Nos primeiros dias do mês de maio de 2024, o território conhecido estado do Rio Grande do Sul, no assim chamado Brasil, foi atingido pela maior catástrofe climática de sua história. Mais de uma semana de chuvas intensas fizeram com que diversos rios transbordassem, arrasando dezenas de cidades e destruindo tudo no seu caminho, para então desaguarem no rio Guaíba causando a maior enchente já registrada na região da Grande Porto Alegre e outras cidades do estado. Até 1 de junho, 171 mortes foram confirmadas. Milhares de pessoas perderam tudo. 614 mil ficaram desabrigadas. Mais de dois milhões foram afetadas. Cidades inteiras praticamente apagadas do mapa pela força das águas.
Em números de pessoas afetadas e proporção dos danos materiais, a tragédia já supera a destruição causada pelo furacão Katrina na cidade em Nova Orelans, nos Estados Unidos em 2005. É o maior estrago econômico e estrutural causado por um evento climático no Brasil.
O Estado e o modo de produção capitalista têm responsabilidade direta pela devastação do planeta, produzindo cada vez mais catástrofes, derrubando florestas para dar lugar ao gado, às monoculturas e à mineração, degradando e impermeabilizando o solo com a expansão urbana. Em meio ao horror, fica evidente a completa incapacidade dos governos e dos ricos de cuidarem de nossas vidas e do nosso ambiente.
No centro dessa tragédia que anuncia uma nova realidade de eventos extremos cada vez mais frequentes, anarquistas, comunidades indígenas, quilombos e movimentos sociais organizam a solidariedade enquanto tentam reconstruir suas vidas e seus territórios gravemente afetados, seja pedindo e distribuindo doações, chamando por mutirões para limpar e voltar para imóveis atingidos, ou organizando novas ocupações de prédios vazios para abrigar pessoas que perderam suas casas.
Compilamos nesse artigo e em uma curta entrevista as reflexões sobre a atuação de anarquistas e outros movimentos de base atuando nessas campanhas por apoio mútuo em Porto Alegre e outras cidades atingidas pela maior enchente da história do Rio Grande do Sul.
Este artigo é também um vídeo produzido pelo coletivo Antimídia.
O ESTADO
No momento de um grande desastre “natural” – e até mesmo antes – o Estado deixa claro que sua prioridade nunca foi proteger nossas vidas. No longo prazo, o Estado brasileiro ignorou os alertas feitos décadas atrás sobre os perigos da devastação ambiental e das mudanças climática e também não tomou medidas eficazes para impedir catástrofes como esta. Mas mais do que isso, foi agente ativo da destruição – ora devastando de forma mais branda, ora devorando a terra de forma mais voraz. No governo neofascista de Bolsonaro, esse desprezo pela vida e ódio à natureza era escancarado. Mas mesmo os regimes sociais-democratas, incluindo governos progressistas de partidos como o PT, contribuíram em peso com o aquecimento global, apostando na indústria automotiva, na extração de petróleo e outras fontes de energia de alto impacto ambiental para alavancar o crescimento econômico. Em 2015, durante o governo de Dilma Rousseff, do PT, que relatórios científicos que apontavam para enchentes causadas pelas mudanças climáticas foram arquivados depois de serem considerados “alarmistas demais”.
Nos níveis estadual e municipal a negligência do Estado se repete com um impacto ainda mais direto e imediato sobre nossas vidas. Apesar dos repetidos comunicados dos sistemas meteorológicos, o governador e o prefeito não elaboraram planos nem realizaram alertas de evacuação adequados. Pelo contrário, não investiram o mínimo necessário na prevenção e proteção da população. O atual governador, Eduardo Leite (do partido de direita PSDB), retalhou a legislação ambiental do Estado para favorecer empresários e reduziu os investimentos na Defesa Civil durante seu governo. Quando questionado por jornalistas, Leite tentou justificar alegando que “tem esses estudos que, de alguma forma, alertam, mas o governo também tem outras agendas”.
Em Porto Alegre as comportas do dique que protegem a cidade falharam por falta de manutenção e erros no fechamento. O que ocorreu se tornou ainda mais grave pelo fato do DMAE (Departamento Municipal de Agua e Esgoto) ter acumulado as demandas do DEP (Departamento de Esgotos Pluviais), órgão responsável pelo sistema de diques, comportas e estações de bombeamento que protegem a capital gaúcha contra inundações, ter sido sucateado pelas últimas gestões da prefeitura de Porto Alegre. Segundo especialistas, a cidade não teria inundado se o sistema tivesse a manutenção e manejo adequados.
