O DESASTRE TEM NOME: CAPITALISMO – Anarquistas no Sul do Brasil Falam Sobre as Enchentes e a Solidariedade no RS

Água invadindo a cidade de Porto Alegre em maio.

Nos primeiros dias do mês de maio de 2024, o território conhecido estado do Rio Grande do Sul, no assim chamado Brasil, foi atingido pela maior catástrofe climática de sua história. Mais de uma semana de chuvas intensas fizeram com que diversos rios transbordassem, arrasando dezenas de cidades e destruindo tudo no seu caminho, para então desaguarem no rio Guaíba causando a maior enchente já registrada na região da Grande Porto Alegre e outras cidades do estado. Até 1 de junho, 171 mortes foram confirmadas. Milhares de pessoas perderam tudo. 614 mil ficaram desabrigadas. Mais de dois milhões foram afetadas. Cidades inteiras praticamente apagadas do mapa pela força das águas.

Em números de pessoas afetadas e proporção dos danos materiais, a tragédia já supera a destruição causada pelo furacão Katrina na cidade em Nova Orelans, nos Estados Unidos em 2005. É o maior estrago econômico e estrutural causado por um evento climático no Brasil.

O Estado e o modo de produção capitalista têm responsabilidade direta pela devastação do planeta, produzindo cada vez mais catástrofes, derrubando florestas para dar lugar ao gado, às monoculturas e à mineração, degradando e impermeabilizando o solo com a expansão urbana. Em meio ao horror, fica evidente a completa incapacidade dos governos e dos ricos de cuidarem de nossas vidas e do nosso ambiente.

Município de Lajeado coberto de lama, após as águas da enchente de maio baixarem.

No centro dessa tragédia que anuncia uma nova realidade de eventos extremos cada vez mais frequentes, anarquistas, comunidades indígenas, quilombos e movimentos sociais organizam a solidariedade enquanto tentam reconstruir suas vidas e seus territórios gravemente afetados, seja pedindo e distribuindo doações, chamando por mutirões para limpar e voltar para imóveis atingidos, ou organizando novas ocupações de prédios vazios para abrigar pessoas que perderam suas casas.

Compilamos nesse artigo e em uma curta entrevista as reflexões sobre a atuação de anarquistas e outros movimentos de base atuando nessas campanhas por apoio mútuo em Porto Alegre e outras cidades atingidas pela maior enchente da história do Rio Grande do Sul.

Este artigo é também um vídeo produzido pelo coletivo Antimídia.

O ESTADO

No momento de um grande desastre “natural” – e até mesmo antes – o Estado deixa claro que sua prioridade nunca foi proteger nossas vidas. No longo prazo, o Estado brasileiro ignorou os alertas feitos décadas atrás sobre os perigos da devastação ambiental e das mudanças climática e também não tomou medidas eficazes para impedir catástrofes como esta. Mas mais do que isso, foi agente ativo da destruição – ora devastando de forma mais branda, ora devorando a terra de forma mais voraz. No governo neofascista de Bolsonaro, esse desprezo pela vida e ódio à natureza era escancarado. Mas mesmo os regimes sociais-democratas, incluindo governos progressistas de partidos como o PT, contribuíram em peso com o aquecimento global, apostando na indústria automotiva, na extração de petróleo e outras fontes de energia de alto impacto ambiental para alavancar o crescimento econômico. Em 2015, durante o governo de Dilma Rousseff, do PT, que relatórios científicos que apontavam para enchentes causadas pelas mudanças climáticas foram arquivados depois de serem considerados “alarmistas demais”.

Nos níveis estadual e municipal a negligência do Estado se repete com um impacto ainda mais direto e imediato sobre nossas vidas. Apesar dos repetidos comunicados dos sistemas meteorológicos, o governador e o prefeito não elaboraram planos nem realizaram alertas de evacuação adequados. Pelo contrário, não investiram o mínimo necessário na prevenção e proteção da população. O atual governador, Eduardo Leite (do partido de direita PSDB), retalhou a legislação ambiental do Estado para favorecer empresários e reduziu os investimentos na Defesa Civil durante seu governo. Quando questionado por jornalistas, Leite tentou justificar alegando que “tem esses estudos que, de alguma forma, alertam, mas o governo também tem outras agendas”.

Em Porto Alegre as comportas do dique que protegem a cidade falharam por falta de manutenção e erros no fechamento. O que ocorreu se tornou ainda mais grave pelo fato do DMAE (Departamento Municipal de Agua e Esgoto) ter acumulado as demandas do DEP (Departamento de Esgotos Pluviais), órgão responsável pelo sistema de diques, comportas e estações de bombeamento que protegem a capital gaúcha contra inundações, ter sido sucateado pelas últimas gestões da prefeitura de Porto Alegre. Segundo especialistas, a cidade não teria inundado se o sistema tivesse a manutenção e manejo adequados.

Para piorar o cenário, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, só decretou o racionamento de água depois que 85% da cidade já estava sem acesso à água potável. E a população de alguns bairros só foi avisada do desligamento das bombas que evitavam a inundação de suas casas depois delas terem sido desligadas, não lhes dando tempo hábil para evacuação.

CAPITALISMO É O DESASTRE

O modo de produção capitalista é a raiz das mudanças climáticas que ameaçam toda vida na terra. Ao mesmo tempo, as ações de corporações e grandes empresários que acumulam recursos materiais e financeiros fizeram pouco para ajudar nos resgates e aliviar o sofrimento da população. Pelo contrário, tornaram a situação ainda pior.

Os capitalistas fracassaram em manter os supermercados que ainda funcionavam abastecidos, pois ao estarem interessados no lucro das vendas, permitiram que pessoas com maior poder aquisitivo fizessem grandes estoques de água e mantimentos. Ao mesmo tempo, dezenas de lojas foram inundadas com água, alimentos e outros itens essenciais para a população trancados lá dentro sob a proteção de policiais e seguranças armados com fuzis, formando grupos paramilitares para impedir que pessoas famintas tivesse acesso a comida ou outros recursos. As empresas e o Estado se mostraram mais interessados em proteger essa mercadoria, do que deixar as pessoas terem acesso aos itens que mais necessitavam. Mesmo que esses itens fossem depois ser descartados ou indenizados por seguradoras.

Policial civil atira na direção de um suspeito de saquear supermercado em Porto Alegre.

Enquanto pessoas se voluntariavam para resgatar dezenas de milhares de cães, gatos e cavalos de telhados, montavam e organizavam espaços para acolhê-los, com atendimento veterinário e alimentação, empresas que comercializam animais abandonaram peixes, aves e mamíferos em suas gaiolas dentro das lojas inundadas, ao mesmo tempo em que se preocuparam em transferir os computadores para um andar mais elevado. Animais vendidos como objetos e abandonados para morrerem afogados, evidenciando a lógica desse sistema: para capitalistas, a vida é apenas mais uma mercadoria, a ser contabilizada e indenizada.

O pouco apoio que as grandes empresas ofereceram foi irrisório. A Grendene, uma das maiores produtoras de calçados do mundo, sugeriu que suas trabalhadoras doassem itens de suas próprias cestas básicas para pessoas atingidas pela enchente.

A indústria de bebidas Ambev, maior cervejaria do mundo, cujo lucro anual equivale ao dobro do orçamento da cidade de Porto Alegre, envasou água potável em latas de alumínio, constituindo mais uma ação de marketing do que qualquer forma de solidariedade real.

A FIERGS, entidade que representa as indústrias do Rio Grande do Sul pediu auxílio de R$100 bilhões ao governo federal para a recuperação das empresas atingidas pela enchente. Deixando claro que quando empresários falam em Estado mínimo, é apenas quando se trata dos interesses das pessoas menos favorecidas, mas querem um Estado forte para apoiar e defender os interesses da elite.

Defensores do capitalismo louvaram as ações de bilionários e empresários que doaram porções irrisórias de suas fortunas para ajudar as vítimas da enchente. Isso quando as boas ações não eram mentiras completas, como a imagem que mostraria um helicóptero do bilionário Luciano Hang resgatando pessoas ilhadas, que na verdade era uma imagem gerada por inteligência artificial.

Enquanto isso, pessoas comuns, inclusive algumas que perderam tudo, se mostraram muito mais solidárias e dispostas a ajudar, doando proporcionalmente muito mais de seus recursos que os super-ricos. Uma live solidária de uma banda de rock, arrecadou um valor maior do que as doações que o governo dos Estados Unidos e o bilionário egocêntrico Elon Musk enviaram para o Rio Grande do Sul, somados.

Isso pra não mencionar que capitalistas lucraram diretamente com a catástrofe, como os grandes mercados que venderam todos seus estoques de água engarrafada para pessoas desesperadas, muitas vezes a preços abusivos, e ainda tiveram recordes de vendas com a generosidade de pessoas comuns que compravam itens para doar a quem perdeu tudo. E vão continuar lucrando enquanto as pessoas afetadas e aquelas que se solidarizam com elas estiverem lutando para reconstruir o que foi perdido.

APOIO MÚTUO DE BASE

O apoio mútuo e a solidariedade entre pessoas atingidas se mostrou essencial para a sobrevivência e para não deixar a situação se tornar ainda pior. Ainda assim, a prefeitura de Porto Alegre tentou atrapalhar grupos voluntários que organizaram centros de doações em espaços cedidos e os mantiveram funcionando durante semanas, ao fazer acordos com os proprietários dos imóveis para que estes assumissem as operações que até então eram autogeridas pelas voluntárias, que foram então excluídas e criminalizadas. Em outro episódio, dia 20 de maio, a Polícia Militar apreendeu caminhão usado para distribuir comida a pessoas afetadas pelas enchentes. A polícia alegou que o caminhão da Cozinha Solidária da Azenha, ligada ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), estava sem licenciamento, porém não era possível fazer o licenciamento já que o sistemas estavam fora do ar em todo o estado devido aos efeitos das chuvas.

De fato, na grande maioria dos bairros, o auxílio às pessoas afetadas pela enchente ficou a cargo da própria comunidade e outros grupos voluntários que se articularam para garantir suprimentos de água, comida, roupas e agasalhos. Esse foi o caso das pessoas encarceradas ilhadas em presídios da região, sem acesso à água, alimento e itens de higiene. Coube às famílias, também afetadas pelas cheias, se organizarem para levar tais itens básicos e, assim, evitar o sofrimento ainda maior de pessoas sequestradas atrás das grades.

