QUEM TEM MEDO DE JUNHO 2013? – ciclo de eventos e debates

A maior revolta popular do país vista a partir de sua radicalidade e potência de transformação hoje Junho de 2013 no Brasil foi um acontecimento intempestivo.

Nos dias de revolta que varreram o Brasil naquele junho, governos e suas polícias, jornalistas e seus ventríloquos universitários, partidos de esquerda e de direita com seus respectivos representantes, assim como as organizações de direitos humanos e seus ativistas, se apressaram em isolar os vândalos dos manifestantes pacíficos. O objetivo político era associá-los à anarquia entendida como desordem para entregar militantes e manifestantes para a violência brutal das Tropas de Choque e enfiá-los em bancos de delegacias e/ou tribunais. Hoje, alguns destes agentes políticos lamentam que a extrema-direita tomou as ruas e repetem, como autômatos, que a democracia está em crise e ameaçada pelo fascismo. Muitos colocam a culpa dessa situação ou o início dela, nas revoltas de junho de 2013. Querem criminalizar as revoltas e silenciar a potência de transformação que ela traz. Como é comum na história política moderna, apontam para a anarquia como um monstro político a ser dominado ou eliminado.

Esse ciclo de eventos, com palestras, conversas e debates, visam falar de um outro junho de 2013. Trata-se de uma série não unificada, mas articulada, que ocorrerá durante o mês de junho de 2023 sobre a atualidade das insurreições de junho de 2013 nas cidades de Porto Alegre, Rio de Janeiro, Osasco, São Paulo e Belo Horizonte. Cada coletivo local fará as conversas e exibição de vídeos à sua maneira, mas que evitando o tom de efeméride para focar na singularidade e atualidade do acontecimento junho de 2013, destacando a revolta e suas conexões com outras mobilizações que estavam a acontecendo no planeta, os movimentos envolvidos e sua afirmação de autonomia e diferença com os movimentos sociais até aquele momento. Estamos interessados nos efeitos das insurreições de junho de 2013 ainda presentes hoje, tanto em termos de luta e características dos movimentos, quanto em termos de reação da ordem, com mudanças nas formas de repressão e controle e articulações da elite política para capturar insatisfações em processos institucionais, eleitorais e partidários.

Trata-se não de uma leitura final e totalizante do acontecimento, mas uma leitura libertária que busca mover a revolta no presente, soprando a brasa ainda acesa da labareda que varreu o Brasil há 10 anos.

DATAS: 
  • Porto Alegre: 19 de maio, no ESPAÇO.
  • Rio de Janeiro: dias 1, 6, 12 e 20 de junho, na Aldeia Maracanã, UERJ, ADEP & Cinelândia
  • Osasco: 14 a 16 de junho  na UNIFESP – Campus Osasco
  • São Paulo:  17 de junho na Praça do Ciclista (na concentração da Marcha da Maconha).
  • Belo Horizonte: 24 de junho na Kasa Invisível.

ORGANIZE TAMBÉM EM SUA CIDADE:

Muitos materiais foram produzidos por quem esteve nas ruas do lado dos debaixo e podem servir de introdução para debates e estudos. Abaixo, reunimos alguns desses materiais para exibição de vídeos e circulação de textos:
“Por que 2013 agora?”, vídeo por  Sonho, com colaboração dos coletivos Antimídia e Facção Fictícia.


Mais sobre o tema:

Camarada Serge: notícias da revolta popular na França

As ruas da França estão em chamas desde que protestos e greves que começaram em janeiro se transformaram em um verdadeiro levante contra reforma da previdência social que visa aumentar a idade mínima de aposentadoria. A polícia comandada pelo governo de Emmanuel Macron tenta reprimir o movimento que já se tornou uma das maiores onda de protestos da atualidade e novos focos surgem em centenas de cidades.

No sábado, dia 25 de março, no oeste da França, um protesto de 30 mil manifestantes contra a construção de um reservatório de água em Sainte-Soline e seus dramáticos impactos sociais e ambientais culminou em mais repressão e violência policial. Um camarada conhecido com Serge foi atingido na cabeça por explosivos da polícia e teve atendimento negado pelos capangas de Emmanuel Macron. Abaixo, disponibilizamos a tradução de alguns comunicados e chamados de seus amigos e parentes.

Camarada internado e com risco de morte após a manifestação em Sainte-Soline

Nosso camarada S. foi atingido na cabeça por uma granada explosiva durante a manifestação contra reservatórios de água neste sábado, 26 de março, em Sainte Soline.