Para piorar o cenário, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, só decretou o racionamento de água depois que 85% da cidade já estava sem acesso à água potável. E a população de alguns bairros só foi avisada do desligamento das bombas que evitavam a inundação de suas casas depois delas terem sido desligadas, não lhes dando tempo hábil para evacuação.
CAPITALISMO É O DESASTRE
O modo de produção capitalista é a raiz das mudanças climáticas que ameaçam toda vida na terra. Ao mesmo tempo, as ações de corporações e grandes empresários que acumulam recursos materiais e financeiros fizeram pouco para ajudar nos resgates e aliviar o sofrimento da população. Pelo contrário, tornaram a situação ainda pior.
Os capitalistas fracassaram em manter os supermercados que ainda funcionavam abastecidos, pois ao estarem interessados no lucro das vendas, permitiram que pessoas com maior poder aquisitivo fizessem grandes estoques de água e mantimentos. Ao mesmo tempo, dezenas de lojas foram inundadas com água, alimentos e outros itens essenciais para a população trancados lá dentro sob a proteção de policiais e seguranças armados com fuzis, formando grupos paramilitares para impedir que pessoas famintas tivesse acesso a comida ou outros recursos. As empresas e o Estado se mostraram mais interessados em proteger essa mercadoria, do que deixar as pessoas terem acesso aos itens que mais necessitavam. Mesmo que esses itens fossem depois ser descartados ou indenizados por seguradoras.
Policial civil atira na direção de um suspeito de saquear supermercado em Porto Alegre.
Enquanto pessoas se voluntariavam para resgatar dezenas de milhares de cães, gatos e cavalos de telhados, montavam e organizavam espaços para acolhê-los, com atendimento veterinário e alimentação, empresas que comercializam animais abandonaram peixes, aves e mamíferos em suas gaiolas dentro das lojas inundadas, ao mesmo tempo em que se preocuparam em transferir os computadores para um andar mais elevado. Animais vendidos como objetos e abandonados para morrerem afogados, evidenciando a lógica desse sistema: para capitalistas, a vida é apenas mais uma mercadoria, a ser contabilizada e indenizada.
O pouco apoio que as grandes empresas ofereceram foi irrisório. A Grendene, uma das maiores produtoras de calçados do mundo, sugeriu que suas trabalhadoras doassem itens de suas próprias cestas básicas para pessoas atingidas pela enchente.
A indústria de bebidas Ambev, maior cervejaria do mundo, cujo lucro anual equivale ao dobro do orçamento da cidade de Porto Alegre, envasou água potável em latas de alumínio, constituindo mais uma ação de marketing do que qualquer forma de solidariedade real.
A FIERGS, entidade que representa as indústrias do Rio Grande do Sul pediu auxílio de R$100 bilhões ao governo federal para a recuperação das empresas atingidas pela enchente. Deixando claro que quando empresários falam em Estado mínimo, é apenas quando se trata dos interesses das pessoas menos favorecidas, mas querem um Estado forte para apoiar e defender os interesses da elite.
Defensores do capitalismo louvaram as ações de bilionários e empresários que doaram porções irrisórias de suas fortunas para ajudar as vítimas da enchente. Isso quando as boas ações não eram mentiras completas, como a imagem que mostraria um helicóptero do bilionário Luciano Hang resgatando pessoas ilhadas, que na verdade era uma imagem gerada por inteligência artificial.
Enquanto isso, pessoas comuns, inclusive algumas que perderam tudo, se mostraram muito mais solidárias e dispostas a ajudar, doando proporcionalmente muito mais de seus recursos que os super-ricos. Uma live solidária de uma banda de rock, arrecadou um valor maior do que as doações que o governo dos Estados Unidos e o bilionário egocêntrico Elon Musk enviaram para o Rio Grande do Sul, somados.
Isso pra não mencionar que capitalistas lucraram diretamente com a catástrofe, como os grandes mercados que venderam todos seus estoques de água engarrafada para pessoas desesperadas, muitas vezes a preços abusivos, e ainda tiveram recordes de vendas com a generosidade de pessoas comuns que compravam itens para doar a quem perdeu tudo. E vão continuar lucrando enquanto as pessoas afetadas e aquelas que se solidarizam com elas estiverem lutando para reconstruir o que foi perdido.