Cozinha Solidária da Azenha, organizada pelo MTST em Porto Alegre.

Outro exemplo é do Quilombo dos Machado, no bairro Sarandi, em Porto Alegre, que, com o apoio de outros quilombos urbanos da cidade, organizou essas operações por semanas, sem qualquer suporte do Estado. Como disse Luiz Machado, morador do Quilombo dos Machado, “esse acolhimento que o Estado devia estar fazendo, a comunidade, a gente pela gente mesmo está fazendo”. Quando a comunidade do Quilombo solicitou ajuda ao governador Eduardo Leite, do PSDB, este respondeu que “o Estado e o poder público não tem estrutura para atender todas as pontas”.

A cada declaração, as palavras do governador evidenciam uma versão da necropolítica brasileira e do racismo ambiental, desenhando um sistema voltado para cumprir demandas econômicas dos ricos, garantir lucros e votos em vez de destinar recursos para estruturas que podem salvar vidas – especialmente se for o caso de populações pobres, negras e indígenas, como é o caso dos grupos mais atingidos pelas atuais enchentes. Ressaltamos que não se trata de inação ou falha do Estado. Essas situações são partes do projeto de extermínio em curso.

Chamado para doações para ocupações anárquicas e autônomas atingidas pelas enchentes em Porto Alegre.

DEPOIS DA CATÁSTROFE: AÇÃO DIRETA

Os governos municipais e estaduais pretendem construir cidades temporárias para as dezenas de milhares de pessoas desabrigadas, até que os bairros onde moravam sejam reconstruídos ou novas habitações sejam construídas em outros locais. No entanto, a construção de moradias temporárias são desnecessárias e apenas desperdiçarão materiais e energia. Só em Porto Alegre existe mais de 100 mil residências vazias. No centro da cidade, 30% das habitações estão desocupadas. Um número 10 vezes maior do que o número de lares temporários planejados na cidade. Esse plano nada mais é do que mais uma forma de gerar lucro para as empreiteiras e para políticos alavancarem sua popularidade através de medidas populistas e ineficazes, que não atacam as raízes do sofrimento e da desigualdade. Pior do que isso, é uma tentativa de deslocar a população pobre e negra para longe de áreas cobiçadas pelo Estado e por empreiteiras, abrindo caminho para a apropriação de seus antigos lares por construtoras e seus projetos predatórios.

Como resposta ao problema da falta de moradia, novas ocupações de prédios estão surgindo. Um movimento autônomo de pessoas desabrigadas ocupou um antigo hotel abandonado no centro de Porto Alegre para acolher 45 famílias. O Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLN) ocupou também outro prédio, agora chamado de Ocupação Rexistência, dedicado a abrigar dezenas de famílias de pessoas atingidas pela atual crise. Membros do movimento alegam que não querem a construção de uma “cidade provisória” para famílias afetadas, e sim que os imóveis vazios sejam destinados imediatamente para a moradia. No dia 8 de junho, o MTST ocupou um prédio abandonado de 25 andares do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), também em Porto Alegre, para abrigar famílias desabrigadas pelas enchentes. Provando mais uma vez que os movimentos sociais e a ação direta estão sendo muito mais eficientes do que os governantes para abrigar as 160 mil pessoas que perderam suas casas.

Ocupação Maria da Conceição Tavares, surgida em junho, em Porto Alegre para abrigar vítimas das enchentes.

Para políticos e empresários, a reconstrução da cidade é uma oportunidade de lucrar. Serão necessárias quantidades gigantescas de materiais para reconstruir a infraestrutura e as casas destruídas pela água. E capitalistas vão lucrar produzindo e vendendo esses materiais. Empresas serão contratadas através de licitações feitas às pressas. E, como em toda ação do Estado aliado ao Capitalismo, haverá atrasos, corrupção, superfaturamento, desvio de verbas, favorecimentos.

Não vamos nos iludir, pois nem mesmo os supostos governos de esquerda, como o governo federal do PT, têm coragem e poder para atacar de frente o capitalismo e sua turba de defensores reacionários. Não importa qual partido estava ou estará no governo, da centro-esquerda democrática do PT até a extrema-direita lunática de Bolsonaro, o Estado brasileiro está intrinsecamente conectado ao capitalismo, ao enriquecimento de uma elite, barganhando o futuro da vida no planeta em troca de governabilidade.

CONCLUSÃO: NÃO EXISTE CATÁSTROFE NATURAL

A tragédia que devastou o território ocupado pelo estado do Rio Grande do Sul não foi simplesmente uma catástrofe natural inevitável. É mais um em uma série de eventos climáticos extremos que estão acontecendo com frequência e intensidade cada vez maior como resultado de décadas de destruição e exploração do planeta, ignorando alertas de cientistas e reprimindo a autodeterminação e resistência de movimentos sociais e povos tradicionais, em nome do crescimento econômico. Um sistema brutal onde Estado e capitalismo se unem para saquear a terra e explorar nossos corpos, ao mesmo tempo em que sabotam medidas que podem diminuir ou evitar os impactos desses eventos na vida da população.

Sentimos localmente as consequências de um problema global. O mesmo sistema que causa inundações no Rio Grande do Sul causa incêndios no Pantanal e na Amazônia, promove genocídio em Gaza para controlar reservas de gás natural e oprime estudantes que se levantam contra esse massacre; contamina a água, viola territórios indígenas e afunda bairros inteiros para arrancar da terra minérios cobiçados, destrói florestas, oceanos, montanhas e desertos para garantir lucro a um punhado de pessoas privilegiadas, enquanto condena bilhões ao sofrimento e à miséria.

Se por um lado o Estado e o capitalismo mostraram mais uma vez que sua prioridade não é o bem-estar da população ou a vida de modo geral, por outro pudemos perceber que a solidariedade brota espontaneamente e somos capazes de nos apoiar mutuamente, suplantando até sérias diferenças ideológicas.

Milhares de pessoas tomaram a frente e organizaram resgates, com seus próprios recursos, arriscando suas próprias vidas para salvar a de outras pessoas, humanas ou não. A criação de abrigos e pontos de apoio como centros de distribuição de doações e cozinhas solidárias e emergenciais, que produzem diariamente milhares de marmitas para as pessoas desabrigadas, transportadas por motoristas voluntárias. Tudo mantido por uma rede massiva de solidariedade, que se estendeu para fora das regiões afetadas pelo desastre, se alastrando por todo território ocupado pelo Estado Brasileiro, e outros países.

Quando o desastre se instaurou, a meritocracia e o individualismo foram rapidamente deixados de lado pela maior parte da população, que dedicou seu tempo a ajudar outras pessoas sem se perguntar se elas mereciam aquela ajuda e sem esperar qualquer recompensa por isso. Pessoas que pagaram do seu próprio bolso para garantir que outras pessoas tivessem o que vestir e o que comer, compartilhando recursos materiais sem exigir uma troca financeira. Foram essas pessoas que colocaram suas vidas em risco para garantir a sobrevivência de outras. No meio da catástrofe, muitas as tiveram a chance de perceber que estamos todas juntas nisso e que dinheiro é de pouca ajuda quando não há mais água para vender no mercado.

O Estado e o mercado farão o que estiver ao seu alcance para assumir e centralizar as ações de solidariedade auto-organizadas. Seja tomando à força o controle das operações, requisitando os imóveis utilizados para retomada de aulas ou dos trabalhos, coagindo as pessoas a voltarem aos seus empregos ou formalizando e institucionalizando as organizações que permanecerem. Nossa auto-organização e nossa solidariedade irrestrita são uma ameaça real ao governo e ao capitalismo, pois eles dependem da nossa desunião, da nossa indiferença e inação frente ao sofrimento das outras pessoas.

Para evitar que capitalistas usem essa e as próximas catástrofes para avançar seus projetos destrutivos precisamos continuar nos mobilizando e nos coordenando. Cabe a nós nos organizarmos para tomar e ocupar imóveis ociosos e abandonados e garantir que sejam usados para benefício de nossas comunidades. Certificar-nos que prédios de igrejas sejam usados para apoiar pessoas em necessidade e não para espalhar ódio e intolerância. Lutar para que ninguém lucre com a tragédia, para que os recursos sejam distribuídos a quem precisa. Se precisamos reconstruir nossas vidas e nossas cidades, vamos ter certeza de construir algo melhor, mais justo.

Se o que se chama de humanidade tem futuro, esse futuro será coletivo. Ou, simplesmente, não será.


Entrevista com membros do Território Okupado dos Mil Povos

A Okupa dos Mil Povos é uma ocupação com quase 20 anos de história em Porto Alegre. Localizada em um dos bairros mais afetados pela enchente, o território ficou submerso por 24 dias. Dentre os habitantes, estão crianças, cães e gatos que ainda sofrem com os efeitos da água, da lama, dos óleos e produtos químicos que restaram depois das enchentes. Além dos efeitos causados pelos produtos para limpeza pesada necessários para reativar e retomar o espaço. Nessa breve entrevista, conversamos com participantes da ocupação sobre os desafios e os trabalhos de solidariedade e captação de recursos para recuperar o espaço e retomar a vida após a tragédia, agora que, mais do que nunca, catástrofes climáticas não são mais uma ameaça futura, mas parte do presente de todos que sobrevivem ao capitalismo.

1. Fale um pouco da Okupa dos Mil Povos, sua atuação nos últimos anos e como as enchentes de maio afetaram os espaço, a vida e as atividades no espaço.

O Território Okupado dos Mil Povos nasce como um coletivo autônomo no começo do ano de 2021. Este coletivo anárquico, composto por várias pessoas vindas de diferentes partes do mundo, surge dentro de uma okupa surgida em 2005 quando expropriou o capitalismo e a especulação imobiliária para construir uma alternativa real à vida inerte do neoliberalismo imperante. Nestes poucos anos de vida como coletivo deu rédea solta ao acúmulo de conhecimentos que o Movimento Anarkopunk construiu durante décadas, seguindo também a herança rebelde e combativa de muitas gerações de anarquistas que deram suas vidas para construir o presente de luta que hoje levamos a cabo com autogestão e ação direta. Temos sido parte ativa da Teia dos Povos em luta do Rio Grande do Sul, criando e mantendo uma banca de difusão de material teórico e gráfico por 2 anos, aproximando as pessoas das ideias de autonomia da Teia que se expande por todo o Brasil.

