Coronavírus: A Dimensão Social dum Vírus – uma perspectiva xenofeminista e anarquista solarpunk

“Todo o indivíduo humano é o produto involuntário de um meio natural e social no seio do qual nasceu, desenvolveu-se e do qual continua a sofrer influência. As três causas de toda a imoralidade humana são: a desigualdade tanto política quanto econômica e social; a ignorância que é seu resultado natural e sua consequência necessária: a escravidão.”

– Bakunin, Programa e objetivo da organização secreta revolucionária dos irmãos internacionais

Dizer que uma doença é socialmente construída não significa que as ciências naturais são inválidas, e sim, que a forma que esta assume numa sociedade será moldada por preconcepções ou concepções prontas. Consequentemente, a forma que ela terá socialmente implicará na maneira como lidaremos com ela.

O caso do coronavírus exemplifica bem isso. Sabe-se que o novo coronavírus teve seu surgimento em Wuhan. Surgimento esse cuja possibilidade já havia sido de alguma maneira prevista por cientistas chineses do Instituto de Virologia de Wuhan e da Universidade da Academia Chinesa de Ciências[1], que não sabiam dizer onde nem quando surgiria. O que sabiam dizer é que “é altamente provável que futuros surtos de coronavírus tipo SARS ou MERS se originem de morcegos, e há uma probabilidade maior de que isso ocorra na China. Portanto, a investigação de coronavírus de morcego se torna uma questão urgente para a detecção de sinais de alerta precoce, o que minimiza o impacto de futuros surtos na China”. Ocorreu que o surgimento foi mais rápido do que o esperado. O que se afirmava grosseiramente nas sociedades ocidentalizadas, era que a contaminação do vírus em seres humanos teve sua causa no consumo de sopa de carne de morcego. Se houvesse de fato uma preocupação com o consumo da carne de morcego e de outros animais não-humanos mais, teríamos o advento de um questionamento sobre a nossa narrativa alimentar, o que talvez implicasse uma diminuição no consumo de carne, ou mesmo uma alimentação vegana. Mas o que de fato implicou essa afirmação, foi uma constatação de que “o hábito alimentar chinês é bizarro”, uma constatação, cabe dizer, fundamentada em racismo. Para muitos hindus e alguns indianos, nós provavelmente somos “bizarros” por comermos carne de vaca, assim como para a maioria dos judeus – religiosos ou culturais -, seríamos “bizarros” por consumirmos carne de porco. Aliás, a gripe suína foi considerada pandemia em 2009 pela OMS, mas aparentemente esquecemos dela[2] e seguimos consumindo carne suína despreocupadamente. De igual forma, muitos grupos sociais humanos poderiam ver a nossa recusa à antropofagia , ou mesmo a nossa recusa de comer alimentos crus e em estado de putrefação, como algo absurdo, como é o caso de aghori – aqueles devotos acetas de Shiva, cuja imagem com “o corpo coberto de cinzas de defunto e cabelos de dreadlock” muita gente compartilha pra falar do uso de maconha como sendo algo “místico e sagrado”. Ainda sobre hábitos alimentares, podemos lembrar que o caramujo-gigante-africano, um molusco oriundo de África, causou um frenesi em muita gente há alguns anos, mais de uma década atrás. O que não se comenta, é que ele foi introduzido ilegalmente no território brasileiro, mais especificamente no Paraná, na década de 80, como substituto do escargot, já que o caramujo-gigante-africano possui uma massa maior que a do escargot, além de os custos serem menores. Hoje ele pode ser encontrado em 25 estados e no Distrito Federal (DF). Em 2014 a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) noticiou que casos de meningite transmitida pelo caramujo se espalhavam pelo país[3].