APOIO MÚTUO DE BASE
O apoio mútuo e a solidariedade entre pessoas atingidas se mostrou essencial para a sobrevivência e para não deixar a situação se tornar ainda pior. Ainda assim, a prefeitura de Porto Alegre tentou atrapalhar grupos voluntários que organizaram centros de doações em espaços cedidos e os mantiveram funcionando durante semanas, ao fazer acordos com os proprietários dos imóveis para que estes assumissem as operações que até então eram autogeridas pelas voluntárias, que foram então excluídas e criminalizadas. Em outro episódio, dia 20 de maio, a Polícia Militar apreendeu caminhão usado para distribuir comida a pessoas afetadas pelas enchentes. A polícia alegou que o caminhão da Cozinha Solidária da Azenha, ligada ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), estava sem licenciamento, porém não era possível fazer o licenciamento já que o sistemas estavam fora do ar em todo o estado devido aos efeitos das chuvas.
De fato, na grande maioria dos bairros, o auxílio às pessoas afetadas pela enchente ficou a cargo da própria comunidade e outros grupos voluntários que se articularam para garantir suprimentos de água, comida, roupas e agasalhos. Esse foi o caso das pessoas encarceradas ilhadas em presídios da região, sem acesso à água, alimento e itens de higiene. Coube às famílias, também afetadas pelas cheias, se organizarem para levar tais itens básicos e, assim, evitar o sofrimento ainda maior de pessoas sequestradas atrás das grades.
Outro exemplo é do Quilombo dos Machado, no bairro Sarandi, em Porto Alegre, que, com o apoio de outros quilombos urbanos da cidade, organizou essas operações por semanas, sem qualquer suporte do Estado. Como disse Luiz Machado, morador do Quilombo dos Machado, “esse acolhimento que o Estado devia estar fazendo, a comunidade, a gente pela gente mesmo está fazendo”. Quando a comunidade do Quilombo solicitou ajuda ao governador Eduardo Leite, do PSDB, este respondeu que “o Estado e o poder público não tem estrutura para atender todas as pontas”.
A cada declaração, as palavras do governador evidenciam uma versão da necropolítica brasileira e do racismo ambiental, desenhando um sistema voltado para cumprir demandas econômicas dos ricos, garantir lucros e votos em vez de destinar recursos para estruturas que podem salvar vidas – especialmente se for o caso de populações pobres, negras e indígenas, como é o caso dos grupos mais atingidos pelas atuais enchentes. Ressaltamos que não se trata de inação ou falha do Estado. Essas situações são partes do projeto de extermínio em curso.
DEPOIS DA CATÁSTROFE: AÇÃO DIRETA
Os governos municipais e estaduais pretendem construir cidades temporárias para as dezenas de milhares de pessoas desabrigadas, até que os bairros onde moravam sejam reconstruídos ou novas habitações sejam construídas em outros locais. No entanto, a construção de moradias temporárias são desnecessárias e apenas desperdiçarão materiais e energia. Só em Porto Alegre existe mais de 100 mil residências vazias. No centro da cidade, 30% das habitações estão desocupadas. Um número 10 vezes maior do que o número de lares temporários planejados na cidade. Esse plano nada mais é do que mais uma forma de gerar lucro para as empreiteiras e para políticos alavancarem sua popularidade através de medidas populistas e ineficazes, que não atacam as raízes do sofrimento e da desigualdade. Pior do que isso, é uma tentativa de deslocar a população pobre e negra para longe de áreas cobiçadas pelo Estado e por empreiteiras, abrindo caminho para a apropriação de seus antigos lares por construtoras e seus projetos predatórios.
Como resposta ao problema da falta de moradia, novas ocupações de prédios estão surgindo. Um movimento autônomo de pessoas desabrigadas ocupou um antigo hotel abandonado no centro de Porto Alegre para acolher 45 famílias. O Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLN) ocupou também outro prédio, agora chamado de Ocupação Rexistência, dedicado a abrigar dezenas de famílias de pessoas atingidas pela atual crise. Membros do movimento alegam que não querem a construção de uma “cidade provisória” para famílias afetadas, e sim que os imóveis vazios sejam destinados imediatamente para a moradia. No dia 8 de junho, o MTST ocupou um prédio abandonado de 25 andares do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), também em Porto Alegre, para abrigar famílias desabrigadas pelas enchentes. Provando mais uma vez que os movimentos sociais e a ação direta estão sendo muito mais eficientes do que os governantes para abrigar as 160 mil pessoas que perderam suas casas.