Construímos junto com aldeias indígenas e quilombolas a 5ª Assembleia dos povos (2022), realizamos também jornadas de saúde com indígenas Warao que imigraram desde a Venezuela, autofinanciamos com rifas e vendas de camisetas serigrafadas a casa de cura e reza para a comunidade Kaingang na retomada em Canela, na Serra Gaúcha, bem como muitas jornadas de construção, hortas, muralismo (2022), conversas e discussões. Fomos parte de um coletivo de propaganda e muralismo que se reunia no Ateneu Batalha da Várzea (2021, 2022). Neste Ateneu nosso coletivo realizou em 2022 uma jornada de difusão sobre os conflitos na América Latina que chamamos de “latinoamérica em chamas”, onde tivemos participações desde a Colômbia, Equador e Chile.

Realizamos chamados abertos de manifestações de rua, denunciando a perseguição e desaparecimento de indígenas Yanomami (2022) e em apoio ao povo colombiano em 2021. Visitamos, acompanhamos e promovemos retomadas de territórios ancestrais ao lado de povos indígenas Kaingang, Xokleng e Guarani. Escrevemos pelos muros da cidade de Porto Alegre mil vezes, de dia e de noite, em manifestações ou na escuridão da noite.

As inundações de maio somente confirmam e reafirmam que a luta contra o capitalismo e os Estados de todo o mundo é cada dia mais imprescindível e vital. Nossa casa, junto com o espaço comunitário, ficou debaixo d’água, debaixo do barro, dos químicos e óleos contaminantes por mais de 20 dias. Seguiremos limpando e continuaremos construindo autonomia e rebeldia popular anárquica, sem líderes nem partidos, até destruir o último pilar da sociedade carcerária.

Território Okupado dos Mil Povos

2. Como tem sido organizadas as ações de apoio mútuo agora, um mês após as enchentes?

Agora, após o primeiro mês desde a inundação, já não sobra mais doação que não seja institucionalizada ou burocratizada com registros sociais e persoais. Neste contexto, para nós é muito difícil recuperar algo desde essas plataformas. Nossas únicas entradas de dinheiro, por assim dizer, são de companheirxs solidárixs e de pessoas conhecidas que sabem de nossa situação e nos ajudam com alguma coisa. Seguimos muito necessitadxs de coisas básicas como camas, uma cozinha e uma geladeira. São coisas que não temos acesso por falta de recursos econômicos, com nossos trabalhos não conseguimos cubrir os gastos de coisas como essas. No começo chegaram todas as ajudas e, apesar de não ter sido suficiente frente a tudo o que perdemos, ficamos muito felizes de sentir e ver o apoio mútuo de pessoas, em especial dos meios anárquicos, que é onde mais se vê a solidariedade em um momento de perdas como este. Também vemos uma constância na geração e acumulação de dados por parte da maioria das ONGs e instituições de entrega.

3. Quais ocupações foram afetadas e como tem sido a colaboração entre centros sociais radicais, ocupações e outros movimentos para se reerguer?

Em Porto Alegre existem várias okupações, todas muito diferentes umas das outras, de tendências de esquerda e outras também anarquistas, de dissidências de gênero etc. Desde nossa experiência enquanto casa, creio que o apoio entre esses centros tem sido quase nulo, é triste, mas real. Existe um centro social não okupado que fez uma ponte entre esses espaços anarquistas, o coletivo “Esp(A)ço” fez uma campanha grande onde conseguiram comprar algumas ferramentas coletivas que, em certo sentido, foi a ponte para o mínimo de diálogo e comunicação. É importante assinalar que as relações de afinidade pessoal também levam e trazem esse fluxo de comunicação que não é tão visível, mas existe. No final das contas, todxs sabemos como estão xs companeirxs de outros espaços por esse boca-a-boca que desde as sombras se comunica. Outros canais de entrega de doações normalmente são muito limitados e precários, além de burocráticos. Em geral nós recebemos pouca coisa e nos dedicamos a contribuir com outros espaços de resistência, apesar de não sermos tão próximxs em relação ao pensamento e a ação. Vemos a urgência da necessidade de coordenação mínima de espaços anárquicos e também na construção de instâncias colectivas meramente ácratas.

4. Como pessoas de fora do Rio Grande do Sul e também de fora do Brasil podem ajudar o trabalho de reconstrução e retomada das atividades nas ocupações em Porto Alegre e região?

Para responder a última pergunta, gostaríamos de dizer que vemos a solidariedade ácrata desde vários pontos de vista. O primeiro é o material, sem dúvida, muitas vezes é urgente para o cotidiano e a subsistência. Nesse sentido, ainda temos canais abertos para receber apoios desde qualquer parte do planeta. Acreditamos que a solidariedade combativa é muito importante. Seguir fortalecendo a luta frontal contra todas as estruturas de poder também faz parte da ferramenta chamada solidariedade. Outra dimensão importante que vemos é a comunicação para além do Instagram ou Facebook. A conversa direta é importante para aproximarmos as diferentes realidades e gerar afinidades futuras. Para terminar, agradecemos a todxs que ainda acreditam que a anarquia é possível, que construí-la é uma tarefa cotidiana e que se esforçam para viver cada dia mais concretamente suas ideias de liberdade!!!

Abrazos para todxs!!!

Desde el territorio okupado de los mil pueblos,
8 de junio 2024, Porto Alegre
Individualidades organizadas y colectivo anárquico de los mil pueblos


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BLACK BLOCS E LIBERTAÇÃO ANIMAL – 10 anos de uma das ações radicais mais emblemáticas de 2013

Exatamente 10 anos atrás, em outubro de 2013, um protesto contra o uso de animais em testes realizados em um laboratório no interior do estado de São Paulo se transformou em uma das mais emblemáticas ações diretas daquele ano que mudou o cenário político e os movimentos sociais no Brasil. O evento por si só já chama a atenção pelo tamanho, pela eficiência das diferentes ações e pelo sucesso alcançado, ainda mais no contexto brasileiro, pouco familiarizado com ações radicais pela libertação animal aliada a uma perspectiva anticapitalista.

Acreditamos ser importante revisitar tais acontecimentos para aprender com suas limitações e desenvolver seus acertos no que diz respeito a diversidade de táticas, coordenação de diferentes movimentos, radicalidade e contundência da ação que pode inspirar outros grupos e novas campanhas. Para isso, revisitamos essa breve análise e entrevistas feitas logo nas semanas seguintes com duas participantes das linhas de frente dessas ações.

A ação em São Roque: bons exemplos mas não um modelo pronto

Após dias acorrentadas nos portões do Instituto Royal, na cidade de São Roque, denunciando o uso e o assassinato de animais com técnicas como a vivissecção (cortar animais ainda vivos e sem anestesia para experimentações), ativistas atraíram a atenção da mídia e de outras organizações para a causa. E na madrugada do dia 18 daquele mês a manifestação se tornou uma ação de resgate dos animais que libertou quase 200 cães da raça beagle e dezenas de ratos. Toda a ação foi fotografa e filmadas pelas participantes.

Do lado de fora do laboratório, a estrada foi tomada por barricadas logo pela manhã. Uma viatura da polícia militar e um carro da imprensa foram queimados por manifestantes. Algumas pessoas menos acostumadas com a dinâmica de resistência em protestos de rua ainda tentaram formar uma barreira para proteger os carros de emissoras de TV da destruição, mas não adiantou. Do lado de dentro, jaulas foram esvaziadas, computadores, documentos e materiais de pesquisa foram destruídos. Paredes pixadas por símbolos da Frente de Libertação Animal (ALF) e ruas tomadas por Black Blocs que montaram barricadas para impedir que a tropa de choque chegasse ao laboratório e prendesse manifestantes.

Carro de emissora de TV depredada e viatura da Polícia Militar incendiada na estrada em frente ao laboratório.

Para muitas pessoas ali, era como se enfim chegasse o dia que toda uma geração de movimentos pela libertação animal, anticapitalistas e anarquistas sonharam e trabalharam para ver. Era o momento em que táticas radicais se encontram, convergem permitindo que movimentos distintos, com táticas distintas, operassem em conjunto para uma ação efetiva. Foi possível atingir tanto seu objetivo imediato (resgatar os animais e impor consequências ao laboratório pelo uso e tortura dos mesmos), quanto objetivos de médio e longo prazo (o fechar o laboratório e a educar a opinão pública sobre o tema). A ação chamou a atenção do público geral e tomou as notícias em todo o país, provocando uma mudança inédita no imaginário das pessoas sobre o que é possível fazer em uma ação direta pelos animais e educando as pessoas sobre o quão perverso e inútil são os testes em animais e o uso dos animais para qualquer fim. Tudo isso devido a uma janela de possibilidades aberta nas ruas em junho de 2013 nos grandes levantes contra o aumento das passagens no transporte público.

A invasão do Instituto Royal é um exemplo emblemático mas que também desperta curiosidade e demanda reflexão. Como nas ruas tomadas na luta contra o aumento em todo o país em junho daquele ano, a batalha em São Roque contou com a presença de uma grande diversidade de pessoas. Diferentes idades, posições políticas, classes sociais e também diferentes táticas e modos de luta e organização: ativistas que defendem o “bem estar animal” (ou que focam sua ação apenas em cães e gatos) estavam lado a lado com grupos veganos anticapitalistas. Personalidades da TV ou manifestantes de classe média que defendem a causa animal protegidas atrás de barricadas feitas por Black Blocs anarquistas. Um mosaico de inúmeras formas e contextos de luta se aliaram com um objetivo comum. A articulação prévia de longos dias foi organizada por um número reduzido de pessoas e catalisou a luta que surgiu de forma espontânea para centenas de pessoas que aderiram ao movimento imediatamente após um chamado aberto para a ação direta. Uma estratégia improvisada e repentina se tornou a principal arma contra uma polícia despreparada e incapaz de prever os movimentos de pessoas determinadas a agir.