Apesar de seu estado grave, a prefeitura impediu conscientemente, em um primeiro momento, que os serviços de emergência interviessem e apenas depois de algum tempo o transportaram para uma unidade de atendimento apropriada. Ele está atualmente em terapia intensiva neurocirúrgica. Seu prognóstico vital ainda está comprometido.

A onda de violência sofrida pelos manifestantes deixou centenas de feridos, com vários atentados graves à integridade física, conforme anunciado pelos diversos relatórios de informação disponíveis. Os 30.000 manifestantes tinham o objetivo de bloquear o local da megabacia [grandes reservatórios de água destinados à agroindústria] de Sainte-Soline, um projeto de apropriação privada de água por uma minoria em benefício de um modelo capitalista que não tem mais nada a oferecer além de morte. A violência do braço armado do estado democrático é a expressão mais clara disso.

Logo em seguida do movimento contra a reforma da previdência, a polícia mutila e tenta assassinar para impedir a sublevação, para defender a burguesia e seu mundo. Nada impedirá nossa determinação em acabar com o reinado deles.

Na terça-feira, 28 de março, e nos dias seguintes, vamos fortalecer as greves e bloqueios, sair às ruas, por S. e todos os feridos e presos de nossos movimentos.

Vida longa à revolução.

Camaradas de S.

PS: Se você tiver alguma informação sobre as circunstâncias dos ferimentos infligidos a S., entre em contato conosco: s.informations@proton.me

Gostaríamos que este comunicado fosse distribuído o mais amplamente possível.

Traduzido do Francês

Polícia sob ataque dos manifestantes em Sainte-Soline, 25 de março de 2023.

Comunicado dos Pais de Serge (S.) em 29 de março de 2023

Esta é a tradução de uma declaração dos pais de um ativista que permanece em coma cinco dias após a violência policial em Sainte-Soline.

Após o ferimento causado por uma granada GM2L, durante a manifestação de 25 de março de 2023 organizada em Sainte-Soline contra os projetos de bacias de irrigação, nosso filho Serge está atualmente em um hospital lutando por sua vida.

Apresentamos queixa por tentativa de homicídio e obstrução voluntária à chegada dos serviços de emergência e por violação de segredo profissional no âmbito de inquérito policial e apropriação indébita de informação constante do arquivo para tal.

Na sequência dos vários artigos publicados na imprensa, muitos dos quais imprecisos ou enganosos, gostaríamos de dar a conhecer que:

  • Sim, Serge está na lista “S” (lista de observação da “Segurança do Estado”) – como milhares de ativistas na França de hoje.

  • Sim, Serge teve problemas legais – como a maioria das pessoas que lutam contra a ordem estabelecida.

  • Sim, Serge participou de muitas manifestações anticapitalistas – como milhões de jovens em todo o mundo que acham que uma boa revolução não seria demais e como milhões de trabalhadores que lutam atualmente contra a reforma previdenciária na França.

Acreditamos que esses não são atos criminosos que manchariam nosso filho, mas, ao contrário, esses atos são creditados a ele.

Os pais de Serge
29 de março de 2023

Vídeo sobre a Batalha das Mega Bacias em Sainte Soline: legendas em português disponíveis.

 


Uma atualização sobre Serge

Apresentamos uma segunda declaração escrita pelos companheiros e próximos de Serge, divulgada na quarta-feira, 29 de março.

Enquanto nosso camarada Serge continua lutando pela vida que o Estado tentou tirar dele, estamos testemunhando uma nova onda de violência contra ele. A mídia está tentando retratá-lo como um homem que deveria ser fuzilado. Hoje, ele ainda está em coma, em estado crítico. Enviamos nossa solidariedade a Mickaël e a todos que sentiram a força bruta da violência policial cair sobre eles.

A mídia burguesa continua repetindo incessantemente palavras cuidadosamente escolhidas pelo Estado para construir, do nada, o inimigo que quer combater. Sua fachada falsa vai desmoronar diante das muitas narrativas que corrigiram e reescreveram o curso dos acontecimentos. A polícia usou granadas com o objetivo específico de causar danos físicos e mentais aos manifestantes; eles são responsáveis ​​por impedir que os socorristas evacuem os feridos, mesmo que isso signifique deixar nossos camaradas morrerem.