Para políticos e empresários, a reconstrução da cidade é uma oportunidade de lucrar. Serão necessárias quantidades gigantescas de materiais para reconstruir a infraestrutura e as casas destruídas pela água. E capitalistas vão lucrar produzindo e vendendo esses materiais. Empresas serão contratadas através de licitações feitas às pressas. E, como em toda ação do Estado aliado ao Capitalismo, haverá atrasos, corrupção, superfaturamento, desvio de verbas, favorecimentos.
Não vamos nos iludir, pois nem mesmo os supostos governos de esquerda, como o governo federal do PT, têm coragem e poder para atacar de frente o capitalismo e sua turba de defensores reacionários. Não importa qual partido estava ou estará no governo, da centro-esquerda democrática do PT até a extrema-direita lunática de Bolsonaro, o Estado brasileiro está intrinsecamente conectado ao capitalismo, ao enriquecimento de uma elite, barganhando o futuro da vida no planeta em troca de governabilidade.
CONCLUSÃO: NÃO EXISTE CATÁSTROFE NATURAL
A tragédia que devastou o território ocupado pelo estado do Rio Grande do Sul não foi simplesmente uma catástrofe natural inevitável. É mais um em uma série de eventos climáticos extremos que estão acontecendo com frequência e intensidade cada vez maior como resultado de décadas de destruição e exploração do planeta, ignorando alertas de cientistas e reprimindo a autodeterminação e resistência de movimentos sociais e povos tradicionais, em nome do crescimento econômico. Um sistema brutal onde Estado e capitalismo se unem para saquear a terra e explorar nossos corpos, ao mesmo tempo em que sabotam medidas que podem diminuir ou evitar os impactos desses eventos na vida da população.
Sentimos localmente as consequências de um problema global. O mesmo sistema que causa inundações no Rio Grande do Sul causa incêndios no Pantanal e na Amazônia, promove genocídio em Gaza para controlar reservas de gás natural e oprime estudantes que se levantam contra esse massacre; contamina a água, viola territórios indígenas e afunda bairros inteiros para arrancar da terra minérios cobiçados, destrói florestas, oceanos, montanhas e desertos para garantir lucro a um punhado de pessoas privilegiadas, enquanto condena bilhões ao sofrimento e à miséria.
Se por um lado o Estado e o capitalismo mostraram mais uma vez que sua prioridade não é o bem-estar da população ou a vida de modo geral, por outro pudemos perceber que a solidariedade brota espontaneamente e somos capazes de nos apoiar mutuamente, suplantando até sérias diferenças ideológicas.
Milhares de pessoas tomaram a frente e organizaram resgates, com seus próprios recursos, arriscando suas próprias vidas para salvar a de outras pessoas, humanas ou não. A criação de abrigos e pontos de apoio como centros de distribuição de doações e cozinhas solidárias e emergenciais, que produzem diariamente milhares de marmitas para as pessoas desabrigadas, transportadas por motoristas voluntárias. Tudo mantido por uma rede massiva de solidariedade, que se estendeu para fora das regiões afetadas pelo desastre, se alastrando por todo território ocupado pelo Estado Brasileiro, e outros países.
Quando o desastre se instaurou, a meritocracia e o individualismo foram rapidamente deixados de lado pela maior parte da população, que dedicou seu tempo a ajudar outras pessoas sem se perguntar se elas mereciam aquela ajuda e sem esperar qualquer recompensa por isso. Pessoas que pagaram do seu próprio bolso para garantir que outras pessoas tivessem o que vestir e o que comer, compartilhando recursos materiais sem exigir uma troca financeira. Foram essas pessoas que colocaram suas vidas em risco para garantir a sobrevivência de outras. No meio da catástrofe, muitas as tiveram a chance de perceber que estamos todas juntas nisso e que dinheiro é de pouca ajuda quando não há mais água para vender no mercado.
