Um evento próprio de nosso tempo: um vídeo de 30 segundos, um jovem encapuzado e de mochila atirando em um sujeito de meia idade, corpulento e de cabelos grisalhos se espalha em poucas horas nos noticiários e nas mídias sociais. Isso se dá menos pelo que se pode ver nele e mais pelo que ele testemunha. O homem atingido pelos três disparos do jovem encapuzado é Brian R. Thompson, CEO da United Healthcare (UHC), uma megacorporação estadunidense de seguro saúde que, até 2023, era dona da empresa Amil, no Brasil. Os detalhes da ação, que logo foram conhecidos, fazem crescer o interesse por ela: as três cápsulas de bala encontradas pela polícia na calçada em frente ao Hotel Hilton, no centro de Manhattan, levavam as inscrições: defender, negar, destituir (defend, deny, depose, em inglês). As palavras são uma evidente alusão à forma como as empresas de seguridade médica costumam responder aos seus segurados, quando precisam de um serviço mais complexo e se encontram evidentemente fragilizados física e mentalmente.
A ação foi planejada e executada quase à perfeição. Um sujeito sozinho, se aproxima do alvo, dispara e foge correndo até encontrar uma bicicleta elétrica e sumir sem deixar rastros. Um trabalho paciente e dedicado que logrou êxito de forma admirável.
Todos sabem que o sistema de saúde nos EUA é um grande negócio (só em 2023, a UnitedHealth Group Incorporated, dona da UHC, arrecadou US$ 371,6 bilhões) que funciona para extorquir as pessoas precisamente em momentos nos quais pensar em dinheiro é última coisa que passa pela cabeça. Além disso, UHC e outras companhias já implementam sistemas que usam inteligência artificial para avaliar, aprovar ou negar atendimento a clientes. Por isso, qualquer pessoa conhece uma história tenebrosa da relação com seguro saúde que, invariavelmente, envolve, também, batalhas judiciais.
Histórias vividas na própria pele ou na de amigos e parentes próximos. Mesmo em países onde há assistência médico-securitária estatal e gratuito, como Brasil e Inglaterra, planos de saúde são amplamente conhecidos como urubus que circundam os corpos de gente doente ou morta pelos seus atendentes, advogados e médicos, que ganham muito dinheiro com isso. Assim, não é exagero dizer que um CEO de uma megacorporação de seguro saúde é responsável direto e/ou indireto pelo sofrimento e a morte de muitas pessoas. E não surpreende, portanto, que a ação que matou Brian Thompson tenha sido recebida com simpatia por muitas pessoas e lida como um ato de justiça perpetrado por esse jovem de capuz.
Como é comum em tempos de comunicação instantânea, a ação, capaz catalisar o sentimento de raiva e injustiça de milhares de pessoas no planeta, logo viralizou e provocou uma enxurrada de comentários que alçaram o autor da ação ao paradoxal patamar de herói e procurado pela polícia. A UHC precisou retirar do ar a publicação das mídias sociais em que lamentava a morte de Thompson após receber mais de 40 mil reações e comentários de risos.
É compreensível — e até pare um pouco tardio — o fato de que uma pessoa comum decida atacar diretamente um CEO de uma empresa de saúde nos EUA. O que chama a atenção quando alguém poderoso é alvo de um cidadão comum. Quando é o contrário, e a ação de um executivo ou político resulta na vulnerabilidade ou morte de grupos inteiros de pessoas, isso é apenas mais uma “fatalidade”.
Como já se sabe, Mangione acabou capturado pela polícia. Seu sequestro por forças policiais, como é comum, se deu após a delação de uma pessoa que trabalhava numa lanchonete (a polícia simplesmente não existiria sem colaboração cidadã) e o herói de muitos, que catalisou o ódio latente por corporações em uma ação, está preso e será julgado. Se condenado em tribunal federal, pode encarar a pena de morte — pena que não foi aplicada nem mesmo a atiradores que mataram dezenas de crianças nos recorrentes tiroteios em escolas americanas. O que comprova que para as cortes, polícia, governos e a classe que as controla, a vida de um dos seus é mais valiosa e motiva mais penalidades do que a morte em massa de cidadãos comuns.
