Não Precisamos de Heróis – Notas Sobre o Assassinato de um CEO

Um evento próprio de nosso tempo: um vídeo de 30 segundos, um jovem encapuzado e de mochila atirando em um sujeito de meia idade, corpulento e de cabelos grisalhos se espalha em poucas horas nos noticiários e nas mídias sociais. Isso se dá menos pelo que se pode ver nele e mais pelo que ele testemunha. O homem atingido pelos três disparos do jovem encapuzado é Brian R. Thompson, CEO da United Healthcare (UHC), uma megacorporação estadunidense de seguro saúde que, até 2023, era dona da empresa Amil, no Brasil. Os detalhes da ação, que logo foram conhecidos, fazem crescer o interesse por ela: as três cápsulas de bala encontradas pela polícia na calçada em frente ao Hotel Hilton, no centro de Manhattan, levavam as inscrições: defender, negar, destituir (defend, deny, depose, em inglês). As palavras são uma evidente alusão à forma como as empresas de seguridade médica costumam responder aos seus segurados, quando precisam de um serviço mais complexo e se encontram evidentemente fragilizados física e mentalmente.  Algo muito semelhante ao que lobistas dos planos de saúde brasileiros já buscam fazer para negar procedimentos e tratamento a milhares de pacientes, uma vez que não são previstos como obrigatórios no rol da ANS. A diferença é que nos Estados Unidos não existe um sistema público e gratuito de saúde como o SUS, no Brasil.

Ano novo, antigos vícios.

A ação foi planejada e executada quase à perfeição. Um sujeito sozinho, se aproxima do alvo, dispara e foge correndo até encontrar uma bicicleta elétrica e sumir sem deixar rastros. Um trabalho paciente e dedicado que logrou êxito de forma admirável.

Todos sabem que o sistema de saúde nos EUA é um grande negócio (só em 2023, a UnitedHealth Group Incorporated, dona da UHC, arrecadou US$ 371,6 bilhões) que funciona para extorquir as pessoas precisamente em momentos nos quais economizar é a última coisa que passa pela cabeça. Além disso, UHC e outras companhias já implementam sistemas que usam inteligência artificial para avaliar, aprovar ou negar atendimento a clientes. Por isso, qualquer cidadão conhece uma história tenebrosa da relação com seguro saúde que, invariavelmente, também envolve batalhas judiciais.

Histórias vividas na própria pele ou na de amigos e parentes próximos. Mesmo em países onde há assistência médico-securitária estatal e gratuito, como Brasil e Inglaterra, planos de saúde são amplamente conhecidos como urubus que circundam os corpos de gente doente ou morta pelos seus atendentes, advogados e médicos, que ganham muito dinheiro com isso. Assim, não é exagero dizer que um CEO de uma megacorporação de seguro saúde é responsável direto e/ou indireto pelo sofrimento e a morte de muitas pessoas. E não surpreende, portanto, que a ação que matou Brian Thompson tenha sido recebida com simpatia por muitas pessoas e lida como um ato de justiça perpetrado por esse jovem de capuz.

Como é comum em tempos de comunicação instantânea, a ação foi capaz catalisar o sentimento de raiva e injustiça de milhares de pessoas no planeta, e logo viralizou e provocou uma enxurrada de comentários que alçaram o autor da ação ao paradoxal patamar de herói e procurado pela polícia. A UHC precisou retirar do ar a publicação das mídias sociais em que lamentava a morte de Thompson após receber mais de 40 mil reações e comentários de risos.

É compreensível — e até pare um pouco tardio — que uma pessoa comum decida atacar diretamente um CEO de uma empresa de saúde nos EUA. O que chama a atenção é o fato de alguém poderoso ser alvo de um cidadão comum. Quando é o contrário, e a ação de um executivo ou político resulta na vulnerabilidade ou morte de grupos inteiros de pessoas, isso é apenas mais uma “fatalidade”.

Como já se sabe, Mangione acabou capturado pela polícia. Seu sequestro por forças policiais se deu após a delação de uma pessoa que trabalhava numa lanchonete (a polícia simplesmente não existiria sem colaboração cidadã) e o herói de muitos, que catalisou o ódio latente por corporações em uma ação, está preso e será julgado. Se condenado em tribunal federal, pode encarar a pena de morte — pena que não foi aplicada nem mesmo a atiradores que mataram dezenas de crianças nos recorrentes tiroteios em escolas americanas. O que comprova que para o judiciário, a polícia, governos e a classe dominante, a vida de um dos seus é mais valiosa e motiva mais penalidades do que o assassinato em massa de cidadãos comuns.

 Risco de Neutralização do Conflito

Aqui começa um problema fundamental para os efeitos de uma ação como esta: a capacidade do sistema de justiça criminal e da mídia de neutralizar uma ação que, embora tenha sido perpetrada por um sujeito, expressa um sentimento coletivo de injustiça.

A espetacularização da ação e do seu autor e a individualização da responsabilidade criminal do ato criam a figura de um herói ao mesmo tempo em que o debate personaliza a “maldade” nos CEO’s, como se esse fossem proprietários ou a peça principal de uma empresa. É fácil esquecer que, no capitalismo financeiro, esses são apenas funcionários muito bem pagos, cujos salários milionários não chegam a um décimo do que ganham os reais donos da grana: os investidores. Para ficar em apenas um exemplo grosseiro, o CEO da Coca-Cola recebeu em 23 milhões de dólares em 2023. Enquanto isso, o investidor Warren Buffett recebeu da mesma empresa 776 milhões de dólares em dividendos apenas em 2024, uma fortuna que, diferente do CEO, não o obriga sequer a pagar imposto ao governo americano.

Portanto, mesmo dentro da lógica de bode expiatório, onde a classe dominante pode até aceitar a morte de um dos seus para se preservar enquanto grupo, sair individualmente disposto a alvejar CEOs pouco muda em uma luta para derrubar o Capitalismo, mesmo que isso promova avanços no debate sobre acesso a saúde e concentração de riquezas. O CEO é um alto funcionário. De um altíssimo escalão, é óbvio, mas apenas mais um funcionário.

Nem heróis nem mártires

Transformar Luigi Maggioni, a um só tempo, em herói e criminoso é a tática perfeita para que se fale de tudo, menos do mais importante: sua ação revela que é intolerável que a vida de milhões de pessoas esteja nas mãos de executivos que se hospedam em hotéis de luxo em Manhattan e fazem da vida e da morte um cálculo econômico. E que esses sejam apenas os funcionários de agentes que sequer sabemos o nome, mas os recursos que controlam determinam o destino de nações inteiras.

A essa altura, basta ter um smartphone na mão para se saber tudo sobre Luigi: onde estudou, o que gostava de ler, que música ouvia etc e etc. E, em torno dessas informações, especula-se sobre ele ser ou não de esquerda, sobre ter sofrido ou não com o plano de saúde em questão, sobre ser ou não um incel, ser bonito ou feio, sobre ter ligações com organizações políticas ou não etc., etc. Nada mais cômodo para os poderosos que Luigi e sua ação se tornem uma espécie de reality show que entretém os acomodados comentadores em sua passividade. Em pouco tempo, Luigi se torna uma espécie de duplo complementar de um personagem típico dos filmes policiais, um sujeito repleto de intenções nobres e assassinas, mas que é impedido pelo sistema de fazer justiça porque… as coisas são assim.

De quebra, o espetáculo persecutório que levou um atendente de uma rede de lanchonetes a delatá-lo (sempre tem um cagueta) cumpre o devido efeito dissuasório nas pessoas que, com razão, já pensaram em expressar violentamente sua raiva contra os donos do poder reunidos em salas pomposas das grandes corporações ou em congressos corporativos realizados em hotéis de luxo. Paradoxalmente, neste momento, interessa mais saber quem é e ao que serve Brian R. Thompson, do que especular sobre a vida do autor da ação.