O Estado e o mercado farão o que estiver ao seu alcance para assumir e centralizar as ações de solidariedade auto-organizadas. Seja tomando à força o controle das operações, requisitando os imóveis utilizados para retomada de aulas ou dos trabalhos, coagindo as pessoas a voltarem aos seus empregos ou formalizando e institucionalizando as organizações que permanecerem. Nossa auto-organização e nossa solidariedade irrestrita são uma ameaça real ao governo e ao capitalismo, pois eles dependem da nossa desunião, da nossa indiferença e inação frente ao sofrimento das outras pessoas.
Para evitar que capitalistas usem essa e as próximas catástrofes para avançar seus projetos destrutivos precisamos continuar nos mobilizando e nos coordenando. Cabe a nós nos organizarmos para tomar e ocupar imóveis ociosos e abandonados e garantir que sejam usados para benefício de nossas comunidades. Certificar-nos que prédios de igrejas sejam usados para apoiar pessoas em necessidade e não para espalhar ódio e intolerância. Lutar para que ninguém lucre com a tragédia, para que os recursos sejam distribuídos a quem precisa. Se precisamos reconstruir nossas vidas e nossas cidades, vamos ter certeza de construir algo melhor, mais justo.
Se o que se chama de humanidade tem futuro, esse futuro será coletivo. Ou, simplesmente, não será.
Entrevista com membros do Território Okupado dos Mil Povos
A Okupa dos Mil Povos é uma ocupação com quase 20 anos de história em Porto Alegre. Localizada em um dos bairros mais afetados pela enchente, o território ficou submerso por 24 dias. Dentre os habitantes, estão crianças, cães e gatos que ainda sofrem com os efeitos da água, da lama, dos óleos e produtos químicos que restaram depois das enchentes. Além dos efeitos causados pelos produtos para limpeza pesada necessários para reativar e retomar o espaço. Nessa breve entrevista, conversamos com participantes da ocupação sobre os desafios e os trabalhos de solidariedade e captação de recursos para recuperar o espaço e retomar a vida após a tragédia, agora que, mais do que nunca, catástrofes climáticas não são mais uma ameaça futura, mas parte do presente de todos que sobrevivem ao capitalismo.
1. Fale um pouco da Okupa dos Mil Povos, sua atuação nos últimos anos e como as enchentes de maio afetaram os espaço, a vida e as atividades no espaço.
O Território Okupado dos Mil Povos nasce como um coletivo autônomo no começo do ano de 2021. Este coletivo anárquico, composto por várias pessoas vindas de diferentes partes do mundo, surge dentro de uma okupa surgida em 2005 quando expropriou o capitalismo e a especulação imobiliária para construir uma alternativa real à vida inerte do neoliberalismo imperante. Nestes poucos anos de vida como coletivo deu rédea solta ao acúmulo de conhecimentos que o Movimento Anarkopunk construiu durante décadas, seguindo também a herança rebelde e combativa de muitas gerações de anarquistas que deram suas vidas para construir o presente de luta que hoje levamos a cabo com autogestão e ação direta. Temos sido parte ativa da Teia dos Povos em luta do Rio Grande do Sul, criando e mantendo uma banca de difusão de material teórico e gráfico por 2 anos, aproximando as pessoas das ideias de autonomia da Teia que se expande por todo o Brasil.
Construímos junto com aldeias indígenas e quilombolas a 5ª Assembleia dos povos (2022), realizamos também jornadas de saúde com indígenas Warao que imigraram desde a Venezuela, autofinanciamos com rifas e vendas de camisetas serigrafadas a casa de cura e reza para a comunidade Kaingang na retomada em Canela, na Serra Gaúcha, bem como muitas jornadas de construção, hortas, muralismo (2022), conversas e discussões. Fomos parte de um coletivo de propaganda e muralismo que se reunia no Ateneu Batalha da Várzea (2021, 2022). Neste Ateneu nosso coletivo realizou em 2022 uma jornada de difusão sobre os conflitos na América Latina que chamamos de “latinoamérica em chamas”, onde tivemos participações desde a Colômbia, Equador e Chile.
Realizamos chamados abertos de manifestações de rua, denunciando a perseguição e desaparecimento de indígenas Yanomami (2022) e em apoio ao povo colombiano em 2021. Visitamos, acompanhamos e promovemos retomadas de territórios ancestrais ao lado de povos indígenas Kaingang, Xokleng e Guarani. Escrevemos pelos muros da cidade de Porto Alegre mil vezes, de dia e de noite, em manifestações ou na escuridão da noite.