Risco de Neutralização do Conflito
Aqui começa um problema fundamental para os efeitos de uma ação como esta: a capacidade do sistema de justiça criminal e da mídia de neutralizar uma ação que, embora tenha sido perpetrada por um sujeito, expressa um sentimento coletivo de injustiça.
A espetacularização da ação e do seu autor e a individualização da responsabilidade criminal do ato criam a figura de um herói ao mesmo tempo em que o debate personaliza a “maldade” nos CEO’s, como se esse fossem proprietários ou a peça principal de uma empresa. É fácil esquecer que, no capitalismo financeiro, esses são apenas funcionários muito bem pagos, cujos salários milionários não chegam a um décimo do que ganham os reais donos da grana: os investidores. Para ficar em apenas um exemplo grosseiro, o CEO da Coca-Cola recebeu em 23 milhões de dólares em 2023. Enquanto isso, o investidor Warren Buffett recebeu da mesma empresa 776 milhões de dólares em dividendos apenas em 2024, uma fortuna que, diferente do CEO, não é sequer obrigado a pagar imposto ao governo americano.
Portanto, mesmo dentro da lógica de bode expiatório, onde a classe dominante pode até aceitar a morte de um alto funcionário para se preservar enquanto grupo, sair individualmente disposto a alvejar CEOs pouco muda em uma luta para derrubar o Capitalismo, mesmo que isso promova avanços no debate sobre acesso a saúde e concentração de riquezas.
Nem heróis nem mártires
Transformar Luigi Maggioni, a um só tempo, em herói e criminoso é a tática perfeita para que se fale de tudo, menos do mais importante: sua ação revela que é intolerável que a vida de milhões de pessoas esteja nas mãos de executivos que se hospedam no Hotel Hilton, em Manhatan e fazem da vida e da morte um cálculo econômico. E que esses sejam apenas os funcionários de agentes que sequer sabemos o nome, mas os recursos que controlam determinam o destino de nações inteiras.
A essa altura, basta ter um smartphone na mão para se saber tudo sobre Luigi: onde estudou, o que gostava de ler, que música ouvia etc e etc. E, em torno dessas informações, especula-se sobre ele ser ou não de esquerda, sobre ter sofrido ou não com o plano de saúde em questão, sobre ser ou não um incel, ser bonito ou feio, sobre ter ligações com organizações políticas ou não etc., etc. Nada mais cômodo para os poderosos que Luigi e sua ação se tornem uma espécie de reality show que entretém os acomodados comentadores em sua passividade. Em pouco tempo, Luigi se torna uma espécie de duplo complementar de um personagem típico dos filmes policiais, um sujeito repleto de intenções nobres e assassinas, mas que é impedido pelo sistema de fazer justiça porque… as coisas são assim.
De quebra, o espetáculo persecutório que levou um atendente de uma rede de lanchonetes a delatá-lo (sempre tem um cagueta) cumpre o devido efeito dissuasório nas pessoas que, com razão, já pensaram em expressar violentamente sua raiva contra os donos do poder reunidos em salas pomposas das grandes corporações ou em congressos corporativos realizados em hotéis de luxo. Paradoxalmente, neste momento, interessa mais saber quem é e ao que serve Brian R. Thompson, do que especular sobre a vida do autor da ação.
Em relação Luigi Maggioni só interessa uma coisa: libertá-lo! O que ele fez ressoa em qualquer pessoa cuja saúde depende das escolhas de um executivo que tem as mãos, o quarto de hotel e seu cargo lavados de sangue de gente que paga planos de saúde para não morrer. Ninguém é inocente!