Em relação Luigi Maggioni só interessa uma coisa: libertá-lo! O que ele fez ressoa em qualquer pessoa cuja saúde depende das escolhas de um executivo que tem as mãos, o quarto de hotel e seu cargo lavados de sangue de gente que paga planos de saúde para não morrer. Ninguém é inocente!

Para Além da Guilhotina e do Martírio: Uma Perspectiva Histórica

Precisamos olhar para ação de Luigi a luz da história das lutas libertárias e como um sintoma de nosso tempo. O chamado “período do terror anarquista”, do final do século XIX e começo do século XX, quando ações realizadas por anarquistas expropriadores ou regicidas se espalharam por todo mundo, revelou-se, hoje podemos dizer, como sinais de um clima geral de transformação social radical. Ações de anarquistas como Ravachol, Gaetano Bresci, Émile Henry e Severino Di Giovanni ou de grupos como Los Solidarios, Bando Bonnot e os Niilistas Russos, mais do que ações individuais ou simples roubos e assassinatos, eram a expressão da revolta latente na sociedade que dizia escandalosamente que as coisas não poderiam seguir daquela forma. Não à toa, essas ações eram seguidas ou associadas à grandes greves e mobilizações populares ou ao início de processo revolucionários como a Comuna de Paris, a Revolução Russa e a Revolução Espanhola.

Mais recentemente, os ataques à bomba contra uma delegacia de Santiago do Chile e contra Rodrigo Hinzpeter (ex-ministro do interior chileno, conhecido pela perseguição às lutas anárquicas e do povo Mapuche) em 2019, ambos reivindicados pelo anarquista Francisco Solar. Sob a acusação de participação nestes e em outros atentados aos poderosos e ao bairro dos ricos em Santiago, Francisco e Mónica Caballero seguem atrás das grades desde 2020. Os ataques ocorreram no contexto da insurreição que tomou as ruas naquele território, com atos gigantescos e enfrentamentos massivos diários com a polícia. Em resumo, nestes e em vários outros casos que poderíamos mencionar, não se trata de um ato individual, embora tenha sido perpetrado por um único sujeito ou por um pequeno grupo.

Por isso, devemos ter mais ambição e pensar para além do espetáculo do CEO e seu algoz. Já abordamos isso em outro texto sobre o assassinato de políticos e poderosos:

Anarquistas e socialistas já mataram presidentes e reis. Mas será que conseguiram alguma mudança sistêmica profunda com ações isoladas para eliminar certos indivíduos em posições de poder? Os fatos levam a crer que não, pois as instituições que acumulam poder continuaram intactas e operando com carne sempre nova. Bakunin nos alertou também sobre essa questão quando disse que “as carnificinas políticas nunca mataram os partidos; mostraram-se, sobretudo, impotentes contra as classes privilegiadas, porque a força reside menos nos homens do que nas posições ocupadas pelos homens privilegiados na organização das coisas”.

O debate é tão antigo quanto a luta por liberdade dos povos. E faz tempo que anarquistas se dedicam a apontar que os maiores inimigos são instituições políticas e econômicas controlando os recursos, a cultura, as leis e violência legítima.

Por aqui no Brasil, alguns debates entre anarquistas já escolhem o caminho do elogio e do aplauso puro e simples. Como radicais pensando e atuando no mundo de hoje, queremos mais do que convidar para uma luta de autossacrifício ou pela execução sumária de nossos inimigos. Entraremos em conflito e devemos vencer, mesmo que sangue seja derramado. Mas, como dizem combatentes anarquistas em Rojava, “a luta não é pelo martírio, mas pela vida”.  Mesmo sabendo do risco de matar e morrer numa guerra aberta, ou na luta cotidiana contra a classe dominante e suas forças de segurança, a morte, a dor ou a prisão não são o objetivo dessa luta. Assim como não é parte do nosso projeto erguer novas guilhotinas, paredões e cadafalsos para nossos nossos inimigos de classe, como fizeram os Bolcheviques e o os Jacobinos antes deles.

Independentemente da opinião e dos planos de grupos ou teorias anticapitalistas, eventos como o assassinado do CEO ou o sacrifício daqueles que, como do tuniziano Mohamed Bouazizi ou do estadunidense Aaron Bushnell vão acontecer cada vez mais em uma sociedade capitalista em franca decadência. E é nosso papel também não fazer com que eventuais sacrifícios sejam em vão. Precisamos avançar o debate e aprimorar as ações coletivamente.

Escapemos das especulações e dos espetáculos. Diante da perseguição policial, do assédio jurídico e da algaravia midiática, tenhamos a coragem de dizer que qualquer pessoa já pensou em se vingar de um patrão, um político ou policial. E isso não faz de ninguém um herói, mas um sujeito comum que sente que a existência de bilionários e seus capangas é intolerável!

E “não se trata, neste momento, de uma questão de conscientização, mas sim de jogos de poder claramente dispostos. Evidentemente sou o primeiro a encarar isso com uma honestidade tão brutal”. E que não seja o último!

Ninguém é inocente! Vivemos na guerra social! Não precisamos de heróis!


Para saber mais:

Organizar a morte do Estado e do Capital, não de pessoas – perspectivas revolucionárias sobre atentados e assassinato de poderosos

Antinomia #128: Luigi Mangione

Sacrificial Violence and Retribution, coletivo CrimethInc.

“NÃO TEMOS MEDO DAS RUÍNAS”: DECLARAÇÃO DE TÊKOŞÎNA ANARŞÎST SOBRE ATUAL SITUAÇÃO EM ROJAVA

Desde 2020, a guerra civil na Síria não sofreu grandes desdobramentos. Com a Rússia, maior aliada do regime sírio, ocupada com a invasão da Ucrânia, e o Irã distraído com as agressões de Israel em Gaza e no Líbano, as forças jihadistas, como o grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS), tomaram Aleppo, cidade mais importante no norte da Síria, desafiando o poder do ditador Bashar al-Assad e impondo nova ameaça à luta por liberdade e a revolução social em Rojava. Em em meio a esses eventos, o grupo Tekoşîna Anarşîst (Luta Anarquista/TA), atuando em Rojava há pelo menos 5 anos, lançou um comunicado sobre a situação e sua posição diante dos novos desdobramentos da guerra civil síria.

entrevistamos companheiros do TA em 2020 e traduzimos uma outra entrevista feita pela da federação Anarquista uruguaia (fAu) aqui em nosso blog. Convidamos a todas as pessoas interessadas na superação do capitalismo, do fascismo, do patriarcado e do colonialismo a conhecer o processo revolucionário em Rojava e a contribuição de anarquistas em solo para essas lutas. A tradução do artigo abaixo foi feita pela editora Terra Sem Amos.


“NÃO TEMOS MEDO DAS RUÍNAS”

Há mais de cinco anos, as Forças Democráticas Sírias (SDF) puseram fim ao califado do Estado Islâmico (ISIS). Agora, com a nova ofensiva do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), corremos o risco de reviver suas atrocidades. O HTS uniu diversos grupos jihadistas, incluindo ex-combatentes do califado em suas fileiras. Recentemente, eles iniciaram uma grande ofensiva, rompendo o cerco de Idlib e provocando o colapso do Exército Árabe Sírio (SAA). Aleppo foi a primeira grande cidade capturada, com a apreensão de grandes quantidades de armamento avançado deixado para trás por soldados do regime.

As SDF reagiram rapidamente, enviando reforços para proteger o bairro curdo de Sheh Maqsoud, em Aleppo, bem como os campos de refugiados na região de Sheba. No entanto, as forças que representam o exército turco, o Exército Nacional Sírio (SNA), iniciaram uma nova ofensiva coordenada com o HTS, invadindo essa mesma região de Sheba. Os refugiados deslocados pela invasão turca de Afrin em 2018 são, mais uma vez, forçados a abandonar seus lares sob a mira de armas. Mais de 100.000 pessoas agora buscam abrigo em tendas improvisadas às margens do rio Eufrates, ainda ameaçadas por novos avanços de grupos jihadistas.