Os serviços de inteligência têm distribuído livremente as informações que coletaram sobre Serge para redações em todo o país. O objetivo deles é nos obrigar a nos definirmos nas palavras usadas pela polícia. Aqui, não vamos nos envolver com as versões deliberadamente abreviadas da identidade de Serge que a polícia tem circulado. Não acreditamos que qualquer verdade sobre ele possa ser encontrada nos arcanos da propaganda estatal e da mídia. Como revolucionário, Serge tem participado com todas as suas forças e por muitos anos em muitas lutas de classes contra a nossa exploração, sempre com vistas à ampliação e fortalecimento da vida e vitória do proletariado.

E, de fato, não podemos nos deixar esmagar.

Apelamos a todos aqueles que o conhecem para dizer aos outros ao seu redor quem ele é. Lembre-se: Serge, em luta, recusa a estratégia do estado de separar bons e maus manifestantes. Com ele e para ele, defendemos esta linha.

Na terça-feira, 28 de março, pessoas de todos os lugares se comprometeram a mostrar sua solidariedade ao movimento contra a reforma previdenciária na França. Também recebemos muitas mensagens de camaradas internacionais. Nós os agradecemos calorosamente e os encorajamos a continuar e apoiar o movimento. Mais ações já estão planejadas e encorajamos as pessoas a se juntarem e multiplicarem sem restrições, na França e no resto do mundo.

Queremos que este comunicado seja compartilhado o mais amplamente possível.

PS: Há muitos rumores sobre a condição médica de Serge. Não os compartilhe. Nós manteremos você atualizado.

Para entrar em contato conosco:

s.informations@proton.me

Camaradas de S.

A Outra Campanha 2022 vem aí!

Hoje, dia 16 de agosto, estão oficialmente lançadas as candidaturas para eleger presidente, governadores, deputados e senadores. Essa promete ser a eleição mais acirrada e dura desde a redemocratização do Brasil, quando o governo com maior participação militar da história ameaça diariamente usar a força para resistir a uma derrota eleitoral, colocando em risco a existência em da democracia representativa como a conhecemos.

Quando protestos e contramanifestações que poderiam minar o apoio popular de Jair Bolsonaro nas ruas foram desencorajados e sabotados pela esquerda institucional e os movimentos sob seu guarda-chuva, as únicas formas de protesto restantes foram cartas gestadas pela elite intelectual e econômica para gentil e tardiamente pedir para que a democracia não seja destruída. A Carta aos Brasileiros e Brasileiras de 2022 emula a Carta aos Brasileiros de 1977, que pedia aos militares que devolvessem o Estado de Direito. Na época, foi lida na Faculdade de Direito de São Paulo por um orador no mínimo suspeito, escolhido pelos escritores da carta: o antigo apoiador do golpe de 1964 e membro da Ação Integralista Brasileira, Gofredo Teles Júnior.

Nesse ano, tanto a carta escrita pelos juristas de São Paulo quanto a escrita pela FIESP, dão o clima de uma suposta “união entre capital e trabalho“, comprovando a tese de que o fascismo atrasa qualquer agenda de esquerda revolucionária, juntando frentes cada vez mais amplas em uma luta para manter tudo como está. Daí segue o risco de um antifascismo que não toma as ruas, que não se propõe combativo e radicalizado, se tornar apenas uma força defendendo abstrações vagas como “liberdade e democracia”, ou uma aliança estagnada que apenas tenta evitar que o capitalismo deixe seus cães de guarda fascistas tomarem a frente do sistema que nunca os eliminou.

Enquanto ainda nos preparamos para possíveis eventos golpistas em setembro e a promessa de tensão e violência nos dias de eleição, lançamos uma edição atualizada do texto base da Outra Campanha e relembramos o vídeo “A Era da Democracia”, com texto e vídeo produzidos pelos coletivos s Antimídia e Facção Fictícia e reunidos no portal A OUTRA CAMPANHA.

Convidamos movimentos, coletivos e qualquer grupo ou indivíduo a reproduzir livremente esses materiais e promover o debate de seus pontos. Apesar das eleições e do voto, e de seus possíveis resultados, a organização de base e radical será necessária para derrotar tanto o fascismo quando o capitalismo como um todo, e não apenas encontrar gestores que pacifiquem as relações de exploração e opressão dentro deles.

Votando ou não, copie e difunda, mas, acima de tudo, se organize para construir um mundo realmente igualitário e livre — um mundo onde caibam muitos mundos!