Animais foram resgatados, o laboratório declarou falência e o impacto nas leis e na opinião pública foi maior do que todo o ativismo estritamente legalista ou outros protestos simbólicos contra a empresa durante os cinco anos anteriores: até o início de 2014, novas leis que regulam e restringem o uso de animais em testes foram aprovadas, incluindo a proibição desse tipo de teste para cosméticos em todo o país. O que nos prova que mesmo quando as pessoas querem apenas reformas, novas leis ou o fim de uma instituição opressiva, é melhor demonstrar força popular para realizar essas mudanças por nossas própria ações do que pedir pacificamente e esperar a boa vontade de poderosos. Se nos mostrarmos irredutíveis e com disposição para ação, as autoridades vão correr para nos atender antes que consigamos algo por nossa conta. Nesse momento é que os movimentos devem buscar ainda mais força para dobrar as autoridades.

Manifestantes rompendo as barreiras policiais e ativistas resgatando cães dentro das dependências do Instituto Royal.

A invasão ao Instituto Royal serve com um exemplo de sucesso obtido quando a organização de longo prazo encontra a imprevisibilidade de ações imediatas, inovadoras e capazes de mudar de táticas para encontrar uma brecha no sistema, antes que a repressão policial seja capaz de reagir à altura. Questionando o discurso tradicional das lutas sociais legalistas, vimos que a diversidade de táticas e de formas de organização, quando aliadas, podem ser a chave para vitórias que tornam possível o que era até mesmo impensável.

Ainda assim, o episódio é um bom exemplo e não um modelo ou receita a serem seguidos metodicamente. Mais do que buscar repetir suas táticas e etapas de ação, é preciso entender e assimilar as posturas que permitiram o sucesso da ação. Mesmo conflituosa e divergente para muitas pessoas que participaram, a ação mostra que uma diversidade de táticas e frentes de luta diferentes pode ser muito mais eficientes, tanto a curto quanto a longo prazo. Diferentes níveis de luta, como ação direta e confronto com forças de repressão, mídia independente e autônoma, comissões legais e porta-vozes, ajudam a distribuir a legitimidade dos movimentos e torna difícil a tentativa do Estado de isolar e silenciar “minorias infiltradas” ou “grupos radicais” do resto da luta. Essa harmonia e cumplicidade entre formas diferentes de ação se mostrou muito efetiva para libertar os animais, impor danos ao laboratório e não dividir o movimento entre “legítimos” e “ilegítimos”, “legais” ou “ilegais”, impedindo que as autoridade encontrassem divisões fáceis entre participantes que permitisse isolar e prender quem realizou ações ilegais de invasão, dado a propriedade.

O sucesso imediato e a continuidade do debate sobre o uso de animais como objetos e sua condição de propriedade em um sistema capitalista conseguem ir para além do reformismo bem-estarista (que visa apenas regular o uso de animais) e desafia o moralismo burguês dos movimentos abolicionistas (que lutam para que nenhum animal seja considerado propriedade) que se baseiam, muitas vezes, em princípios pacifistas como valores absolutos.

Black Blocs formando um cordão de proteção para bloquear o avanço da polícia em direção ao laboratório.

É necessário sempre repensar táticas, ser capaz de inovar e sempre fazer uma autocrítica. Não há problema na radicalização das ações antiautoritárias e de libertação. O problema não é atacar ferozmente o sistema, mas sim não continuar atacando. Somente a radicalização aliada ao debate sobre uma diversidade de táticas e discursos pode impedir que a legitimidade das lutas seja determinada pela mídia, pelo Estado ou por ativistas privilegiados – empresários, apresentadoras de TV e políticos – que buscam sequestrar lutas sociais organizadas por pessoas anônimas ou invisibilizadas como forma de acumular ainda mais poder e privilégios.

Para compreender um pouco mais de como foi a luta por trás das barricadas e por baixo das máscaras, publicamos aqui dois relatos escritos por pessoas que estiveram na invasão do laboratório. Elas contam como foram esses momentos de luta e descrevem sua importância para ações futuras. É preciso mais debates e, principalmente, mais ações que desafiam as leis e as “receitas de bolo” revolucionárias.

Por uma luta de libertação animal e humana total, radical e anticapitalista!

Primeiro Relato:

Em meio ao instável cenário político que veio após os protestos de junho de 2013, ativistas pelos direitos animais começaram uma campanha para fechar o Instituto Royal, um laboratório localizado no interior do estado de São Paulo conhecido pelos testes em animais e pelas práticas de vivissecção.

Após alguns dias atraindo atenção para o assunto e para esse estabelecimento em particular, a noite que mudaria como a mídia, a população e até legisladores encaram a vivissecção estava por vir. E sua história seria escrita através da ação direta. Naquela noite, em especial, as pessoas se reuniam em frente ao portão do laboratório atraídas pelas notícias que circulavam nas mídias sociais. No momento que cheguei àquela área rural cortada por estradas de terra e algumas poucas casas, a polícia estava guardando os portões e podíamos ver funcionários e seguranças privados andando dentro do prédio. Caminhões entravam e saíam, aparentemente, levando documentos e animais por medo de uma invasão. Mas essa não era uma ação da Frente de Libertação Animal (ALF). Pessoas de todos os tipos estavam presentes. Algumas só se importavam com os beagles, outras com apenas cães e gatos em geral, outras eram ativistas dos direitos animais. Black Blocs também estavam lá e até apresentadoras de TV que apoiam causas animais chegaram pois a mídia começou a divulgar que uma invasão estaria para acontecer. O que fez com que a mídia burguesa aparecesse e também mais pessoas em geral.

A polícia logo ficou em menor número e claramente incapaz de lidar com o fenômeno que tomava forma ali. É importante lembrar que São Roque fica a uma hora de qualquer cidade maior. Em poucas horas éramos muitas à postos naquela estrada sem saída cercada de mato. A estrada termina em um portão com uma largura que cabe 15 pessoas enfileiradas. De repente não parecia mais ser uma barreira e a polícia já demonstrava não estar preparada para a situação. O que pode dizer que eles poderiam reagir de forma desproporcional, mas como não se tratava do batalhão de choque, era mais provável que iriam apenas recuar. Especialmente devido à diversidade da multidão composta por senhoras de cinquenta ou sessenta anos junto a estudantes e pessoas vestidas como um Black Bloc.

Por volta da meia noite os carros do laboratório não conseguiam mais sair pelo portão e os latidos dos cães nos lembrava que as pessoas do lado de fora não eram as únicas apreensivas. Redes sociais funcionavam fortalecendo centenas de nós que estavam ali. Às duas da manhã, no dia 18 de outubro, ficou óbvio que haveria uma invasão. Bastou alguém tomar a iniciativa de começar a bater no cadeado do portão com uma pedra para que todo mundo ver que estava na hora. O portão já estava sendo derrubado enquanto gente cortava as cercas e a multidão pressionava em todas as possíveis entradas.

Entramos! Uma pequena estrada leva ao prédio principal, com mais portas a serem quebradas e arrombadas. A polícia só conseguia olhar e a mídia estava lá dentro também com as câmeras ligadas. A maioria das pessoas usava máscaras como em um resgate aberto. Algumas de nós, que temiam o que podia acontecer depois, tínhamos o cuidado de cobrir nossos rostos.

Um por um, quase 200 beagles foram transportados no colo subindo o morro até onde, há poucos minutos, havia um portão onde outras ativistas esperavam com seus carros – praticamente todo mundo chegou lá de carro porque não havia outro meio de transporte para o local a essa hora da noite. Quem libertava os cães de suas jaulas não sabia para onde eles estavam sendo levados. O que importava era que estavam sendo libertos da exploração. Isso foi útil quando ativistas que estavam lá dentro sob o foco das câmeras começaram a ser identificados e sofrer acusações por roubar “propriedade privada”. Como argumentamos, as chamadas “propriedades” nunca foram tomadas como posse daquelas pessoas que os tiraram de lá.

Um grupo de advogados voluntários se formou para defender quem era identificado e uma rede clandestina de veterinárias se dispuseram a remover chips que poderiam identificar animais adotados. Curiosamente, um deputado que atua na área de bem estar animal também estava presente durante o resgate, atraído pela presença da mídia e pela multidão de ativistas. Ele adotou dois beagles que passaram a morar em sua casa e poucos dias depois a mídia estava lá para filmar os cães e contar sua história. Em seu benefício, a lei brasileira diz que um membro do congresso não pode ser acusado desse tpo de crime enquanto exerce seu mandato. Para pessoas menos privilegiadas, podíamos apenas ter a companhia de alguns beagles que sofreram abusos, com sinais de mutilação e traumas psicológicos que às vezes são difíceis de notar.

A invasão foi realmente uma cena caótica, sem planejamento prévio, nenhuma direção e, provavelmente, não é um modelo a ser repetido. Sua espontaneidade foi a mágica que fez com que tudo fosse possível. Sua diversidade foi um fator que fez os números de participantes possíveis e a repressão impossível. A compaixão de todo mundo presente foi a força que ampliou seu significado para além dos indivíduos salvos.

Poucas semanas depois, após extensiva e persistente cobertura da mídia sobre o assunto, leis começaram a ser propostas na cidade, no estado e no país. A prefeitura mandou trancar o laboratório e manifestantes mantiveram a pressão até que o Instituto Royal anunciou seu fechamento no dia seis de novembro. Ainda assim, eles recusavam a liberar os animais que ainda estavam lá durante o primeiro resgate. Então uma nova e legítima ação da ALF realizada no dia 13 de novembro por uma pequena célula resgatou os 300 ratos que ainda estavam lá e nenhum animal esteve presente para testemunhar os últimos momentos do Instituto Royal.

Interior do laboratório atacado durante a madrugada.

Tendo em vista as elevadas e irreparáveis perdas e os danos sofridos em decorrência da invasão realizada no último dia 18 – com a perda de quase todo o plantel de animais e de aproximadamente uma década de pesquisas -, bem como a persistente instabilidade e a crise de segurança que colocam em risco permanente a integridade física e moral de seus colaboradores, os associados concluíram que está irremediavelmente comprometida a atuação do Instituto Royal para dar continuidade à realização pesquisa científica e testes mediante utilização de animais. Por este motivo, o Instituto decidiu encerrar suas atividades na unidade de São Roque”

Declaração do Instituto Royal em 06/11/2013 sobre seu fechamento.