O caso é que o coronavírus chegou ao Brasil. Como? Alguém que veio de avião da Itália. Bom, sabemos que viagens de avião não custam barato. Já é caro ir daqui do centro do Rio de Janeiro para o município, que dirá viajar de avião! Daí se constata que não foi uma pessoa pertencente à classe pobre brasileira, mas alguém com um certo poder aquisitivo financeiro. Onde que caberia o socialmente construído mencionado no início do texto aqui? Se essa pessoa fosse pobre ou de qualquer grupo minoritário e estivesse na posição de migrante, sem sombra de dúvidas teríamos jornais noticiando enorme na capa “migração é a principal causa da transmissão de doenças”, o que é possível verificar em notícias anteriores do jornalismo brasileiro. Lembro de uma notícia dessas em que o cachorro de um migrante do nordeste para o sudeste estava com uma doença que não interfere em nada a vida do ser humano, e a capa dizia que a “migração causa transmissão de doenças de uma região a outra”. A não ser que você lesse a notícia – e para isso é necessário comprar o jornal, cujo preço pode ser o mesmo de um quilo de feijão, e eu nem preciso dizer que um quilo de feijão garante a força pro dia de trabalho -, a única coisa que você saberia é que “migração causa transmissão de doenças de uma região a outra”. Ponto. É preciso dizer as implicações sociais desse tipo de notícia? Algo semelhante ocorreu com o sarampo que teria sido trazido por migrantes venezuelanos ao Brasil. Bom, temos um programa de vacinação contra o sarampo eficaz. As pessoas que pegaram sarampo no Brasil não se vacinaram. Sabe-se que no Brasil tem crescido o movimento antivacina, um movimento irresponsável e ideologicamente orientado, que põe a população brasileira em risco, mas quem toma a responsabilidade são os migrantes venezuelanos.

O que torna o coronavírus algo que deva ser imediatamente combatido – a repercussão que teve foi muito rápida -, que deva mobilizar ostensivamente a saúde pública, é o fato de que pela primeira vez – de maneira clara, ao menos – o rico se torna um vetor de transmissão de doenças. Os turistas bonitinhos com seus óculos de sol e seus cruzeiros se tornam vetores de doença. Família com poder aquisitivo financeiro viaja, se infecta, traz o coronavírus para o Brasil, e não sendo suficiente, obriga a empregada doméstica a trabalhar para ela, a expondo ao ao contágio. Essa mesma empregada provavelmente pegará uma ou duas conduções lotadas. Provavelmente no seu bairro não há saneamento básico, talvez má e porcamente funcionam os postos médicos. Não há álcool gel que dissolva a divisão de classes. Em 2019 no Brasil foi registrado o segundo maior número de mortes por dengue em 21 anos. Até o início de dezembro havia sido confirmadas 754 mortes, ficando atrás apenas de 2015, considerado o pior ano. Passa de 1,5 milhão o número de casos prováveis da doença[4]. Neste ano de 2020 já são 182 mil casos com 32 mortes[5], um número muito, mas muito maior mesmo, do que o de coronavírus. Aproveito para lembrar aqui de uma matéria na Folha de São Paulo de novembro do ano passado que dizia que os brasileiros nascidos hoje terão dificuldade para respirar durante o seu crescimento, assim como terão que enfrentar mosquitos transmissores de doenças como a dengue, secas, inundações, queimadas, em maiores quantidades[6].

Ontem conversando com uma diarista que trabalha no apartamento ao lado, eu e ela ficamos comentando sobre como essa paranoia toda era incompreensível para nós, pois a gente já tem que lidar com outros tanto problemas mais cotidianamente. Tem um meme que diz que a Polícia Militar do Rio de janeiro mata mais do que coronavírus. De fato, mata. Inclusive a PMERJ bateu seu recorde ano passado, somando 1546 pessoas até o mês de outubro[7]. Racismo no Brasil mata mais do que coronavírus. Sexismo e transfobia no Brasil matam mais do que coronavírus [8]. Homofobia mata mais do que coronavírus no Brasil. Xenofobia mata mais do que coronavírus no Brasil. Especismo mata mais do que coronavírus no Brasil. O vírus da dengue transmitido pelo mosquito Aedes aegypti mata mais do que o coronavírus no Brasil. Quando não mata, deixa graves sequelas e traumas profundos. Em resumo, o regime de organização social brasileiro mata mais do que o coronavírus. O regime de organização social brasileiro é o capitalismo. Capitalismo esse que hoje é globalizado, que atinge micrologicamente nossas relações interpessoais, que devora o planeta inteiro. Capitalismo esse que concebe uma ideia de “natureza” que opera como um depósito de matéria-prima, nos distanciando do planeta, nos apartando de qualquer relação com este planeta.

Dizer isso não é o mesmo que dizer que o vírus não vai nos alcançar. Talvez alcance. Espero sinceramente que não. Os malthusianos contentes com essa situação, que chegam a chamar o vírus de incompetente por não ter matado a humanidade inteira, eu quero realmente que se fodam. Não tenho paciência para liberais com sua narrativa de fim do mundo. Previna-se, mas com uma certa frieza, cuidando para que a paranoia não lhe tome. Evite informações que não provenham de autoridades científicas. O Ministério da Saúde disponibiliza as informações necessárias para a prevenção e casos de suspeita.