Esses novos desdobramentos agravam a instabilidade no Oriente Médio e devem ser analisados em conjunto com outros conflitos em curso na região. A ocupação israelense de Gaza, juntamente com os ataques contra o Hezbollah, enfraqueceram a posição do Irã na Síria, limitando sua capacidade de apoiar o SAA. Tropas russas, também enfraquecidas após quase três anos de guerra na Ucrânia, abandonaram várias posições terrestres e estão bombardeando brutalmente Idlib e Aleppo. Os Estados Unidos tentam se manter fora do conflito, sabendo que Trump pode pressionar pela retirada de suas tropas do território sírio. Os soldados turcos ainda não estão abertamente envolvidos, mas o Estado turco está mexendo os pausinhos do SNA para continuar suas políticas genocidas contra o povo curdo. Assad está tentando obter apoio internacional de outros países árabes, e o Irã já começou a enviar reforços para uma contraofensiva conjunta com o SAA. Em meio a esse caos, a Revolução de Rojava e o Movimento de Libertação Curdo resistem como a principal esperança para revolucionários no Oriente Médio.

A maior movimentação de forças na Síria nos últimos cinco anos está em curso e pode ter implicações que ainda não conseguimos prever. É uma situação complexa, e vemos como muitos jornalistas têm dificuldade em compreendê-la. Grande parte da mídia ocidental tem sido complacente com o avanço do HTS, chegando até a chamá-los de oposição revolucionária, “rebeldes” contra a ditadura de Assad. Também desejamos a queda do regime, mas o HTS e seu “governo de salvação” não são uma solução libertadora. Seu objetivo é substituir a dinastia Assad por leis da sharia e um estado islâmico, pouco diferente do que o Talibã está fazendo no Afeganistão ou do que a República Islâmica do Irã tem feito desde 1979. Esse não é um futuro que podemos aceitar, e muitos sírios também não aceitarão.

Nós, como anarquistas e internacionalistas em Rojava, desempenharemos nosso papel nesses tempos desafiadores. Lutaremos ao lado das SDF para defender e expandir o projeto revolucionário, construindo uma sociedade sem Estado onde prevaleçam os princípios do confederalismo democrático, pluralismo e da revolução das mulheres. Conclamamos todas as forças anarquistas e outros movimentos revolucionários, agora mais do que nunca, a defender Rojava!

Sabemos que a guerra traz sofrimento e destruição, mas também pode abrir oportunidades para uma vida livre para aqueles que estão prontos. Vimos o que a vitória sobre o ISIS nos possibilitou e estamos prontos para continuar lutando por um futuro melhor. Porque não temos medo de ruínas!

Muitos camaradas estão perguntando: O que posso fazer para apoiar a revolução?
  • Viajar para o Nordeste da Síria (NES) não é possível no momento, pois as fronteiras estão fechadas. Mas você pode garantir que o que está acontecendo na Síria seja conhecido, escrevendo artigos, realizando entrevistas, podcasts, organizando palestras e eventos em coordenação com comitês de solidariedade já existentes.
  • Se houver manifestações de solidariedade em sua região, participe e apoie! Se não houver, talvez você possa organizá-las!
  • Você também pode fornecer apoio econômico aos mais necessitados, já que a crise humanitária atual é crítica e requer nossa atenção. Para isso, a Heyva Sor, uma organização independente, já está trabalhando para apoiar e prover assistência aos afetados pela guerra no nordeste da Síria.

Isto está longe de acabar. Mantenha-se informado e prepare-se para os próximos acontecimentos!


PARA SABER MAIS:

A História se Repete: Primeiro como Farsa, Depois como Tragédia – Por que o Partido Democrata é Responsável ​​pelo Retorno de Donald Trump ao Poder

Donald Trump venceu a eleição presidencial de 2024 nos Estados Unidos. Antifascistas, anarquistas e todos insubmissos deverão se preparar para lugar as mesmas batalhas de 2017-2020 novamente, em um terreno ainda mais perigoso, uma vez que Trump e sua base fascista conhecem melhor o terreno em que lutarão, além de terem mais cadeira no congresso e senado.

O retorno de Trump como presidente eleito pelo partido Republicano já é tratado como exemplo a ser seguido no Brasil por Jair Bolsonaro e seus familiares, que acompanharam de perto a apuração da eleição estadunidense. Apesar de condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral e tornado inelegível, Bolsonaro diz que será candidato voltar à presidência ou eleger um aliado próximo em 2026.

Outros paralelos entre o que aconteceu nos EUA e no Brasil podem ser traçados a partir da leitura do artigo a seguir, do coletivo CrimethInc., uma vez que desde a forma como concorreram, governaram e buscaram dar um golpe de estado ao perder a reeleições, um parece emular a cartilha do outro.

De qualquer forma, seja para combater o bolsonarismo nas próximas eleições, ou seus aliados ocupando cargos no executivo e legislativo, ou seus capangas ruas, é preciso avaliar como a esquerda brasileira fez de tudo para sabotar os protestos de rua, greves e organizações populares contra o governo Bolsonaro. Da  mesma forma que o partido Democrata condenou e atacou protestos radicais nos Estados Unidos, numa das maiores ondas de protestos de sua história, contra a polícia e o racismo.

Democratas tiraram a legitimidade de um levante popular amplo que trouxe ao debate a redução de investimentos em polícia e prisões, aceitando levar suas políticas ainda mais para a direita só para conseguir competir com Trump, enquanto abria caminho para o fascismo se radicalizar sem oposição popular. Por aqui, o ministro da Fazenda de Lula, Fernando Haddad, já avaliou como “moderada” a declaração de Trump ao anunciar vitória nas urnas.

Se não aprendermos com nossos erros por aqui e com a derrota da esquerda estadunidense, estaremos em desvantagem para enfrentar o fascismo que pode muito bem voltar ao poder em 2026, mas, o que é mais perigoso, se instalar no imaginário social como única saída “radical” para as crises do capitalismo.

Portando, publicamos e convidamos a todas as pessoas para entender a escala do que está acontecendo nos EUA e como foi o caminho até aqui.

Leia mais artigos do coletivo CrimethInc. em português aqui.


A batata quente muda de mãos novamente

Há muito tempo argumentamos que, no século XXI, o poder estatal é uma batata quente. Como a globalização neoliberal tornou difícil para as estruturas estatais mitigar o impacto do capitalismo sobre as pessoas comuns, nenhum partido é capaz de manter o poder estatal por muito tempo sem perder credibilidade. De fato, nos últimos meses, derrotas inesperadas minaram os partidos governantes na França, Áustria, Reino Unido, e Japão.

Na eleição de 2024, tanto Kamala Harris quanto Donald Trump já estavam manchados por seu relacionamento com o poder do estado, mas Harris era a única associada ao governo vigente e esta é uma das razões pelas quais ela perdeu. Dezenas de milhões de eleitores de Trump apoiam seu programa, sim, mas os eleitores que o empurraram para a vitória estavam essencialmente dando votos de protesto ao status quo.

Democratas fizeram tudo o que podiam para se associar à ordem dominante: movendo suas políticas para a direita, mudando o apoio de supostos “esquerdistas” dentro de suas fileiras, desmobilizando movimentos de protesto. Acontece que essa foi uma aposta perdida em um momento em que as pessoas estão sedentas por mudanças.

Resta saber como o resto do país responderá. Se a liderança do Partido Democrata for capaz de ceder e aceitar uma posição como sócios minoritários no fascismo, o futuro pode ser realmente sombrio. Por outro lado, se ficar claro que metade do país vai resistir ao programa Trump, parte da liderança Democrata será forçada a seguir sua posição como representantes dessa parte da população, como ocorreu em 2017.