Vídeo da segunda invasão ao Instituto Royal para resgatar ratos que ainda estavam presos.

Segundo Relato:

Nós fomos de carro de São Paulo a São Roque em três pessoas no segundo dia de manifestação. Ativistas que retiraram os cães ficaram a noite toda lá e, no dia seguinte, iriam retirar os roedores que restaram. Eu cheguei em São Paulo pela manhã e nós chegamos no instituto no começo da tarde, a Rodovia Raposo Tavares já estava interditada pela Polícia Militar muito antes. Chegando lá havia muito tumulto e uma divisão bem clara: de um lado, ativistas pacifistas pelos cães com faixas e dizeres cristãos, se recusando a cobrir o rosto e mantendo distância do conflito com a Tropa de Choque. Do outro, pessoas de máscaras e bandanas iam de encontro a linha policial. A polícia parecia estar evitando o conflito e focando na porta do instituto, que já estava fortemente protegida pela PM para evitar a segunda entrada dos militantes. Uma viatura foi incendiada e logo após outro carro de uma emissora de TV também estava em chamas. A polícia interviu muito após isso para tentar dispersar a manifestação e me juntei a um grupo que se formou para tentar entrar no instituto através da mata em volta. Pulamos uma cerca e tentamos dar a volta para entrar pela parte de trás onde não havia policia, mas havia helicópteros sobrevoando o local e nos escondemos em uma casa abandonada. De lá chegamos perto dos limites do instituto para encontrar com uma segurança privada, sem identificação e portando de armas de fogo.

A PM percebeu a tentativa de entrar por trás e começou a perseguir alguns manifestantes dentro da mata. O grupo inicial havia se dividido em vários por não concordar em como entrar no instituto. Havia ainda ativistas que se recusam a cobrir o rosto por insistir em que resgatar animais não consistia em crime. E foi esse o sentimento que persistiu do começo ao fim.

Considerando que as pessoas que organizaram a manifestação inicial são pacifistas e cristãs, houve muita desorganização por conta desse racha ideológico. As pessoas pacifistas colocaram muito em risco a identidade e segurança de quem se dispôs a entrar no instituto e enfrentar a polícia.

Por fim, encurralados, saímos da mata muito longe do instituto e fomos cercadas por bombas de gás. A manifestação foi se dispersando no fim da tarde e só nos restou o plano de voltar em outra ocasião.

Havia pessoas de várias partes do país. Todas as placas, cercas, carros e estruturas no perímetro do instituto foram destruídas. Em comparação a junho de 2013, houve muito mais organização, disposição em se arriscar e união. Todos presentes nas ações radicais sabiam claramente qual era o objeto e que tal objeto era extremamente legítimo. Motivadas de maneira quase emotiva, as pessoas viram claramente que aquilo era apenas o começo e que a PM não era capaz de frustrar nossas tentativas, tamanha a presença e vontade de muitas pessoas dispostas a libertar aqueles animais por quaisquer meios necessários. Esse evento inspirou o resgate das chinchilas em Itapecirica e outras ações. E independente de rachas ideológicos, foi possível conciliar a disposição dos Black Blocs em se arriscar com a força legalista para fechar o instituto Royal permanentemente e proteger as pessoas que tiveram suas identidades expostas.

Um acontecimento sem precedentes no Brasil e uma semente que, acredito eu, ainda vá germinar em forma de um Frente pela Libertação Animal concreta.


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A REVOLTA POPULAR NO PERU – Anarquistas Discutem a Revolta Contra a Violência Policial e o Estado de Emergência

Em dezembro de 2022, uma onda de protestos populares liderados por camponeses e os movimentos indígenas varreram o Peru depois que o ex-presidente Pedro Castillo sofreu impeachment após uma tentativa fracassada de dissolver o legislativo e sua vice-presidente, a conservadora Dina Boluarte, assumiu o governo. Em 14 de dezembro, o ministro da Defesa, Alberto Otárola, decretou estado de emergência, suspendendo a liberdade de reunião, a liberdade de ir e vir, a inviolabilidade do lar e outros direitos. No entanto, os protestos só aumentaram de intensidade. Em 18 de janeiro, movimentos populares do sul do Peru marcharam até a capital em uma mobilização conhecida como “Tomada de Lima”. Estudantes e sindicatos os receberam, juntando-se aos protestos para exigir novas eleições para a presidência e o legislativo. Em resposta, a polícia matou mais de 60 pessoas e feriu milhares. Para uma visão direta desses acontecimentos, conversamos com anarquistas peruanos, na esperança de obter uma perspectiva sobre os aspectos desse movimento que ultrapassam a política de estado.


O Peru tem uma longa história de golpes de estado no poder e violência estatal e paramilitar no campo. Após uma crise envolvendo a falta da última página de um contrato entre o governo peruano e a Companhia Internacional de Petróleo, o general Juan Velasco Alvarado derrubou o presidente eleito Fernando Belaúnde Terry em 1968. A partir da década de 1980, o grupo armado maoísta Sendero Luminoso conduziu uma guerra de guerrilha no campo que ceifou dezenas de milhares de vidas. O presidente Alberto Fujimori dissolveu o Congresso em 1992 para obter o poder absoluto, que manteve por meio de uma vasta rede de atividades secretas coordenadas pelo chefe do serviço de inteligência do Peru, Vladimiro Montesinos – até ser derrubado em 2000 após uma eleição fraudulenta. Em novembro de 2020, protestos generalizados forçaram o presidente interino Manuel Merino a renunciar após apenas cinco dias no cargo.

Mais recentemente, o vizinho Equador viu revoltas em 2019 e 2022, nas quais grupos de base ligados à Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) desempenharam um papel central na resistência às medidas de austeridade impostas pelo Estado. Algo semelhante ocorre hoje no Peru, onde um movimento composto principalmente por camponeses e indígenas interrompeu o funcionamento do capitalismo extrativista, afirmando seus próprios interesses e estruturas organizacionais fora do quadro do poder estatal.

À medida que uma nova série de tentativas de golpe ocorre nas Américas, do 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos ao 8 de janeiro de 2023 no Brasil, é importante aprender como os movimentos populares podem manter a resistência diante da repressão policial – especialmente movimentos envolvendo os explorados e excluídos.

Conversamos com participantes do Periodico Libertária, publicação anarquista que surgiu como parte da resistência ao regime peruano. Seu objetivo, como eles dizem, é “a libertação total dos Andes e de todo o território dominado pelo estado assassino chamado ‘Peru’”.

Capa da primeira edição do Periodico Libertária, com o slogan “Espalhamos a anarquia quando podem”. O balão diz “Um misantropo que também é filantropo, é um pouco difícil de entender” e a legenda diz “Oxímoro: Protesto dos trabalhadores do IPC em Lima, 29 de junho de 1956”.

Em outros países, são muito escassas as informações que recebemos sobre a revolta que ocorre neste momento nas ruas peruanas. A mídia noticia de forma superficial que há manifestações e greves, com repressão policial que já matou dezenas de pessoas e feriu milhares. Ainda assim, pouco se discute sobre o contexto e quando se fala, mantém-se o binário: apoio a Pedro Castillo, presidente que tentou dissolver o Congresso e aplicar um golpe, ou a destituição de Dina Boluarte, sua vice que assumiu o cargo depois do Impeachment do presidente, e também a demanda popular pela realização de uma nova eleição. Mas sabemos que as revoltas estão sempre para além dessas simplificações e, por isso, é preciso entender o contexto e as lutas recentes nos territórios onde as insurreições acontecem. Sendo assim, gostaríamos que você escrevesse uma história de uma perspectiva anarquista sobre o que está acontecendo lá no momento e quais são as possíveis conexões com outras insurreições que ocorreram na chamada América Latina?

Normalmente, os meios de comunicação de massa cobrem os protestos no exterior como algo isolado e localizado, mesmo que o que está acontecendo esteja a apenas alguns quilômetros de distância. Nos meios de “comunicação” existe o receio de expor problemas estruturais e analisá-los em profundidade. Sabe-se que no Peru vivemos um processo antiautoritário que poderia ocorrer em qualquer país latino-americano, especialmente considerando a coincidência e a origem dos problemas – racismo estrutural, pobreza extrema, corrupção institucionalizada e uma violenta democracia neoliberal.

Nesse caso, a repressão do atual governo tem sido caracterizada pelo racismo desenfreado. Houve massacres em cidades dos Andes e do Altiplano [as montanhas e planaltos do Peru]. Obviamente, a desprezível imprensa amarela não tem apresentado uma representação fiel da realidade. Enquanto a militarização continua em várias cidades – como Ica, no litoral, e Puno, no altiplano – o último assassinado em Lima (28/01/23) foi descrito pela mídia como mero delinquente quando sua morte foi transmitida no um canal a cabo no país. Há um constante confronto assimétrico entre as armas do Estado e as lutas dos povos em busca da liberdade.

No que diz respeito às conexões com outros eventos, sem esquecer os problemas específicos deste território e o caráter camponês da revolta peruana, as referências mais próximas são as experiências antiautoritárias de outubro de 2019 da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE). A diferença está na ausência de grandes organizações indígenas, já que a Confederación Campesina del Perú (a Confederação Campesina do Peru fundada em 1947) sofreu o violento assédio do Sendero Luminoso (grupo marxista) e também a perseguição do ditador Alberto Fujimori, resultando em sua atual desintegração. Para compensar esta ausência existem as organizações camponesas de base , tanto provinciais como distritais.

Isso também explica o fracasso da esquerda política em direcionar os protestos para seus interesses. Vimos confrontos abertos com parlamentares nas ruas e até ações diretas contra suas propriedades.

Confrontos em Lima.

Você pode falar sobre a participação dos camponeses e indígenas nas manifestações?

Deve-se afirmar abertamente que os grupos camponeses estão à frente dos levantes neste território. Existem diferentes grupos étnicos no Peru que resistiram à maquinaria colonial (em todas as suas formas) e mantêm uma longa tradição antiautoritária. Nessas circunstâncias, diferentes etnias ou nações se uniram para enfrentar diretamente a açougueiro Dina Boluarte.