Eu tenho medo de andar na rua. Tenho medo de ter novamente o corpo debilitado temporariamente e adquirir novos traumas ou aprofundar outros. Hoje abraço as pessoas com força, mas já houve um tempo em que o simples contato com outras pessoas me causava calafrios e tremor. Assim que passar a pandemia do coronavírus, eu provavelmente continuarei com esse medo, pois ele é anterior ao coronavírus. Perdi um amigo na quinta-feira dia 12 por negligência hospitalar, uma das poucas pessoas que permaneceram minhas amigas depois que iniciei a transição. Se eu pegar o coronavírus provavelmente vou morrer num hospital – é uma realidade que nós, pessoas trans, conhecemos bem -, se eu não pegar, talvez eu possa morrer na rua. Quê é o coronavírus nessa merda de sobrevivência?

por Inaê Diana Ashokasundari Shravya.


[1] MELLIS, Fernando. Cientistas chineses previram há um ano nova epidemia de coronavírus, R7, Rio de Janeiro, 06 de fev. de 2020. Saúde. Disponível em: <https://noticias.r7.com/saude/cientistas-chineses-previram-ha-um-ano-nova-epidemia-de-coronavirus-06022020>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[2] CHAN, Margaret. World now at the start of 2009 influenza pandemic, World Health Organization, 11 de jun. de 2009. Disponível em: <https://www.who.int/mediacentre/news/statements/2009/h1n1_pandemic_phase6_20090611/en/>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[3] MENEZES, Maíra. Casos de meningite transmitida por caramujo se espalham pelo país, Fundação Oswaldo Cruz, 17 de jul. de 2014. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/casos-de-meningite-transmitida-por-caramujo-se-espalham-pelo-pais>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[4] CANCIAN, Natália. Brasil registra em 2019 segundo maior número de mortes por dengue em 21 anos, Folha de São Paulo, 8 de jan. de 2020. Cotidiano. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/01/brasil-registra-em-2019-segundo-maior-numero-de-mortes-por-dengue-em-21-anos.shtml>. ACesso em: 12 de mar. de 2020. (reparem que a data da notícia é anterior à da declaração de pandemia do coronavírus pela OMS. O contexto era o da geosmina presente na água que chega aos domicílios do Rio de Janeiro. A geosmina, para quem não sabem, atrai e auxilia na proliferação do mosquito Aedes aegypti, mosquito responsável pela transmissão do vírus da dengue)

[5] CANCIA, Natália. Casos de dengue avançam 72% em um ano, e ministério cria comitê para monitorar crescimento, Folha de São Paulo, 6 de mar. de 2020. Cotidiano. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/03/casos-de-dengue-avancam-72-em-um-ano-e-ministerio-cria-comite-para-monitorar-avanco.shtml?utm_source=folha&utm_medium=site&utm_campaign=topicos?cmpid=topicos>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[6] WATANABE, Phillippe. Brasileiros nascidos hoje terão dificuldade para respirar no futuro, diz estudo climático, Folha de São Paulo, 13 de nov. de 2019. Ambiente. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/11/brasileiros-nascidas-hoje-terao-dificuldade-para-respirar-no-futuro-diz-estudo-climatico.shtml?utm_source=folha&utm_medium=site&utm_campaign=topicos?cmpid=topicos>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[7] ALBUQUERQUE, Ana Luiza. Mortes pela polícia em 2019 batem recorde no Rio, Folha de São Paulo, Rio de Janeiro, 25 de nov. de 2019. Cotidiano. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/11/mortes-pela-policia-em-2019-batem-recorde-no-rio.shtml>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[8] Lembremos que o Brasil permanece sendo o país que mais mata mulheres trans e travestis no mundo. Em 2019, 124 pessoas trans foram assassinadas no Brasil , conforme nos diz Lu Sudré em <https://www.brasildefato.com.br/2020/01/29/em-2019-124-pessoas-trans-foram-assassinadas-no-brasil>. Para mais informações, ler este PDF sobre assassinatos de pessoas trans no Brasil elaborado pela Associação Nacional de Travesstis e Transexuais (ANTRA): <https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/01/dossic3aa-dos-assassinatos-e-da-violc3aancia-contra-pessoas-trans-em-2019.pdf>.