O que acontecerá a seguir será decidido nas ruas.

O Partido da Cumplicidade

Republicanos se tornaram o partido do fascismo. Na preparação para esta eleição, os democratas se estabeleceram como o partido da cumplicidade com o fascismo.

O que significa reconhecer que Donald Trump é um fascista, mas não fazer nada além de incitar as pessoas a votarem contra ele? Se, de fato, Trump pretende introduzir o fascismo nos Estados Unidos — se, como ele prometeu explicitamente, ele irá perseguir milhões de pessoas (“a maior operação de deportação doméstica na história americana”), colocar os militares nas ruas para reprimir protestos e usar o sistema judicial para atacar qualquer um que se oponha a ele — então limitar-se à mera oposição eleitoral significa acolher o fascismo de braços abertos.

Quando o fascismo está a caminho, a coisa apropriada a fazer é organizar redes subterrâneas de resistência, como os antifascistas italianos e franceses fizeram nas décadas de 1930 e 1940. A coisa apropriada a fazer é se preparar para resistir por quaisquer meios necessários. Qualquer coisa menos que isso é cumplicidade.

Reformar as instituições que serão usadas pelos fascistas parar aplicar suas políticas é cumplicidade. Normalizar a violência contra as pessoas que os fascistas pretendem atacar é cumplicidade. Entregar as plataformas de comunicação por meio das quais as pessoas compartilham informações é cumplicidade. Desencorajar as pessoas do tipo de tática necessária para lutar contra um regime fascista é cumplicidade. Nos últimos quatro anos, os democratas fizeram cada uma dessas coisas.

A liderança do partido Democrata já está preparada para coexistir com fascistas, para ser governada por fascistas. Eles prefeririam o fascismo a mais quatro anos de protestos tumultuados. Ter um partido mais autoritário no poder lhes dá um álibi — os faz parecer bons em comparação, mesmo que sejam eles que canalizam as pessoas para fora das ruas e pavimentam o caminho para Trump executar seu programa.


O Caminho para o Fascismo

Vamos explicar por que os democratas são culpados por essa situação.

A Polícia

Democratas começaram a era Biden-Harris dobrando seu apoio à polícia, precisamente quando milhões de pessoas nos Estados Unidos estavam se perguntando se era hora de procurar uma maneira mais eficaz de lidar com a pobreza e as crises de saúde mental do que continuar canalizando grandes quantidades de financiamento público para a militarização dos departamentos de polícia. Quando Trump assumir o cargo novamente em 2025, os departamentos de polícia em todo o país que o governo Biden financiou e glorificou estarão na vanguarda da imposição da agenda de Trump.

A virada pró-polícia do Partido Democrata ajudou a trazer ex-policiais como o prefeito de Nova York, Eric Adams, para o gabinete em 2020. A administração de Adams tem sido um desastre; ele é atualmente o primeiro prefeito de Nova York a enfrentar acusações federais, incluindo suborno, conspiração e fraude. Desde então, Trump estendeu a mão para Adams, um homem forte corrupto para outro. É isso que acontece quando você coloca o poder do estado diretamente nas mãos das forças de repressão.

A Lei

Desde o início do primeiro governo Trump, os democratas concentraram suas críticas a Trump na ideia de que o que ele estava fazendo era ilegal, usando o slogan “Ninguém está acima da lei”. Como debatemos em 2018,

Se você está tentando estabelecer a base para um poderoso movimento social contra o governo de Trump, “ninguém está acima da lei” é uma narrativa autodestrutiva. O que acontece quando uma legislatura escolhida por manipulação eleitoral aprova novas leis? O que acontece quando os tribunais lotados com os juízes que Trump nomeou decidem a seu favor? O que você fará quando o FBI reprimir os protestos?

Agora, com a Suprema Corte controlada pelos indicados de Trump e este se preparando para retomar o poder, veremos as respostas para essas perguntas. Qualquer um que esteja determinado a impedir Trump de executar sua agenda precisará se preparar para quebrar as leis que a legislatura de Trump vai aprovar e os juízes de Trump irão aplicar.

Marchar sob a bandeira “ninguém está acima da lei” é cuspir na cara de todos aqueles para quem o funcionamento diário da lei é uma experiência de opressão e injustiça. É rejeitar a solidariedade com os setores da sociedade que poderiam dar a um movimento social contra Trump alavancagem nas ruas. Finalmente, é legitimar o próprio instrumento de opressão — a lei — que Trump eventualmente usará para suprimir seu movimento.

Como alertamos em julho passado, uma vitória de Trump significa que todas as instituições com as quais os centristas contavam para protegê-los — a política eleitoral, o sistema judiciário, a polícia, a inclinação dos cidadãos comuns de obedecer à lei e respeitar as autoridades — agora são armas nas mãos de seus inimigos.

A Mídia

Quando os donos do Twitter o venderam para Elon Musk em 2022, eles entenderam que estavam colocando o controle da principal plataforma de comunicação política do século 21 nas mãos de um megalomaníaco de extrema direita. Uma das primeiras coisas que Musk fez foi banir algumas das contas anarquistas mais conhecidas que ajudaram a mobilizar pessoas durante o primeiro governo Trump. Este foi um passo no processo de reduzir o Twitter a um veículo de propaganda de extrema direita.

Como apontamos na época,

A aquisição do Twitter por Musk não é apenas o capricho de um plutocrata individual — é também um passo para resolver algumas das contradições dentro da classe capitalista, para melhor estabelecer uma frente unificada contra os trabalhadores e todos os outros que sofrem a violência do sistema capitalista.

De fato, o financiamento de um grupo de bilionários foi um dos principais fatores que permitiram que Trump vencesse a eleição de 2024. Os bilionários conseguiram mudar sua lealdade para Trump em parte porque, com as plataformas de comunicação e os protestos de rua controlados, eles não precisaram temer que uma segunda administração Trump criasse um caos que seria ruim para os negócios.

Isso nos leva ao próximo ponto.

Esvaziando as Ruas

O esforço dos democratas para desacreditar e desmobilizar o movimento contra a polícia caiu diretamente nas mãos de seus adversários, preparando o caminho para Trump retornar ao poder sem resistência.

Ao competir com os Republicanos para se afirmarem como o partido da lei e da ordem, os Democratas permitiram que os Republicanos levassem o discurso sobre “crime” tão para a direita que Trump e seus capangas puderam usar a retórica de combate ao crime, embora crimes violentos tenham diminuído nos últimos anos. Isso contrasta dramaticamente com a maneira como Donald Trump se recusou a recuar seus pontos de discussão um milímetro sequer.

Ao mesmo tempo, Democratas buscaram impedir que novos movimentos ganhassem força. Quando o acesso ao aborto foi restringido em todo o país, por exemplo, os Democratas fizeram o melhor que puderam para impedir uma mobilização popular eficaz em resposta.

Beneficiou as perspectivas eleitorais dos democratas em 2024 esvaziar as ruas? Vamos voltar para 2020 para uma resposta.

Na época, em artigo de opinião após artigo de opinião, os centristas expressaram preocupação de que os confrontos de rua de maio e junho de 2020 pudessem influenciar a eleição para Donald Trump. Na verdade, o registro de eleitores democratas em junho de 2020 aumentou em 50%, enquanto o registro de eleitores republicanos cresceu apenas 6% naquele mês. Uma pesquisa entre o eleitorado constatou que, dentre as pessoas que citaram os protestos como um fator de determinação para votar em 2020, uma porção 7% maior disse que votou em Joe Biden.

Em outras palavras, a Revolta por George Floyd ajudou a eleger Biden.