Embora alguns dos partidos políticos tenham contribuído para organizar os protestos por meio de suas bases, eles estão tentando se posicionar como vanguarda; isso não é mais sustentável, pois as pessoas não aceitam mais os apelos à não violência vindos desses partidos. É por isso que as pessoas queimaram prédios estatais, incluindo delegacias de polícia.

Por outro lado, essas ações também nascem de uma justa sede de vingança contra a capital Lima, porque dirige toda a maquinaria legal colonialista que, através do extrativismo e outras atividades econômicas, esmaga as populações das províncias, usando a violência do estado e força privada para expulsá-los, prendê-los e até matá-los sempre que se opõem a um projeto – ou simplesmente quando exigem o cumprimento dos termos com os quais concordaram como condições para aceitar um projeto estatal ou privado.

A isto se somam as lembranças do comportamento de muitas pessoas de Lima que alugavam quartos, apartamentos ou casas a gente do interior e que não queriam abater o aluguel (ou baixar o valor ou adiá-lo) durante a primeira fase da pandemia, e ainda começou a expulsá-los de suas casas, causando um êxodo de pessoas dos Andes e da selva de volta aos seus lugares de origem por causa da quarentena. Da mesma forma, algumas pessoas foram expulsas de suas casas “por medo de contágio”, porque a imprensa (irresponsavelmente como sempre) espalhou o medo sobre o COVID-19. Além disso, como eles viajavam em grandes grupos a pé porque o transporte era proibido por medo de contágio – e eles nem podiam usar o próprio transporte – a polícia começou a reprimi-los em todos os postos de controle da estrada. E também, os habitantes de algumas localidades, temendo a exposição ao vírus, também participaram dessa repressão e do fechamento das estradas de seus territórios.

É perigoso generalizar esse ódio a todos que moram em Lima, algo que pouco se tem falado nas redes sociais, talvez porque muitas pessoas já tenham família, amigos ou moradia nas províncias para onde possam ir se essa situação tornar-se mais aguda e as províncias tomam a decisão de bloquear o envio de alimentos para Lima. Lima quase não produz alimentos in natura, apenas alimentos processados ​​– mas sem matéria-prima importada de fora, nem isso seria possível.

É por isso que, há alguns dias, circulou um vídeo da caminhada de Ancón ao centro de Lima (que dizem ser 20 quilômetros) em que uma senhora do Sul agradeceu aos lxs desactivadorxs [os “desativadores”, os grupos que se organizam para neutralizar as armas químicas da polícia] pelo esforço e disseram (embora eu acredite que de brincadeira) que terão um espaço na Grande República do Sul. Parece que essa ideia de dividir o Peru em duas repúblicas, que surgiu durante as eleições presidenciais (primeiro entre a direita, quando viram que grande parte do Sul votaria em Pedro Castillo, e depois nos meios de esquerda, que acredita isso é do interesse de seu governo), ganhou força como resultado dos assassinatos de cidadãos. Isso pode ser aproveitado pelos esquerdistas que – com Evo Morales à frente e o apoio da China por meio de sua Cúpula da CELAC [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos] – aspiram a governar os novos pactos comerciais extrativistas com a China, especialmente do lítio presente na cidade de Puno, no sul do Peru e na fronteira com a Bolívia. Até os Estados Unidos pretendem obter o controle dessa área, por isso apoia o modelo de exportação mineral para aquela região – não só com a presença de seu embaixador, mas também apoiando o governo do Peru e suas forças armadas e policiais, militarmente e taticamente. É por isso que eles enviaram forças militarizadas para Puno.

Diante de várias propostas de “independência” ou de saída para esta crise, é preciso analisar cada uma delas, pois atrás de cada uma há aspirantes a opressores querendo puxar os cordelinhos em benefício próprio. Os irmãos e irmãs no Chile já estão nos alertando sobre os perigos ou a ilusão de uma Assembléia Constituinte, até mesmo do próprio processo. [Para mais contexto, veja nossa cobertura de como o movimento no Chile se perdeu na tentativa de introduzir uma nova constituição por meios institucionais.] A esquerda, com seus partidos políticos e parlamentares, está tentando se fazer passar por aliada desses protestos em um esforço que só pode ser descrito como oportunismo político; em alguns lugares, os manifestantes os expulsaram ou vaiaram. A esquerda tenta fingir que se importa com seus irmãos e irmãs nas províncias, mas eles apenas os veem e os tratam como possíveis votos a seu favor.

Para concluir, foram os camponeses que colocaram seus corpos em risco nesses protestos – que, com suas huaracas feitas à mão, trocaram projéteis com a tombería [tropa de choque], repelindo as covardes forças repressivas do sangrento regime de Dina Boluarte. Eles sabem que é uma questão de vitória ou morte; a democracia nunca resolveu nada para eles, ao contrário daqueles que se venderam a um partido. Essas marchas trouxeram à tona o racismo velado no Peru.

Também nos preocupamos com os recursos para o autocuidado e as possibilidades de voltarem para casa quando tudo passar. Já existe um precedente infeliz desde 2000, quando o povo indígena Shipibo-Konibo foi abandonado e marginalizado após os protestos maciços da “Marcha de los 4 Suyos” contra o ditador Fujimori. [A “Marcha dos Quatro Quartos” em julho de 2000 foi uma mobilização de massas organizada por esquerdistas, partidos social-democratas e movimentos sociais contra as eleições fraudulentas e a posse de Fujimori]. Com a queda do ditador e o parlamento cheio de políticos contrários ao antigo regime, toda a esquerda, centro e liberais se esqueceram dessas pessoas, que ainda sofrem com a pobreza extrema.

A mídia corporativa sempre vê os eventos da perspectiva da polícia.

Vimos imagens de terrorismo de Estado no Peru, incluindo assassinatos, tortura e prisão em massa, bem como outras formas de agressão da polícia peruana. Sabemos que estes não são eventos isolados – a repressão é algo comum em todos os estados, especialmente quando uma mobilização ataca a ordem e a paz dos ricos. Como está estruturada a polícia peruana? Qual é a história da repressão policial contra os protestos no Peru?

A moderna polícia peruana foi fundada em 1988, a partir da unificação de três agências estatais anteriores. Sabemos que a formação de policiais é um fenômeno transnacional, ou seja, no desenvolvimento da instituição do policiamento, houve vários modelos que serviram de ideal para outros países (em um momento, foi o modelo francês, em outro, o modelo espanhol e, atualmente é uma mistura de várias instituições repressivas em todo o planeta).

No início, a polícia peruana só dispunha de bastões, apitos e coisas do gênero para estabelecer a ordem municipal; então seu armamento aumentou: pistolas, rifles, pinochios (conhecidos no Chile como guanacos, são carros blindados usados ​​para atacar manifestações), caminhões, motocicletas, gás lacrimogêneo, spray de pimenta, drones e computadores.

Eles sempre estiveram do lado do poder. Eles fizeram greve apenas uma vez, durante a ditadura de Velasco Alvarado, que os reprimiu com força militar, deixando um número desconhecido de mortos.

Nos anos 1980 e 1990, as autoridades deram à polícia imunidade legal e moral para assassinar a fim de eliminar o Sendero Luminoso (partido maoísta). Foi então que cometeram as piores injustiças: assassinar, torturar, estuprar, desaparecer, extorquir em todas as cidades e vilas do Peru.

Em 2000 [quando o presidente Alberto Fujimori fugiu para o Japão, substituído por Alejandro Toledo], eles tiveram que se adaptar à ideologia do novo presidente; porém, carregavam no DNA o autoritarismo e o racismo, junto com o montesinism. [Vladimiro Lenin Ilich Montesinos Torres, ex-oficial de inteligência do exército e espião dos EUA, foi conselheiro do ditador Fujimori e serviu como chefe do serviço de inteligência do Peru sob seu comando.]

A história recente da polícia é um exemplo claro da impunidade do setor político Fujimontesinista, que nunca foi expulso do aparato institucional do Estado, apenas acomodado nele. Hoje, as práticas repressivas vêm dos ex-quadros de Vladimiro Montesinos e também de seus aprendizes.

Polícia se mobiliza para atacar manifestantes no Peru.

Como o chamado Brasil, Argentina, Chile e muitos outros lugares, a região peruana viveu uma ditadura civil-militar. É um território com uma longa história de golpes, como o do presidente peruano Alberto Fujimori em 1992. Fale da resistência e da memória combativa contra os legados da ditadura e a continuidade da repressão e do extermínio na democracia.

É verdade que nesta região houve seguidas interrupções da democracia representativa (o que, obviamente, como anarquistas, não queremos de qualquer maneira) e, consequentemente, houve vários períodos de resistência ao autoritarismo e às ditaduras. No entanto, e um tanto contraditoriamente, também houve ditadores apreciados pelos setores populares – por exemplo, o militar nacionalista Juan Velasco Alvarado, que é celebrado por um setor da esquerda conservadora ou kitsch.

Outro ponto a destacar é que o antifascismo dos anos 1930 e 1940 e suas experiências de resistência foram esquecidos no Peru – goste ou não, quem participou do confronto foram anarquistas, comunistas, apristas [membros a APRA, Aliança Popular Revolucionária Americana, um partido socialista fundado em 1924] e progressistas.

A memória antiautoritária das esquerdas dos anos 1970 e 1980 se perdeu com as perseguições sofridas pelo ditador Fujimori e pelos genocidas do Sendero Luminoso – comunistas dogmáticos que assassinaram camponeses, líderes esquerdistas e qualquer outro que se opusesse a eles. Tudo isso contribuiu para uma despolitização nos anos 1990 e para a aceitação da narrativa neoliberal delirante sobre o “empreendedorismo” em 2000, que grande parte da população dessa região ainda hoje aceita.

Apesar de tudo isso, no dia 5 de abril, aniversário do golpe do genocida Fujimori, marcham contra tudo o que representa a atual ditadura: o neofujimorismo, o neoliberalismo, a corrupção em massa, o narcotráfico e o genocídio. É preciso reconhecer que os partidos de esquerda procuram monopolizar o “anti-fujimorismo” para ganhos políticos e que, seguindo as vicissitudes da política peruana, alguns “anti-fujimoristas” revelaram sua verdadeira face a ponto de ingressar nas fileiras do pos-fascistas (por exemplo, o autor conservador Mario Vargas Llosa, [ex-ministro do Interior] Fernando Rospigliosi e [presidente em exercício] Dina Boluarte, entre outros).