Para Além da Guilhotina e do Martírio: Uma Perspectiva Histórica
Precisamos olhar para ação de Luigi a luz da história das lutas libertárias e como um sintoma de nosso tempo. O chamado “período do terror anarquista”, do final do século XIX e começo do século XX, quando ações realizadas por anarquistas expropriaes ou regicidas se espalharam por todo mundo, revelou-se, hoje podemos dizer, como sinais de um clima geral de transformação social radical. Ações de anarquistas como Ravachol, Gaetano Bresci, Émile Henry e Severino Di Giovanni ou de grupos como Los Solidarios, Bando Bonnot e os Niilistas Russos, mais do que ações individuais ou simples roubos e assassinatos, eram a expressão da revolta latente na sociedade que dizia escandalosamente que as coisas não poderiam seguir daquela forma. Não à toa, essas ações eram seguidas ou associadas à grandes greves e mobilizações populares ou ao início de processo revolucionários como a Comuna de Paris, a Revolução Russa e a Revolução Espanhola.
Por isso, devemos ter mais ambição e pensar para além do espetáculo do CEO e seu algoz. Já abordamos isso em outro texto sobre o assassinato de políticos e poderosos:
Anarquistas e socialistas já mataram presidentes e reis. Mas será que conseguiram alguma mudança sistêmica profunda com ações isoladas para eliminar certos indivíduos em posições de poder? Os fatos levam a crer que não, pois as instituições que acumulam poder continuaram intactas e operando com carne sempre nova. Bakunin nos alertou também sobre essa questão quando disse que “as carnificinas políticas nunca mataram os partidos; mostraram-se, sobretudo, impotentes contra as classes privilegiadas, porque a força reside menos nos homens do que nas posições ocupadas pelos homens privilegiados na organização das coisas”.
O debate é tão antigo quanto a luta por liberdade dos povos. E faz tempo que anarquistas se dedicam a apontar que os maiores inimigos são instituições políticas e econômicas controlando os recursos, a cultura, as leis e violência legítima.
Por aqui no Brasil, alguns debates entre anarquistas já escolhem o caminho do elogio e do aplauso puro e simples. Como radicais pensando e atuando no mundo de hoje, queremos mais do que convidar para uma luta de autossacrifício ou pela execução sumária de nossos inimigos. Entraremos em conflito e devemos vencer, mesmo que sangue seja derramado. Mas, como dizem combatentes anarquistas em Rojava, “a luta não é pelo martírio, mas pela vida”. Mesmo sabendo do risco de matar e morrer numa guerra aberta, ou na luta cotidiana contra a classe dominante e suas forças de segurança, a morte, a dor ou a prisão não são o objetivo dessa luta. Assim como não é parte do nosso projeto erguer novas guilhotinas, paredões e cadafalsos para nossos nossos inimigos de classe, como fizeram os Bolcheviques e o os Jacobinos antes deles.
Independentemente da opinião e dos planos de grupos ou teorias anticapitalistas, eventos como o assassinado do CEO ou o sacrifício daqueles que, como do tuniziano Mohamed Bouazizi ou do estadunidense Aaron Bushnell vão acontecer cada vez mais em uma sociedade capitalista em franca decadência. E é nosso papel também não fazer com que eventuais sacrifícios sejam em vão. Precisamos avançar o debate e aprimorar as ações coletivamente.
Escapemos das especulações e dos espetáculos. Diante da perseguição policial, do assédio jurídico e da algaravia midiática, tenhamos a coragem de dizer que qualquer pessoa já pensou em se vingar de um patrão, um político ou policial. E isso não faz de ninguém um herói, mas um sujeito comum que sente que a existência de bilionários e seus capangas é intolerável!
E “não se trata, neste momento, de uma questão de conscientização, mas sim de jogos de poder claramente dispostos. Evidentemente sou o primeiro a encarar isso com uma honestidade tão brutal”. E que não seja o último!
Para saber mais:
Antinomia #128: Luigi Mangione
Sacrificial Violence and Retribution, coletivo CrimethInc.