E lembre-se: a Revolta de George Floyd não começou com uma campanha de registro de eleitores. Ela começou com a queima de uma delegacia de polícia. De acordo com uma pesquisa da Newsweek, 54% dos entrevistados acreditavam que queimar a delegacia era justificável. Se isso não tivesse ocorrido, o movimento não teria conseguido empurrar os assassinatos de George Floyd, Breonna Taylor e outros para o debate público, e não haveria ganho eleitoral para o Partido Democrata. Não há como criar movimentos poderosos sem tomar medidas reais contra as causas da injustiça.

Como o partido que coopta movimentos de resistência, os democratas teriam se beneficiado de movimentos mais poderosos em 2021-2024. Eles preferiram perder.

A Catraca Política

A campanha de Harris recebeu o apoio do ex-presidente George W. Bush, da ex-representante Liz Cheney, do apresentador de rádio conservador Charlie Sykes e de muitas outras figuras de direita. Isso não ocorreu apenas porque a agenda de Trump era chocante até mesmo para aqueles que antes representavam a face do establishment republicano — também porque Harris representava um projeto político centrista, deixando os Republicanos determinarem o discurso sobre questões como imigração.

Como já argumentamos anteriormente,

O sistema bipartidário dos EUA funciona como uma catraca, com o Partido Republicano puxando constantemente as políticas públicas e o discurso permitido para a direita, enquanto os Democratas, ao tentarem adquirir poder perseguindo o centro político, servem como um mecanismo que impede que as políticas e o discurso retornem.

Essa estratégia ajudou os Republicanos a normalizar o que antes eram ideias marginais sobre imigração e crime, mas não tornou os Democratas mais elegíveis.

Para voltar atrás no tempo, podemos ver que a vitória de Trump em 2024 marca uma virada crucial no discurso político do século XXI. Quando Trump foi eleito em 2016, o consenso neoliberal parecia invencível; sua vitória parecia representar um acaso em que um político atípico chegou ao poder cooptando a retórica do chamado movimento antiglobalização. Hoje, está claro que o auge do consenso neoliberal acabou e algo mais terá que vir a seguir. No entanto, por décadas, os democratas têm colaborado com os republicanos para esmagar movimentos que propunham uma alternativa. Eles suprimiram as forças dentro de seu campo, como a campanha de Bernie Sanders, que representavam um caminho a seguir; foi isso que tornou possível para Trump se apresentar falsamente como um representante da rebelião.

Isso tornou inevitável que a extrema direita detenha o poder na próxima fase, já que os Democratas ajudaram a suprimir alternativas anarquistas, antiautoritárias e de esquerda.

Dessensibilizando o Público

Finalmente, de forma dolorosa, o governo Biden já fez muito do trabalho para dessensibilizar o público em geral para o programa que um segundo governo Trump encorajado tentará executar. Acima de tudo, o governo Biden conseguiu isso apoiando os militares israelenses na execução de um genocídio brutal em Gaza. Ao fazer isso, Biden e Harris acostumaram milhões de pessoas à ideia de que a vida humana não tem valor inerente — que é aceitável massacrar, aprisionar e atormentar pessoas com base em seu status em um grupo demográfico específico.

Este é exatamente o tipo de ambiente que permitirá que Donald Trump execute o tipo de políticas internas brutais que ele pretende fazer quando retornar ao cargo em dois meses e meio.


O caminho à frente

No final das contas, não podemos culpar os Democratas por tudo. Nós falhamos em construir movimentos poderosos o suficiente para sobreviver aos seus esforços para nos suprimir. Nós ainda não estamos preparadas para impedir Trump de deportar milhões de pessoas e canalizar bilhões de dólares a mais para bilionários e o aparato de segurança do estado.

Felizmente, esta história ainda não acabou.

Temos a responsabilidade de não deixar que as estatísticas eleitorais nos desmobilizem. Como escrevemos em 2016, em resposta à primeira vitória de Trump,

As eleições servem para nos representar uns aos outros no nosso pior, destilando os aspectos mais ofensivos, covardes e servis da espécie. Muitas pessoas que nunca arrancariam pessoalmente uma mãe de seus filhos são capazes de endossar a deportação da privacidade de uma cabine de votação, assim como a maioria das pessoas que comem carne nunca poderiam trabalhar em um matadouro. Se não fosse pela alienação que caracteriza o próprio governo, a maioria das políticas feias que compõem a agenda de Trump nunca poderiam ser implementadas.

Haverá uma breve janela de possibilidade agora, quando milhões de pessoas que contavam com os Democratas para mantê-los seguros acordarem e perceberem que somos a única esperança um do outro. Temos que agir imediatamente para fazer contato uns com os outros, para restabelecer tudo o que perdemos desde o ano de 2020.

Temos que empreender projetos proativos que nos diferenciem dos partidos políticos, projetos que mostrem o que todos têm a ganhar com nossas propostas e que ofereçam oportunidades para pessoas de todas as esferas da vida se envolverem no projeto de mudar o mundo para melhor.

A boa notícia é que podemos fazer isso. Já fizemos isso antes. Nos vemos na linha de frente.


Leitura Adicional


O DESASTRE TEM NOME: CAPITALISMO – Anarquistas no Sul do Brasil Falam Sobre as Enchentes e a Solidariedade no RS

Água invadindo a cidade de Porto Alegre em maio.

Nos primeiros dias do mês de maio de 2024, o território conhecido estado do Rio Grande do Sul, no assim chamado Brasil, foi atingido pela maior catástrofe climática de sua história. Mais de uma semana de chuvas intensas fizeram com que diversos rios transbordassem, arrasando dezenas de cidades e destruindo tudo no seu caminho, para então desaguarem no rio Guaíba causando a maior enchente já registrada na região da Grande Porto Alegre e outras cidades do estado. Até 1 de junho, 171 mortes foram confirmadas. Milhares de pessoas perderam tudo. 614 mil ficaram desabrigadas. Mais de dois milhões foram afetadas. Cidades inteiras praticamente apagadas do mapa pela força das águas.

Em números de pessoas afetadas e proporção dos danos materiais, a tragédia já supera a destruição causada pelo furacão Katrina na cidade em Nova Orelans, nos Estados Unidos em 2005. É o maior estrago econômico e estrutural causado por um evento climático no Brasil.

O Estado e o modo de produção capitalista têm responsabilidade direta pela devastação do planeta, produzindo cada vez mais catástrofes, derrubando florestas para dar lugar ao gado, às monoculturas e à mineração, degradando e impermeabilizando o solo com a expansão urbana. Em meio ao horror, fica evidente a completa incapacidade dos governos e dos ricos de cuidarem de nossas vidas e do nosso ambiente.

Município de Lajeado coberto de lama, após as águas da enchente de maio baixarem.

No centro dessa tragédia que anuncia uma nova realidade de eventos extremos cada vez mais frequentes, anarquistas, comunidades indígenas, quilombos e movimentos sociais organizam a solidariedade enquanto tentam reconstruir suas vidas e seus territórios gravemente afetados, seja pedindo e distribuindo doações, chamando por mutirões para limpar e voltar para imóveis atingidos, ou organizando novas ocupações de prédios vazios para abrigar pessoas que perderam suas casas.

Compilamos nesse artigo e em uma curta entrevista as reflexões sobre a atuação de anarquistas e outros movimentos de base atuando nessas campanhas por apoio mútuo em Porto Alegre e outras cidades atingidas pela maior enchente da história do Rio Grande do Sul.

Este artigo é também um vídeo produzido pelo coletivo Antimídia.