Em todo caso, é o antifujimorismo que entregou o trono da presidência ao atual governo. E embora alguns se orgulhem disso (por ter impedido que Keiko Fujimori, filha mais velha do ex-presidente peruano Alberto Fujimori, chegasse ao poder), é preciso dizer claramente que isso só contribuiu para consertar um abominável sistema político que foi brutalmente nos explorando – sob o qual há massacres contínuos nos Andes, graças a políticos, bandidos e empresários.

Agora, vemos ressurgir essa memória combativa; muitas pessoas pararam de se censurar e estão falando sobre o que sofreram por resistir à ditadura de Fujimori. Ao mesmo tempo, o ataque da extrema-direita tem indignado as pessoas pela forma como usam a acusação de “terrorismo” contra quem se opõe a eles e aos seus ídolos. O famoso “terruqueo” é um conceito que nasceu na década de 1980: é o adjetivo usado para definir quem pode ser morto impunemente. Se você é um terruco(suposto terrorista), pode queimar na fogueira ou ser executado – como fizeram sistematicamente os militares em Ayacucho nas décadas de 1980 e 1990.

Por isso, hoje, o mais próximo da memória combativa é o esforço para desarmar os partidários do ditador genocida Fujimori de sua arma semântica: o “terruqueo”. E é assim que as pessoas estão procedendo nas regiões do sul (lugar onde tanto os militares quanto o Sendero Luminoso massacraram os camponeses). Sem falar em confrontá-los implacavelmente nas ruas até que o fascismo seja destruído!

Os restos de um edifício histórico que pegou fogo perto da Plaza San Martin em Lima durante as manifestações de janeiro de 2023. Segundo o filho do proprietário, o incêndio foi causado por bombas de gás lacrimogêneo lançadas pela polícia para dispersar manifestantes.

Há debates sobre legítima defesa nas ruas? Existe alguma discussão por parte dos movimentos e coletivos sobre a abolição da polícia?

Nesta região, ouvimos vários discursos diferentes sobre a polícia. O primeiro é o desrespeito da polícia pelos assassinatos de manifestantes, o que é compatível com o repugnante “princípio da proporcionalidade” (teoria imbecil que tem origem no pacifismo do século passado e justifica guerras, massacres, etc., com base em igualar o uso de armas). A maioria das pessoas que promovem essa ideia são cidadãos e esquerdistas moderados (obviamente não vão atacar a instituição pela qual querem disciplinar quando estiverem no poder). O segundo é o discurso da extrema-direita que dá desculpas ao gatilho (apoiando tomberìa e militares em matar sem repercussão legal ou moral) e até mesmo paramilitarismo fascista.

Dentro da esquerda radical, não há quase nada sobre abolir a polícia, embora as pessoas odeiem a instituição por sua corrupção, sua inutilidade em responder a feminicídios, crimes antissociais e outras questões e, finalmente, pelo papel que a polícia desempenha na proteção do empresariado extrativista.

Como anarquistas, acreditamos que é urgente pedir a destruição dessa instituição assassina. Há alguns dias, no blog, um camarada compartilhou alguns artigos não anarquistas discutindo a origem da polícia, a fim de imprimi-los e compartilhá-los na linha de frente.

Ele nos convidou a compartilhar o seguinte fragmento:

“Desde a formação das primeiras cidades, quem as governou teve necessariamente de criar forças repressivas para resguardar os seus domínios dos ataques externos daqueles que procuravam reclamar o que estes governantes lhes arrebataram nas zonas rurais onde viviam, e contra os ataques internos dos aqueles que estavam insatisfeitos com esses governos, reinos ou impérios. Toda a história da civilização e de suas cidades e outros domínios sempre foi dividida entre governantes e governados. A questão é que a direita ama a polícia porque, para ela, os policiais se comportam como servidores que garantem a segurança de seus domínios e privilégios. Por outro lado, o problema é que seu suposto adversário, a esquerda, não busca a abolição da polícia porque isso enfraqueceria seu controle quando chegar ao poder. A abolição da polícia é um passo necessário para uma vida em plena liberdade, encontrar outras formas de convivência equilibrada e respeito é mais um passo necessário para não depender para sempre da existência da polícia. De fato, as comunidades indígenas viveram outrora sem a instituição da polícia ou sua lógica. Hoje, em várias dessas comunidades, essas lógicas e práticas estão sendo impostas como parte do processo civilizatório do sistema e dificultam nosso caminho.

Contracapa da primeira edição do Periodico Libertária. “Mais de 300 assassinados sob a democracia (2003-2020), graças a políticos e policiais. Fogo eterno para os assassinos tomberìa [polícia] e seus símbolos!”

Por fim, estamos interessados ​​nas diferentes expressões do anarquismo na região conhecida como América do Sul. Por favor, fale sobre os envolvidos nas lutas anárquicas na região peruana.

O anarquismo é muito humilde nesta região. Existem diferentes organizações e indivíduos com diferentes abordagens: anarco-sindicalismo, insurgentes, plataformistas e anarquistas sem adjetivos. Não há “black bloc” como observado em outras regiões, ou talvez haja, mas apenas muito pequeno. Tampouco existem “grandes organizações” – admitamos isso como uma forma de autocrítica – mas existem indivíduos que resistem nas diversas províncias do Peru.

A repressão em Lima que o açougueiro Manuel Merino supervisionou em 2020, que representou para muitos jovens anarquistas seu primeiro encontro com a verdadeira face do estado assassino, destacou a urgência de autocuidado e autodefesa agudos, bem como um retorno à realidade (o resultado da situação foi um governo de transição, o enfraquecimento dos protestos e injustiça permanente para os caídos).

Atualmente, com um levante em curso, os anarquistas que não vivem na capital (especialmente no sul do Peru) experimentaram suas consideráveis ​​limitações para enfrentar as forças repressivas e as armas letais da ditadura cívico-militar de Dina Boluarte.

Apesar disso, não desanimamos. A tarefa dos anarquistas hoje, desde nossa humilde posição, é acompanhar os camponeses em todas as ações diretas. Como nossas famílias camponesas , vamos junto com elas em qualquer posição possível, seja resistindo na linha de frente, desativando gás lacrimogêneo, dando assistência médica, coletando doações para nossas irmãs, divulgando medidas de autocuidado, debatendo todas as questões políticas e sociais de nossa região e, finalmente, conhecer sua experiência de resistência. Sem intermediários, políticos de esquerda e influenciadores legalistas, marchamos juntos para a destruição da ditadura cívico-militar e não descansaremos enquanto não vermos a justiça que nos foi roubada séculos atrás.

Manifestação em Puno.

ENTREVISTA: Anarquistas Iraniano falam sobre os protestos em resposta ao assassinato pela polícia de Mahsa Amini

INTRODUÇÃO

A 13 de setembro de 2022, Mahsa Amini, de 22 anos, foi presa por uma “patrulha de orientação” iraniana (também conhecida como “polícia da moralidade”). Mahsa foi presa em Teerão por não respeitar as leis relacionadas ao vestuário. Três dias depois, em 16 de setembro, a polícia informou a família de Mahsa de que ela “teve uma paragem cardíaca” e tinha entrado em coma dois dias antes de morrer.

Relatos de testemunhas oculares, incluindo o do seu próprio irmão, mostram de forma clara que ela foi brutalmente espancada durante a prisão. Exames médicos divulgados indicam que ela sofreu uma hemorragia cerebral e um acidente vascular cerebral  – lesões causadas por uma pancada que levaram à sua morte.

Manifestantes em Istambul, Turquia, seguram uma imagem de Mahsa Amini.

Desde que esta informação se tornou pública, protestos em massa eclodiram em todo o Irã para denunciar o assassinato de Mahsa pela polícia.

Para entender melhor essa situação em rápida mudança, realizamos uma breve entrevista com a Federação Anarquista ERA, uma organização com seções no Irã e no Afeganistão.

Esta entrevista foi realizada entre os dias 20/09/22 e 23/09/22.

ENTREVISTA

Black Rose / Rosa Negra (BRRN): Em primeiro lugar, poderiam apresentar-nos a Federação Anarquista ERA?

FAE: A Federação Anarquista ERA é uma federação anarquista regional ativa no chamado Irã, Afeganistão e mais além.

A nossa federação é baseada no Anarquismo de Síntese, aceitando todas as tendências anarquistas, exceto as tendências nacionalistas, religiosas, capitalistas e pacifistas. Os nossos muitos anos de experiência organizativa em ambientes extremamente opressivos como o Irã nos levaram a desenvolver e a utilizar táticas e filosofias organizativas insurrecionais.

Somos uma organização ateísta, vemos a religião como uma estrutura hierárquica que é mais antiga e duradoura do que quase todos os outros sistemas autoritários e muito semelhante ao capitalismo e outras estruturas sociais autoritárias que escravizam hoje a humanidade. A guerra de classes, do nosso ponto de vista, inclui a guerra contra o clero que nos rouba a liberdade e a autonomia, definindo o que é sagrado ou tabu, e impondo-os através da coerção e da violência.

BRRN: Quem foi Mahsa Amini? Quando, porque e como ela foi morta?

FAE: Mahsa Amini, a quem a sua família chama Zhina, era uma jovem curda comum de 22 anos, natural da cidade de Saghez (Saqez) no Curdistão.

Ela estava viajando com sua família para Teerã para visitar famíliares. Em 13 de setembro, enquanto estava com o seu irmão, Kiaresh Amini, a polícia da moralidade ou a chamada “Patrulha de Orientação” prendeu Mahsa por usar “hijab impróprio”. O irmão dela tentou resistir à prisão, mas a polícia usou gás lacrimogêneo e também espancou Kiaresh.

Muitas outras mulheres presas testemunharam o que aconteceu na van da polícia. No caminho para a delegacia, houve uma discussão entre as mulheres detidas e os policias. Mahsa Amini foi uma das que protestaram contra a prisão. Ela disse que não era de Teerã e que deveria ser libertada.

A polícia usou de violência física para calar todas as detidas. Mahsa também foi espancada. De acordo com testemunhas oculares, a policia atingiu a cabeça de Mahsa fazendo com que batesse com força na parte lateral da van em que seguiam.