Zine para baixar e imprimir:
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Vídeo:


Desde o início dos anos 2000, vários movimentos sociais e grupos anticapitalistas atendem ao chamado do Exército Zapatistas de Libertação Nacional e todo o Movimento Zapatista para uma campanha “abaixo e à esquerda” por mudanças radicais. Desde a primeira marcha que percorreu 32 estados mexicanos em 2006, Zapatistas propõem escutar as comunidades e promover valores como o anticapitalismo, o horizontalismo e a igualdade.

Para ler mais:

SOBRE AS ELEIÇÕES: ORGANIZAR-SE – Subcomandante Insurgente Moisés – EZLN.

DA DEMOCRACIA À LIBERDADE – Coletivo CrimethInc.

ANARQUISMO E A FALÊNCIA DA REPRESENTAÇÃO – Camila Jourdan

ANARQUIA FUNCIONA – Peter Geoderloos.

ANARQUIA VIVA! POLÍTICA ANTIAUTORITÁRIA DA PRÁTICA
PARA A TEORIA – Uri Gordon.

BANDEIRA NEGRA: REDISCUTINDO O ANARQUISMO – Felipe Corrêa

ANARQUISMO NO SÉCULO 21 – David Graeber

MANUAL ANTIFA – Mark Bray

Do Genocídio Pandêmico a Um Levante Fascista – O que Precisamos para Barrar Bolsonaro

Agentes de saúde antes de examinar o corpo de uma pessoa em durante o surto de coronavírus em Manaus.

A pandemia da Covid-19 no Brasil chega a números absurdos 210 mil pessoas mortas, cidades entrando em colapso. Sabíamos que o bolsonarismo deixaria um legado de repressão, violações e morte. Mas a crise sanitária está elevando as consequências ao extremo da devastação humana e ecológica. Em Manaus falta oxigênio e vítimas da Covid-19 e outras enfermidades morrem sufocadas enquanto o presidente e seus ministros dizem que “não podem fazer nada”. Não existe mais auxílio emergencial e os despejos seguem mesmo durante a pandemia, a letalidade policial aumentou 7% em relação à 2019 (cerca de 6 mil execuções) e o desemprego atinge índices históricos.

Para agravar o cenário, o presidente se isola entre a extrema-direita global, negando a pandemia, sabotando qualquer iniciativa e discursos médicos-científicos que viabilizem a vacinação e recomendando falsos “tratamentos precoce” da doença com hidroxicloroquina e vermífugos – ideia que até mesmo Donald Trump abandonou meses antes de perder as eleições.

Bolsonaro é o último chefe de Estado que segue como apoiador declarado, e ainda fiel, dos delírios de Trump, reproduzindo sua narrativa de fraude eleitoral e sendo o único líder mundial que apoia os discursos que justificam a invasão do Congresso estadunidense por uma multidão de fascistas no dia 6 de janeiro.

Multidão invade o Capitólio impulsionada por discurso de Trump com bandeiras racistas e neonazistas: serão eles a imagem do futuro?

E vai além: Bolsonaro é o único caso do mundo de um candidato que mesmo tendo ganho a eleição alegou, sem provas, que o sistema eleitoral brasileiro é fraudulento e que, caso o país não abandone as urnas eletrônicas, voltando as antigas cédulas para votação de papel, haverá manipulação também na eleição presidencial de 2022. Com isso, sinaliza que seria necessário haver uma reação à suposta fraude do futuro, nos moldes da invasão ao Capitólio que ele acaba de celebrar.

Por mais que certas mitologias insistam, a história não se repete. Mas é fácil encontrar padrões de atuação política e discursos entre grupos ou líderes mundiais que compartilham interesses e um mesmo momento histórico. Como o fracassado Trump, Bolsonaro surfa na mobilização de grupos sociais que transformam seu ressentimento em ação política autoritária, supremacista e estridente. Essa onda que garante uma base de apoio reduzida, mas fiel e ativista. Seus apoiadores funcionam por meio de uma lógica identitária onde fatos ou dados científicos não têm relevância se não reforçarem suas próprias crenças e nem favorecerem as políticas do seu líder. Nesse caso, seguir recomendações médicas não é uma questão de saúde e cuidado de si e dos outros, mas apenas uma polêmica na disputa limitada entre a extrema-direita reacionária e social-democracia gestora, identificada, no Brasil, com os anos de governo do PT.