O ESTADO

No momento de um grande desastre “natural” – e até mesmo antes – o Estado deixa claro que sua prioridade nunca foi proteger nossas vidas. No longo prazo, o Estado brasileiro ignorou os alertas feitos décadas atrás sobre os perigos da devastação ambiental e das mudanças climática e também não tomou medidas eficazes para impedir catástrofes como esta. Mas mais do que isso, foi agente ativo da destruição – ora devastando de forma mais branda, ora devorando a terra de forma mais voraz. No governo neofascista de Bolsonaro, esse desprezo pela vida e ódio à natureza era escancarado. Mas mesmo os regimes sociais-democratas, incluindo governos progressistas de partidos como o PT, contribuíram em peso com o aquecimento global, apostando na indústria automotiva, na extração de petróleo e outras fontes de energia de alto impacto ambiental para alavancar o crescimento econômico. Em 2015, durante o governo de Dilma Rousseff, do PT, que relatórios científicos que apontavam para enchentes causadas pelas mudanças climáticas foram arquivados depois de serem considerados “alarmistas demais”.

Nos níveis estadual e municipal a negligência do Estado se repete com um impacto ainda mais direto e imediato sobre nossas vidas. Apesar dos repetidos comunicados dos sistemas meteorológicos, o governador e o prefeito não elaboraram planos nem realizaram alertas de evacuação adequados. Pelo contrário, não investiram o mínimo necessário na prevenção e proteção da população. O atual governador, Eduardo Leite (do partido de direita PSDB), retalhou a legislação ambiental do Estado para favorecer empresários e reduziu os investimentos na Defesa Civil durante seu governo. Quando questionado por jornalistas, Leite tentou justificar alegando que “tem esses estudos que, de alguma forma, alertam, mas o governo também tem outras agendas”.

Em Porto Alegre as comportas do dique que protegem a cidade falharam por falta de manutenção e erros no fechamento. O que ocorreu se tornou ainda mais grave pelo fato do DMAE (Departamento Municipal de Agua e Esgoto) ter acumulado as demandas do DEP (Departamento de Esgotos Pluviais), órgão responsável pelo sistema de diques, comportas e estações de bombeamento que protegem a capital gaúcha contra inundações, ter sido sucateado pelas últimas gestões da prefeitura de Porto Alegre. Segundo especialistas, a cidade não teria inundado se o sistema tivesse a manutenção e manejo adequados.

Para piorar o cenário, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, só decretou o racionamento de água depois que 85% da cidade já estava sem acesso à água potável. E a população de alguns bairros só foi avisada do desligamento das bombas que evitavam a inundação de suas casas depois delas terem sido desligadas, não lhes dando tempo hábil para evacuação.

CAPITALISMO É O DESASTRE

O modo de produção capitalista é a raiz das mudanças climáticas que ameaçam toda vida na terra. Ao mesmo tempo, as ações de corporações e grandes empresários que acumulam recursos materiais e financeiros fizeram pouco para ajudar nos resgates e aliviar o sofrimento da população. Pelo contrário, tornaram a situação ainda pior.

Os capitalistas fracassaram em manter os supermercados que ainda funcionavam abastecidos, pois ao estarem interessados no lucro das vendas, permitiram que pessoas com maior poder aquisitivo fizessem grandes estoques de água e mantimentos. Ao mesmo tempo, dezenas de lojas foram inundadas com água, alimentos e outros itens essenciais para a população trancados lá dentro sob a proteção de policiais e seguranças armados com fuzis, formando grupos paramilitares para impedir que pessoas famintas tivesse acesso a comida ou outros recursos. As empresas e o Estado se mostraram mais interessados em proteger essa mercadoria, do que deixar as pessoas terem acesso aos itens que mais necessitavam. Mesmo que esses itens fossem depois ser descartados ou indenizados por seguradoras.

Policial civil atira na direção de um suspeito de saquear supermercado em Porto Alegre.

Enquanto pessoas se voluntariavam para resgatar dezenas de milhares de cães, gatos e cavalos de telhados, montavam e organizavam espaços para acolhê-los, com atendimento veterinário e alimentação, empresas que comercializam animais abandonaram peixes, aves e mamíferos em suas gaiolas dentro das lojas inundadas, ao mesmo tempo em que se preocuparam em transferir os computadores para um andar mais elevado. Animais vendidos como objetos e abandonados para morrerem afogados, evidenciando a lógica desse sistema: para capitalistas, a vida é apenas mais uma mercadoria, a ser contabilizada e indenizada.

O pouco apoio que as grandes empresas ofereceram foi irrisório. A Grendene, uma das maiores produtoras de calçados do mundo, sugeriu que suas trabalhadoras doassem itens de suas próprias cestas básicas para pessoas atingidas pela enchente.

A indústria de bebidas Ambev, maior cervejaria do mundo, cujo lucro anual equivale ao dobro do orçamento da cidade de Porto Alegre, envasou água potável em latas de alumínio, constituindo mais uma ação de marketing do que qualquer forma de solidariedade real.

A FIERGS, entidade que representa as indústrias do Rio Grande do Sul pediu auxílio de R$100 bilhões ao governo federal para a recuperação das empresas atingidas pela enchente. Deixando claro que quando empresários falam em Estado mínimo, é apenas quando se trata dos interesses das pessoas menos favorecidas, mas querem um Estado forte para apoiar e defender os interesses da elite.

Defensores do capitalismo louvaram as ações de bilionários e empresários que doaram porções irrisórias de suas fortunas para ajudar as vítimas da enchente. Isso quando as boas ações não eram mentiras completas, como a imagem que mostraria um helicóptero do bilionário Luciano Hang resgatando pessoas ilhadas, que na verdade era uma imagem gerada por inteligência artificial.

Enquanto isso, pessoas comuns, inclusive algumas que perderam tudo, se mostraram muito mais solidárias e dispostas a ajudar, doando proporcionalmente muito mais de seus recursos que os super-ricos. Uma live solidária de uma banda de rock, arrecadou um valor maior do que as doações que o governo dos Estados Unidos e o bilionário egocêntrico Elon Musk enviaram para o Rio Grande do Sul, somados.

Isso pra não mencionar que capitalistas lucraram diretamente com a catástrofe, como os grandes mercados que venderam todos seus estoques de água engarrafada para pessoas desesperadas, muitas vezes a preços abusivos, e ainda tiveram recordes de vendas com a generosidade de pessoas comuns que compravam itens para doar a quem perdeu tudo. E vão continuar lucrando enquanto as pessoas afetadas e aquelas que se solidarizam com elas estiverem lutando para reconstruir o que foi perdido.

APOIO MÚTUO DE BASE

O apoio mútuo e a solidariedade entre pessoas atingidas se mostrou essencial para a sobrevivência e para não deixar a situação se tornar ainda pior. Ainda assim, a prefeitura de Porto Alegre tentou atrapalhar grupos voluntários que organizaram centros de doações em espaços cedidos e os mantiveram funcionando durante semanas, ao fazer acordos com os proprietários dos imóveis para que estes assumissem as operações que até então eram autogeridas pelas voluntárias, que foram então excluídas e criminalizadas. Em outro episódio, dia 20 de maio, a Polícia Militar apreendeu caminhão usado para distribuir comida a pessoas afetadas pelas enchentes. A polícia alegou que o caminhão da Cozinha Solidária da Azenha, ligada ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), estava sem licenciamento, porém não era possível fazer o licenciamento já que o sistemas estavam fora do ar em todo o estado devido aos efeitos das chuvas.

De fato, na grande maioria dos bairros, o auxílio às pessoas afetadas pela enchente ficou a cargo da própria comunidade e outros grupos voluntários que se articularam para garantir suprimentos de água, comida, roupas e agasalhos. Esse foi o caso das pessoas encarceradas ilhadas em presídios da região, sem acesso à água, alimento e itens de higiene. Coube às famílias, também afetadas pelas cheias, se organizarem para levar tais itens básicos e, assim, evitar o sofrimento ainda maior de pessoas sequestradas atrás das grades.

Cozinha Solidária da Azenha, organizada pelo MTST em Porto Alegre.