Ela ainda estava consciente quando chegou à Agência de Segurança Moral, mas as outras mulheres detidas notaram que ela não estava bem. A polícia mostrou-se completamente indiferente e acuso dela ter protestado durante a viagem. As mulheres continuaram protestando para ajudar Mahsa a obter os cuidados médicos que ela precisava. Os protestos foram recebidos com violência por parte da polícia. Mahsa Amini foi novamente espancada pela polícia e perdeu a consciência.

A polícia tentou reanimá-la bombeando ar com massagens no peito e levantando e massageando suas pernas. Após essas tentativas frustradas, a polícia agrediu as outras mulheres confiscando todos os celulares e câmaras que pudessem ter gravado o incidente.

Depois de muita demora e de encontarem as chaves perdidas da ambulância, Mahsa foi levada para o Hospital Kasra.

A clínica que recebeu Mahsa Amini disse num post no Instagram que Mahsa estava com morte cerebral quando foi internada. Este post do Instagram foi posteriormente apagado.

Em 14 de setembro, uma conta no Twitter de um amigo que trabalhava no Hospital Kasra relatou que a polícia ameaçou os médicos, enfermeiros e funcionários para não tirarem fotos ou fazerem vídeos e para mentirem aos pais de Mahsa sobre a causa da morte. O hospital, intimidado, obedeceu à polícia. Disseram aos pais que ela tinha sofrido um “acidente” e a mantiveram em suporte de vida durante dois dias. Mahsa foi declarada morta em 16 de setembro. Exames médicos, divulgados por hacktivistas, revelam fraturas ósseas, hemorragia e edema cerebral.

BRRN: A identidade de Mahsa como curda desempenhou algum papel na sua prisão e na sua morte?

FAE: Sem dúvida, ser curdo em Teerã teve um papel importante na eventual morte de Mahsa. Mas, esta é uma realidade que todas as mulheres no Irã experimentam. Não precisamos ir muito longe para encontrar imagens de vídeos da polícia da moralidade espancando e forçando mulheres a entrarem em vans, atirando mulheres para fora de um carro em movimento e assediando mulheres de hijab devido ao seu “hijab impróprio”. Esses vídeos mostram apenas uma pequena parte do inferno que as mulheres passam no Irã.

O fato de Mahsa estar com o irmão no dia da sua prisão não foi um acaso. Na sociedade patriarcal do Irã, as mulheres devem ser acompanhadas por um familiar do sexo masculino, seja pai, marido, irmão ou primo, para afastar a policia da moralidade e desencorajar indivíduos desagradáveis em público. Casais jovens não devem ser vistos muito próximos um do outro em público ou correm o risco de serem espancados e presos pela polícia da moralidade. Os familiares devem ter documentos como prova caso sejam questionados pela polícia. Prender mulheres por causa de batons e unhas era uma realidade que muitos de nós, mais velhos, nos lembramos vividamente no Irã.

A ameaça de ataques com ácido por “mau hijab” é outro pesadelo que as mulheres enfrentam no Irã.

O patriarcado e a autocracia religiosa afetam todas as mulheres.

BRRN: Como é que o povo iraniano soube da morte de Mahsa? Qual foi a resposta popular inicial?

FAE: Como dissemos anteriormente, havia muitas testemunhas oculares. Nenhuma ameaça poderia ter impedido que a história da morte de Mahsa fosse conhecida.

Vale a pena mencionar que o médico que atendeu Mahsa e o fotojornalista que documentou o estado de Mahsa e da sua família em perigo foram presos, e seus paradeiros são desconhecidos.

A resposta inicial foi de indignação. As pessoas já compartilhavam a história de Mahsa desde o dia 14 de setembro. A indignação ainda não era suficientemente forte para provocar protestos e revoltas. As pessoas ainda pensavam que Mahsa estava em coma e havia esperança de sua recuperação. Então, ela foi declarada morta em 16 de setembro.

Primeiro, houve pequenos protestos no Hospital Kasra, que foram dispersados pela polícia. As faíscas da atual revolta foram acesas em Saghez, cidade natal de Mahsa.

Uma motocicleta da polícia é queimada em uma manifestação em Teerã.

BRRN: Qual a dimensão dos protestos atuais? Em que áreas do país se concentraram as manifestações?

FAE: A situação é muito dinâmica e está mudando excepcionalmente rápido. No momento em que escrevo estas linhas, as chamas da revolta incendiaram 29 das 31 províncias do Irã. Uma das características dessa revolta é que ela se espalhou rapidamente para as principais cidades do Irã, como Teerã, Tabriz, Isfahan, Ahvaz, Rasht e outras.

Qom e Mashhad, as fortalezas ideológicas do regime, juntaram-se à revolta. A ilha de Kish, o centro capitalista e comercial do regime, também se revoltou. Esta é a revolta mais diversificada que testemunhamos nos últimos anos.

Em 23 de setembro, os sindicalistas planejam uma greve geral em favor dos protestos.

O regime planejou uma manifestação do Exército para o mesmo dia. Muita coisa está acontecendo.

BRRN: Como o estado iraniano respondeu a estas manifestações?

FAE: A resposta inicial do regime foi menos brutal do que já experimentámos antes. Uma razão é que eles foram apanhados de surpresa. Não esperavam uma resposta tão forte. A razão mais importante é que Ibrahim Raisi está na ONU. A ausência de altos funcionários, a história divulgada de Mahsa e os protestos, e a pressão exercida sobre o governo sob o olhar atento da comunidade internacional pararam o massacre por enquanto.

Mas não nos enganemos. A polícia matou e feriu muitas pessoas desde o primeiro dia dos protestos. Alguns deles eram crianças de 10 anos e adolescentes de 15 anos. No entanto, antes tivemos  o mês de novembro de 2019, quando o regime massacrou milhares de pessoas em 3 dias.

Em todas as revoltas anteriores, a polícia não foi diretamente o alvo da raiva popular. Mas isso não aconteceu dessa vez. Desta vez, eles são os bandidos e as pessoas querem o seu sangue. Isso esgota-os física e mentalmente, o que consideramos uma boa notícia.

Neste momento, Saghez e Sanandaj estão passando por uma repressão implacável. O regime trouxe tanques e veículos militares pesados para reprimir a revolta. Há muitos relatos de munição real disparadas contra os manifestantes.

Os protestos continuam. Muitos carros da polícia foram vandalizados. As delegacias de polícia foram atacadas e incendiadas. Só precisamos nos armar saqueando o arsenal deles. Então, entraremos numa fase completamente diferente da revolta.

Uma barricada construída em uma manifestação em Teerã em 21/09/22.

BRRN: É correto considerar estes protestos como feministas?

FAE: Sim, absolutamente. Como em todas as outras revoltas, houve desenvolvimentos e movimentações subterrâneas..

Pode-se dizer que a recente campanha de repressão ao Hijab e o aumento da brutalidade da polícia da moralidade começaram em resposta à auto-organização espontânea, autónoma e feminista das mulheres iranianas. No início deste ano, as mulheres no Irã começaram a colocar na lista negra e a boicotar pessoas e empresas, como cafés, que aplicam estritamente o Hijab. O movimento era descentralizado e sem liderança e tinha como objetivo criar espaços seguros para mulheres e membros da comunidade LGBTQ.

Essa opressão brutal culminou neste momento em que as mulheres estão na vanguarda em todos os lugares, queimando os seus lenços e enfrentando a polícia, já sem Hijab. O principal slogan do levante também é “Mulher, Vida, Liberdade”, um slogan de Rojava, uma sociedade cujas reivindicações são baseadas na ideologia anarquista, feminista e laica.

BRRN: Que elementos políticos (organizações, partidos, grupos) estão presentes nas manifestações, se existirem?

FAE: Muitas organizações, partidos e grupos tentam se apropriar ou influenciar os protestos em seu benefício a cada levante.

A maioria deles deparou-se com um problema insolúvel durante esta revolta.

Primeiro, os monarquistas. Reza Pahlavi, o filho caloteiro do ex-xá do Irã, um indivíduo sustentado por dinheiro roubado e redes de mídia fora do Irã, pediu um dia nacional de luto em meio à indignação pública e aos protestos iniciais, em vez de usar seus recursos para ajudar o revolta. As pessoas finalmente viram o charlatão que ele é. A frase “Morte aos opressores, seja o Xá ou o Líder”, foi ouvida em todo o Irã.

Em seguida,  MEK ou Mujahedin Kalq. O MEK tem um problema ideológico com esta revolta. É uma seita cujos membros femininos são forçados a usar lenços vermelhos. A sua origem está numa combinação das ideologias marxistas e islâmicas, dominada pelos marxistas-leninistas antes de 1979, e hoje são uma seita ao serviço de estados capitalistas e imperialistas. No entanto, as mulheres no Irã estão queimando os seus lenços e o Alcorão. Eles não têm voz neste clima político.

Depois, há partidos comunistas que desprezam Rojava e sempre falam mal dela. A sua análise de classe, desmascarada e enferrujada, não os ajuda a ganhar corações aqui.

Apesar de todos os discursos e propaganda na defesa do secularismo e do feminismo, não tinham sequer um slogan voltado para a libertação das mulheres. A sua ideologia impedia-os de gritarem  “Mulheres, Vida, Liberdade”. Eles não tinham nada a dizer, por isso calaram-se. Graças a isso, a sua presença é muito mais fraca nos protestos atuais.

O movimento anarquista está crescendo no Irã. Esse revolta, sem liderança, feminista, antiautoritária e entoando slogans de Rojava, fez com que anarquistas, filiados e não afiliados na federação, tivessem uma forte presença nesse levante. Infelizmente, muitos foram presos e feridos também.

Estamos trabalhando para perceber o potencial anticapitalista desse movimento. Porque a República Islâmica é um culto e uma religião de morte, sendo o patriarcado, o racismo e o capitalismo os seus pilares ideológicos. Para vivermos, precisamos ser livres; e isso não pode ser feito sem que a libertação das mulheres esteja na vanguarda.

Manifestação de estudantes universitário em Teerã em 19/09/22.

BRRN: Em solidariedade. Obrigado pelo seu tempo.

FAE: Solidariedade.

Obs: Esta é uma tradução de uma entrevista publicada no site blackrosefed.org efetuada pelo Portal Anarquista e revisada pela Facção Fictícia