trancar o laboratório e manifestantes mantiveram a pressão até que o Instituto Royal anunciou seu fechamento no dia seis de novembro. Ainda assim, eles recusavam a liberar os animais que ainda estavam lá durante o primeiro resgate. Então uma nova e legítima ação da ALF realizada no dia 13 de novembro por uma pequena célula resgatou os 300 ratos que ainda estavam lá e nenhum animal esteve presente para testemunhar os últimos momentos do Instituto Royal.

Interior do laboratório atacado durante a madrugada.

Tendo em vista as elevadas e irreparáveis perdas e os danos sofridos em decorrência da invasão realizada no último dia 18 – com a perda de quase todo o plantel de animais e de aproximadamente uma década de pesquisas -, bem como a persistente instabilidade e a crise de segurança que colocam em risco permanente a integridade física e moral de seus colaboradores, os associados concluíram que está irremediavelmente comprometida a atuação do Instituto Royal para dar continuidade à realização pesquisa científica e testes mediante utilização de animais. Por este motivo, o Instituto decidiu encerrar suas atividades na unidade de São Roque”

Declaração do Instituto Royal em 06/11/2013 sobre seu fechamento.

Vídeo da segunda invasão ao Instituto Royal para resgatar ratos que ainda estavam presos.

Segundo Relato:

Nós fomos de carro de São Paulo a São Roque em três pessoas no segundo dia de manifestação. Ativistas que retiraram os cães ficaram a noite toda lá e, no dia seguinte, iriam retirar os roedores que restaram. Eu cheguei em São Paulo pela manhã e nós chegamos no instituto no começo da tarde, a Rodovia Raposo Tavares já estava interditada pela Polícia Militar muito antes. Chegando lá havia muito tumulto e uma divisão bem clara: de um lado, ativistas pacifistas pelos cães com faixas e dizeres cristãos, se recusando a cobrir o rosto e mantendo distância do conflito com a Tropa de Choque. Do outro, pessoas de máscaras e bandanas iam de encontro a linha policial. A polícia parecia estar evitando o conflito e focando na porta do instituto, que já estava fortemente protegida pela PM para evitar a segunda entrada dos militantes. Uma viatura foi incendiada e logo após outro carro de uma emissora de TV também estava em chamas. A polícia interviu muito após isso para tentar dispersar a manifestação e me juntei a um grupo que se formou para tentar entrar no instituto através da mata em volta. Pulamos uma cerca e tentamos dar a volta para entrar pela parte de trás onde não havia policia, mas havia helicópteros sobrevoando o local e nos escondemos em uma casa abandonada. De lá chegamos perto dos limites do instituto para encontrar com uma segurança privada, sem identificação e portando de armas de fogo.

A PM percebeu a tentativa de entrar por trás e começou a perseguir alguns manifestantes dentro da mata. O grupo inicial havia se dividido em vários por não concordar em como entrar no instituto. Havia ainda ativistas que se recusam a cobrir o rosto por insistir em que resgatar animais não consistia em crime. E foi esse o sentimento que persistiu do começo ao fim.

Considerando que as pessoas que organizaram a manifestação inicial são pacifistas e cristãs, houve muita desorganização por conta desse racha ideológico. As pessoas pacifistas colocaram muito em risco a identidade e segurança de quem se dispôs a entrar no instituto e enfrentar a polícia.

Por fim, encurralados, saímos da mata muito longe do instituto e fomos cercadas por bombas de gás. A manifestação foi se dispersando no fim da tarde e só nos restou o plano de voltar em outra ocasião.

Havia pessoas de várias partes do país. Todas as placas, cercas, carros e estruturas no perímetro do instituto foram destruídas. Em comparação a junho de 2013, houve muito mais organização, disposição em se arriscar e união. Todos presentes nas ações radicais sabiam claramente qual era o objeto e que tal objeto era extremamente legítimo. Motivadas de maneira quase emotiva, as pessoas viram claramente que aquilo era apenas o começo e que a PM não era capaz de frustrar nossas tentativas, tamanha a presença e vontade de muitas pessoas dispostas a libertar aqueles animais por quaisquer meios necessários. Esse evento inspirou o resgate das chinchilas em Itapecirica e outras ações. E independente de rachas ideológicos, foi possível conciliar a disposição dos Black Blocs em se arriscar com a força legalista para fechar o instituto Royal permanentemente e proteger as pessoas que tiveram suas identidades expostas.

Um acontecimento sem precedentes no Brasil e uma semente que, acredito eu, ainda vá germinar em forma de um Frente pela Libertação Animal concreta.


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