Outro exemplo é do Quilombo dos Machado, no bairro Sarandi, em Porto Alegre, que, com o apoio de outros quilombos urbanos da cidade, organizou essas operações por semanas, sem qualquer suporte do Estado. Como disse Luiz Machado, morador do Quilombo dos Machado, “esse acolhimento que o Estado devia estar fazendo, a comunidade, a gente pela gente mesmo está fazendo”. Quando a comunidade do Quilombo solicitou ajuda ao governador Eduardo Leite, do PSDB, este respondeu que “o Estado e o poder público não tem estrutura para atender todas as pontas”.

A cada declaração, as palavras do governador evidenciam uma versão da necropolítica brasileira e do racismo ambiental, desenhando um sistema voltado para cumprir demandas econômicas dos ricos, garantir lucros e votos em vez de destinar recursos para estruturas que podem salvar vidas – especialmente se for o caso de populações pobres, negras e indígenas, como é o caso dos grupos mais atingidos pelas atuais enchentes. Ressaltamos que não se trata de inação ou falha do Estado. Essas situações são partes do projeto de extermínio em curso.

Chamado para doações para ocupações anárquicas e autônomas atingidas pelas enchentes em Porto Alegre.

DEPOIS DA CATÁSTROFE: AÇÃO DIRETA

Os governos municipais e estaduais pretendem construir cidades temporárias para as dezenas de milhares de pessoas desabrigadas, até que os bairros onde moravam sejam reconstruídos ou novas habitações sejam construídas em outros locais. No entanto, a construção de moradias temporárias são desnecessárias e apenas desperdiçarão materiais e energia. Só em Porto Alegre existe mais de 100 mil residências vazias. No centro da cidade, 30% das habitações estão desocupadas. Um número 10 vezes maior do que o número de lares temporários planejados na cidade. Esse plano nada mais é do que mais uma forma de gerar lucro para as empreiteiras e para políticos alavancarem sua popularidade através de medidas populistas e ineficazes, que não atacam as raízes do sofrimento e da desigualdade. Pior do que isso, é uma tentativa de deslocar a população pobre e negra para longe de áreas cobiçadas pelo Estado e por empreiteiras, abrindo caminho para a apropriação de seus antigos lares por construtoras e seus projetos predatórios.

Como resposta ao problema da falta de moradia, novas ocupações de prédios estão surgindo. Um movimento autônomo de pessoas desabrigadas ocupou um antigo hotel abandonado no centro de Porto Alegre para acolher 45 famílias. O Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLN) ocupou também outro prédio, agora chamado de Ocupação Rexistência, dedicado a abrigar dezenas de famílias de pessoas atingidas pela atual crise. Membros do movimento alegam que não querem a construção de uma “cidade provisória” para famílias afetadas, e sim que os imóveis vazios sejam destinados imediatamente para a moradia. No dia 8 de junho, o MTST ocupou um prédio abandonado de 25 andares do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), também em Porto Alegre, para abrigar famílias desabrigadas pelas enchentes. Provando mais uma vez que os movimentos sociais e a ação direta estão sendo muito mais eficientes do que os governantes para abrigar as 160 mil pessoas que perderam suas casas.

Ocupação Maria da Conceição Tavares, surgida em junho, em Porto Alegre para abrigar vítimas das enchentes.

Para políticos e empresários, a reconstrução da cidade é uma oportunidade de lucrar. Serão necessárias quantidades gigantescas de materiais para reconstruir a infraestrutura e as casas destruídas pela água. E capitalistas vão lucrar produzindo e vendendo esses materiais. Empresas serão contratadas através de licitações feitas às pressas. E, como em toda ação do Estado aliado ao Capitalismo, haverá atrasos, corrupção, superfaturamento, desvio de verbas, favorecimentos.

Não vamos nos iludir, pois nem mesmo os supostos governos de esquerda, como o governo federal do PT, têm coragem e poder para atacar de frente o capitalismo e sua turba de defensores reacionários. Não importa qual partido estava ou estará no governo, da centro-esquerda democrática do PT até a extrema-direita lunática de Bolsonaro, o Estado brasileiro está intrinsecamente conectado ao capitalismo, ao enriquecimento de uma elite, barganhando o futuro da vida no planeta em troca de governabilidade.

CONCLUSÃO: NÃO EXISTE CATÁSTROFE NATURAL

A tragédia que devastou o território ocupado pelo estado do Rio Grande do Sul não foi simplesmente uma catástrofe natural inevitável. É mais um em uma série de eventos climáticos extremos que estão acontecendo com frequência e intensidade cada vez maior como resultado de décadas de destruição e exploração do planeta, ignorando alertas de cientistas e reprimindo a autodeterminação e resistência de movimentos sociais e povos tradicionais, em nome do crescimento econômico. Um sistema brutal onde Estado e capitalismo se unem para saquear a terra e explorar nossos corpos, ao mesmo tempo em que sabotam medidas que podem diminuir ou evitar os impactos desses eventos na vida da população.

Sentimos localmente as consequências de um problema global. O mesmo sistema que causa inundações no Rio Grande do Sul causa incêndios no Pantanal e na Amazônia, promove genocídio em Gaza para controlar reservas de gás natural e oprime estudantes que se levantam contra esse massacre; contamina a água, viola territórios indígenas e afunda bairros inteiros para arrancar da terra minérios cobiçados, destrói florestas, oceanos, montanhas e desertos para garantir lucro a um punhado de pessoas privilegiadas, enquanto condena bilhões ao sofrimento e à miséria.

Se por um lado o Estado e o capitalismo mostraram mais uma vez que sua prioridade não é o bem-estar da população ou a vida de modo geral, por outro pudemos perceber que a solidariedade brota espontaneamente e somos capazes de nos apoiar mutuamente, suplantando até sérias diferenças ideológicas.

Milhares de pessoas tomaram a frente e organizaram resgates, com seus próprios recursos, arriscando suas próprias vidas para salvar a de outras pessoas, humanas ou não. A criação de abrigos e pontos de apoio como centros de distribuição de doações e cozinhas solidárias e emergenciais, que produzem diariamente milhares de marmitas para as pessoas desabrigadas, transportadas por motoristas voluntárias. Tudo mantido por uma rede massiva de solidariedade, que se estendeu para fora das regiões afetadas pelo desastre, se alastrando por todo território ocupado pelo Estado Brasileiro, e outros países.

Quando o desastre se instaurou, a meritocracia e o individualismo foram rapidamente deixados de lado pela maior parte da população, que dedicou seu tempo a ajudar outras pessoas sem se perguntar se elas mereciam aquela ajuda e sem esperar qualquer recompensa por isso. Pessoas que pagaram do seu próprio bolso para garantir que outras pessoas tivessem o que vestir e o que comer, compartilhando recursos materiais sem exigir uma troca financeira. Foram essas pessoas que colocaram suas vidas em risco para garantir a sobrevivência de outras. No meio da catástrofe, muitas as tiveram a chance de perceber que estamos todas juntas nisso e que dinheiro é de pouca ajuda quando não há mais água para vender no mercado.

O Estado e o mercado farão o que estiver ao seu alcance para assumir e centralizar as ações de solidariedade auto-organizadas. Seja tomando à força o controle das operações, requisitando os imóveis utilizados para retomada de aulas ou dos trabalhos, coagindo as pessoas a voltarem aos seus empregos ou formalizando e institucionalizando as organizações que permanecerem. Nossa auto-organização e nossa solidariedade irrestrita são uma ameaça real ao governo e ao capitalismo, pois eles dependem da nossa desunião, da nossa indiferença e inação frente ao sofrimento das outras pessoas.