As inundações de maio somente confirmam e reafirmam que a luta contra o capitalismo e os Estados de todo o mundo é cada dia mais imprescindível e vital. Nossa casa, junto com o espaço comunitário, ficou debaixo d’água, debaixo do barro, dos químicos e óleos contaminantes por mais de 20 dias. Seguiremos limpando e continuaremos construindo autonomia e rebeldia popular anárquica, sem líderes nem partidos, até destruir o último pilar da sociedade carcerária.
Território Okupado dos Mil Povos
2. Como tem sido organizadas as ações de apoio mútuo agora, um mês após as enchentes?
Agora, após o primeiro mês desde a inundação, já não sobra mais doação que não seja institucionalizada ou burocratizada com registros sociais e persoais. Neste contexto, para nós é muito difícil recuperar algo desde essas plataformas. Nossas únicas entradas de dinheiro, por assim dizer, são de companheirxs solidárixs e de pessoas conhecidas que sabem de nossa situação e nos ajudam com alguma coisa. Seguimos muito necessitadxs de coisas básicas como camas, uma cozinha e uma geladeira. São coisas que não temos acesso por falta de recursos econômicos, com nossos trabalhos não conseguimos cubrir os gastos de coisas como essas. No começo chegaram todas as ajudas e, apesar de não ter sido suficiente frente a tudo o que perdemos, ficamos muito felizes de sentir e ver o apoio mútuo de pessoas, em especial dos meios anárquicos, que é onde mais se vê a solidariedade em um momento de perdas como este. Também vemos uma constância na geração e acumulação de dados por parte da maioria das ONGs e instituições de entrega.
3. Quais ocupações foram afetadas e como tem sido a colaboração entre centros sociais radicais, ocupações e outros movimentos para se reerguer?
Em Porto Alegre existem várias okupações, todas muito diferentes umas das outras, de tendências de esquerda e outras também anarquistas, de dissidências de gênero etc. Desde nossa experiência enquanto casa, creio que o apoio entre esses centros tem sido quase nulo, é triste, mas real. Existe um centro social não okupado que fez uma ponte entre esses espaços anarquistas, o coletivo “Esp(A)ço” fez uma campanha grande onde conseguiram comprar algumas ferramentas coletivas que, em certo sentido, foi a ponte para o mínimo de diálogo e comunicação. É importante assinalar que as relações de afinidade pessoal também levam e trazem esse fluxo de comunicação que não é tão visível, mas existe. No final das contas, todxs sabemos como estão xs companeirxs de outros espaços por esse boca-a-boca que desde as sombras se comunica. Outros canais de entrega de doações normalmente são muito limitados e precários, além de burocráticos. Em geral nós recebemos pouca coisa e nos dedicamos a contribuir com outros espaços de resistência, apesar de não sermos tão próximxs em relação ao pensamento e a ação. Vemos a urgência da necessidade de coordenação mínima de espaços anárquicos e também na construção de instâncias colectivas meramente ácratas.
4. Como pessoas de fora do Rio Grande do Sul e também de fora do Brasil podem ajudar o trabalho de reconstrução e retomada das atividades nas ocupações em Porto Alegre e região?
Para responder a última pergunta, gostaríamos de dizer que vemos a solidariedade ácrata desde vários pontos de vista. O primeiro é o material, sem dúvida, muitas vezes é urgente para o cotidiano e a subsistência. Nesse sentido, ainda temos canais abertos para receber apoios desde qualquer parte do planeta. Acreditamos que a solidariedade combativa é muito importante. Seguir fortalecendo a luta frontal contra todas as estruturas de poder também faz parte da ferramenta chamada solidariedade. Outra dimensão importante que vemos é a comunicação para além do Instagram ou Facebook. A conversa direta é importante para aproximarmos as diferentes realidades e gerar afinidades futuras. Para terminar, agradecemos a todxs que ainda acreditam que a anarquia é possível, que construí-la é uma tarefa cotidiana e que se esforçam para viver cada dia mais concretamente suas ideias de liberdade!!!
Abrazos para todxs!!!
Desde el territorio okupado de los mil pueblos,
8 de junio 2024, Porto Alegre
Individualidades organizadas y colectivo anárquico de los mil pueblos
APOIE O TERRITÓRIO OKUPADO DOS MIL POVOS CLICANDO AQUI.
BAIXE ESSE ARTIGO COMO ZINE PARA IMPRIMIR CLICANDO AQUI.