Nessa lógica de identificação sectária e paranóica, sua base mais radical é inflamada para realizar nas ruas e outros locais o que o discurso do presidente e seu time (ainda) não podem fazer abertamente: a violência física e o assassinato direto da oposição. Embora saibamos que suas políticas são responsáveis pela morte de milhares de pessoas, seja na pandemia, nos desastres ambientais ou pela mão da polícia, o discurso de Bolsonaro e sua família ainda é tratado como uma “metáfora” ou como “mera brincadeira” por seus defensores mais poderosos da mídia ou em cargos públicos. Quando diz que a “ditadura matou pouco”, ou que o que o Brasil passou entre 1964 à 1985não foi uma ditadura”, ou mesmo quando diz que vai “metralhar a esquerda”, Bolsonaro se foge de qualquer responsabilidade alegando que não está falando literalmente ou está sendo mal interpretado. Mas, assim como Trump incentivando (e depois elogiando) neonazistas que atiraram e mataram manifestantes antirracistas em agosto 2020 e invadiram o Congresso em janeiro de 2021 para manter seu governo no poder, o comportamento de Bolsonaro abre caminho para que seus apoiadores se sintam ainda mais encorajados a agir no mundo real.

As políticas de liberação de armas no Brasil e propostas de isenção de impostos sobre elas caminham para facilitar o acesso a armamentos para quem tem dinheiro para isso e se identifica com o discurso reacionários do presidente. As 180 mil novas armas registradas em 2020 já são um recorde, representando um aumento de 91% em relação a 2019 e um aumento geral de 183% desde o início do governo.

Bolsonaro demonstra querer formar uma base radicalizada – e armada – para defender seus interesses nas ruas conforme o exemplo trumpista. No contexto estadunidense, onde a posse legal de armas como pistolas ou fuzis já é parte da cultura, Trump foi capaz de insuflar seus apoiadores até que um de seus apoiadores, membro de uma milícia supremacista, matou duas pessoas e feriu uma terceira com tiros de AR-15 em agosto de 2020, num protesto antirracista em Kenosha, com a conivência da polícia.

Com tantas novas armas nas mãos de pessoas que se influenciaram pela propaganda bolsonarista, não é difícil imaginar manifestações de onde partidários do presidente acabem abrindo fogo ou praticando outras formas de violência contra outros manifestantes ou minorias que já são alvo do racismo, sexismo e xenofobia.

E se há alguma dúvida quanto a atuação da polícia, os recentes esforços do governo federal em tirar o controle das Polícias Militar e Civil dos governos estaduais e transferi-lo para Brasília (revisão do Projeto de Lei nº 4.363, de 2001), revelam o interesse de centralizar o comando das forças policiais, assim como acontece com as Forças Armadas. Vale lembrar que o golpe de estado organizado pela extrema direita na Bolívia em 2019 foi executado pela polícia, sem que o Exército tentasse impedir.

Além disso, Bolsonaro concede agrados e praticamente se tornou um paraninfo oficial de formaturas em academias de polícia. A polícia é uma das bases políticas mais sólidas de Bolsonaro, e o presidente constantemente encaminha propostas que fortalecem esse apoio. Como a que amplia o excludente de ilicitude para a polícia, isentando policiais de punição por qualquer ato ilegal cometido em serviço, ou seja: estimulando para que matem ainda mais!

Sobre a Violência

O discurso armamentista da direita é baseado na antiga ideia de que o “cidadão de bem” deve ter o direito de defender sua propriedade. Numa sociedade capitalista e patriarcal, isso significa: homens brancos, possuidores de imóveis ou terras com liberdade para usar a violência contra quem não tem. O Estado, que detém o monopólio da violência legal, mas garante “legitimidade” para que o rico possa matar pobres quando se sentir ameaçado – mas jamais vai tolerar que pobres, pretos, mulheres, indígenas e outros grupos marginalizados possam se defender da mesma forma contra agentes do Estado ou do Capital. A autodefesa é negada para todos esses grupos. Em outras palavras, só pode se defender quem já tem a proteção do Estado, como uma extensão da defesa ao direito de propriedade. E quem já é alvo, deve permanecer sem defesa ou sofrer duras punições casto tente revidar.

Mas não é somente a direita que trabalha para manter esse monopólio da autodefesa. Quando parte da esquerda condena protestos “violentos”, os bloqueios, o vandalismo, a desobediência e o contra ataque à violência policial, ela está complementando o mesmo discurso armamentista de Bolsonaro e seus apoiadores. Mesmo sem uma intenção explícita, as consequências de seu discurso pacificador afirmam: esses corpos não têm o direito de se defender, não podem revidar, devem traduzir seu ódio e sua insatisfação para um canal “legítimo” dentro de instituições que foram criadas pela elite para controlá-los e silenciá-los. Desnecessário dizer que quem concede essa legitimidade é a mesma lei burguesa que acolhe a violência policial e criminaliza qualquer resistência.