Para evitar que capitalistas usem essa e as próximas catástrofes para avançar seus projetos destrutivos precisamos continuar nos mobilizando e nos coordenando. Cabe a nós nos organizarmos para tomar e ocupar imóveis ociosos e abandonados e garantir que sejam usados para benefício de nossas comunidades. Certificar-nos que prédios de igrejas sejam usados para apoiar pessoas em necessidade e não para espalhar ódio e intolerância. Lutar para que ninguém lucre com a tragédia, para que os recursos sejam distribuídos a quem precisa. Se precisamos reconstruir nossas vidas e nossas cidades, vamos ter certeza de construir algo melhor, mais justo.

Se o que se chama de humanidade tem futuro, esse futuro será coletivo. Ou, simplesmente, não será.


Entrevista com membros do Território Okupado dos Mil Povos

A Okupa dos Mil Povos é uma ocupação com quase 20 anos de história em Porto Alegre. Localizada em um dos bairros mais afetados pela enchente, o território ficou submerso por 24 dias. Dentre os habitantes, estão crianças, cães e gatos que ainda sofrem com os efeitos da água, da lama, dos óleos e produtos químicos que restaram depois das enchentes. Além dos efeitos causados pelos produtos para limpeza pesada necessários para reativar e retomar o espaço. Nessa breve entrevista, conversamos com participantes da ocupação sobre os desafios e os trabalhos de solidariedade e captação de recursos para recuperar o espaço e retomar a vida após a tragédia, agora que, mais do que nunca, catástrofes climáticas não são mais uma ameaça futura, mas parte do presente de todos que sobrevivem ao capitalismo.

1. Fale um pouco da Okupa dos Mil Povos, sua atuação nos últimos anos e como as enchentes de maio afetaram os espaço, a vida e as atividades no espaço.

O Território Okupado dos Mil Povos nasce como um coletivo autônomo no começo do ano de 2021. Este coletivo anárquico, composto por várias pessoas vindas de diferentes partes do mundo, surge dentro de uma okupa surgida em 2005 quando expropriou o capitalismo e a especulação imobiliária para construir uma alternativa real à vida inerte do neoliberalismo imperante. Nestes poucos anos de vida como coletivo deu rédea solta ao acúmulo de conhecimentos que o Movimento Anarkopunk construiu durante décadas, seguindo também a herança rebelde e combativa de muitas gerações de anarquistas que deram suas vidas para construir o presente de luta que hoje levamos a cabo com autogestão e ação direta. Temos sido parte ativa da Teia dos Povos em luta do Rio Grande do Sul, criando e mantendo uma banca de difusão de material teórico e gráfico por 2 anos, aproximando as pessoas das ideias de autonomia da Teia que se expande por todo o Brasil.

Construímos junto com aldeias indígenas e quilombolas a 5ª Assembleia dos povos (2022), realizamos também jornadas de saúde com indígenas Warao que imigraram desde a Venezuela, autofinanciamos com rifas e vendas de camisetas serigrafadas a casa de cura e reza para a comunidade Kaingang na retomada em Canela, na Serra Gaúcha, bem como muitas jornadas de construção, hortas, muralismo (2022), conversas e discussões. Fomos parte de um coletivo de propaganda e muralismo que se reunia no Ateneu Batalha da Várzea (2021, 2022). Neste Ateneu nosso coletivo realizou em 2022 uma jornada de difusão sobre os conflitos na América Latina que chamamos de “latinoamérica em chamas”, onde tivemos participações desde a Colômbia, Equador e Chile.

Realizamos chamados abertos de manifestações de rua, denunciando a perseguição e desaparecimento de indígenas Yanomami (2022) e em apoio ao povo colombiano em 2021. Visitamos, acompanhamos e promovemos retomadas de territórios ancestrais ao lado de povos indígenas Kaingang, Xokleng e Guarani. Escrevemos pelos muros da cidade de Porto Alegre mil vezes, de dia e de noite, em manifestações ou na escuridão da noite.

As inundações de maio somente confirmam e reafirmam que a luta contra o capitalismo e os Estados de todo o mundo é cada dia mais imprescindível e vital. Nossa casa, junto com o espaço comunitário, ficou debaixo d’água, debaixo do barro, dos químicos e óleos contaminantes por mais de 20 dias. Seguiremos limpando e continuaremos construindo autonomia e rebeldia popular anárquica, sem líderes nem partidos, até destruir o último pilar da sociedade carcerária.

Território Okupado dos Mil Povos

2. Como tem sido organizadas as ações de apoio mútuo agora, um mês após as enchentes?

Agora, após o primeiro mês desde a inundação, já não sobra mais doação que não seja institucionalizada ou burocratizada com registros sociais e persoais. Neste contexto, para nós é muito difícil recuperar algo desde essas plataformas. Nossas únicas entradas de dinheiro, por assim dizer, são de companheirxs solidárixs e de pessoas conhecidas que sabem de nossa situação e nos ajudam com alguma coisa. Seguimos muito necessitadxs de coisas básicas como camas, uma cozinha e uma geladeira. São coisas que não temos acesso por falta de recursos econômicos, com nossos trabalhos não conseguimos cubrir os gastos de coisas como essas. No começo chegaram todas as ajudas e, apesar de não ter sido suficiente frente a tudo o que perdemos, ficamos muito felizes de sentir e ver o apoio mútuo de pessoas, em especial dos meios anárquicos, que é onde mais se vê a solidariedade em um momento de perdas como este. Também vemos uma constância na geração e acumulação de dados por parte da maioria das ONGs e instituições de entrega.

3. Quais ocupações foram afetadas e como tem sido a colaboração entre centros sociais radicais, ocupações e outros movimentos para se reerguer?

Em Porto Alegre existem várias okupações, todas muito diferentes umas das outras, de tendências de esquerda e outras também anarquistas, de dissidências de gênero etc. Desde nossa experiência enquanto casa, creio que o apoio entre esses centros tem sido quase nulo, é triste, mas real. Existe um centro social não okupado que fez uma ponte entre esses espaços anarquistas, o coletivo “Esp(A)ço” fez uma campanha grande onde conseguiram comprar algumas ferramentas coletivas que, em certo sentido, foi a ponte para o mínimo de diálogo e comunicação. É importante assinalar que as relações de afinidade pessoal também levam e trazem esse fluxo de comunicação que não é tão visível, mas existe. No final das contas, todxs sabemos como estão xs companeirxs de outros espaços por esse boca-a-boca que desde as sombras se comunica. Outros canais de entrega de doações normalmente são muito limitados e precários, além de burocráticos. Em geral nós recebemos pouca coisa e nos dedicamos a contribuir com outros espaços de resistência, apesar de não sermos tão próximxs em relação ao pensamento e a ação. Vemos a urgência da necessidade de coordenação mínima de espaços anárquicos e também na construção de instâncias colectivas meramente ácratas.

4. Como pessoas de fora do Rio Grande do Sul e também de fora do Brasil podem ajudar o trabalho de reconstrução e retomada das atividades nas ocupações em Porto Alegre e região?

Para responder a última pergunta, gostaríamos de dizer que vemos a solidariedade ácrata desde vários pontos de vista. O primeiro é o material, sem dúvida, muitas vezes é urgente para o cotidiano e a subsistência. Nesse sentido, ainda temos canais abertos para receber apoios desde qualquer parte do planeta. Acreditamos que a solidariedade combativa é muito importante. Seguir fortalecendo a luta frontal contra todas as estruturas de poder também faz parte da ferramenta chamada solidariedade. Outra dimensão importante que vemos é a comunicação para além do Instagram ou Facebook. A conversa direta é importante para aproximarmos as diferentes realidades e gerar afinidades futuras. Para terminar, agradecemos a todxs que ainda acreditam que a anarquia é possível, que construí-la é uma tarefa cotidiana e que se esforçam para viver cada dia mais concretamente suas ideias de liberdade!!!

Abrazos para todxs!!!

Desde el territorio okupado de los mil pueblos,
8 de junio 2024, Porto Alegre
Individualidades organizadas y colectivo anárquico de los mil pueblos


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