Vamos nos defender: a polícia sempre estará do lado do fascismo!

É compreensível que líderes de movimentos e partidos de esquerda reproduzam esse discurso, pois precisam da legitimação do poder estatal para disputar seus cargos e o controle das instituições. Se candidatos como Guilherme Boulos, que mandou integrantes do movimento sem-teto agredir adeptos da tática Black Blocs em atos em São Paulo, estimularem a desobediência e o confronto com a polícia, como esperar que a mesma polícia vá obedecer suas ordens caso sejam eleitos? Ou pior, como convencerão as pessoas que elas não devem desobedecer ou atacar a polícia quando ela estiver cumprindo as suas ordens?

Assistimos ao fim da representatividade democrática, desgastada e ineficiente. Com a perda da confiança em seus processos, o fracasso em prover o bem-estar geral dentro do neoliberalismo, a violência e o autoritarismo se tornam os únicos recurso para manter o comando do Estado. Sendo assim, nenhuma pessoa ou grupo que almeja um dia controlar esses governos e polícias irá nos salvar do fascismo, pois nunca agirão contra essas instituições que sempre abriram caminho e sustentaram regimes fascistas.

Nossa Ação é Direta

Em meio a um cenário de radicalização e promessa de violência, é inútil esperar que polícias, leis ou exércitos impeçam a escalada do fascismo dentro e fora das instituições. A história recente nos mostra que todo aparato criado sob a justificativa de reprimir extremistas e fascistas, especialmente após os atentados de 11 de setembro, acabam sendo usados contra movimentos sociais e minorias. Nos EUA pós 2001, movimentos anticapitalistas, antifascistas e de libertação animal e da terra (Animal Liberation Front e Earth Liberation Front), se tornaram os principais alvos do combate ao “terrorismo doméstico”, mesmo nunca causando uma única morte ou atentado contra qualquer pessoa.

Fascistas e outros tipos de nacionalistas e populistas como Bolsonaro, Trump, Modi, Putin e Erdogan tendem a levar a balança do jogo político todo para a direita. Por isso pensar apenas numa polarização entre direita x esquerda nas urnas não é o suficiente, pois exclui do espectro político movimentos pela libertação real, anticapitalista e antiautoritária. Políticos e grupos neoliberais e conservadores reconhecem que a gestão genocida de Bolsonaro ou a tentativa fracassada de golpe com apoio de neonazistas orquestrada por Trump, são extremos perigosos. Como vemos no embate entre o governador de São Paulo e o governo federal, neoliberais como João Dória, que oferece ração para estudantes e pessoas em situação de rua e que manda a PM atirar para matar, vão se apresentar como a oposição moderada ao bolsonarismo. O risco que os fascistas nos apresentam é tornar o antifascismo um mero resgate das políticas assim como eram ontem, ou pior, que as mantenha como estão hoje. Com o medo do que pode ser pior, a esquerda se torna paralítica ou até mesmo reacionária diante de rupturas radicais.

Não é raro surgir na mídia ou na internet discursos de petistas – ou do próprio Lula – acusando os levantes de 2013 de serem os responsáveis pela escalada conservadora e fascistóide que levou ao impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e elegeu Bolsonaro. Ao fazer isso, tentam garantir que qualquer ação política fora de sua gestão eleitoral/estatal seja suprimida e sugerem que na era PT o povo brasileiro viveu uma plena revolução, com igualdade para todas e fim da opressão – como se os bancos não tivessem lucros recordes, a reforma agrária tenha sido paralisada, os movimentos abafados e a população carcerária aumentado dramáticos 620%.

As recentes mobilizações no Chile, Argentina, México e Estados Unidos conseguiram vitórias e importantes avanços porque não esperaram para revidar à violência policial e das leis. Decidiram romper com a institucionalidade e o controle burocrático da esquerda acostumada com os palácios, reformas paralisadoras e a conciliação de classe. Mesmo quando a luta é por mudanças legais e institucionais, como a legalização do aborto na Argentina ou a derrubada da constituição chilena em vigor desde a ditadura de Pinochet, a pressão direta das pessoas nas ruas, tomando, ocupando e bloqueando a normalidade são muito mais eficientes. Se quisermos saúde de gratuita de qualidade, o fim dos despejos e acesso a recursos e alimentos durante e após a pandemia, não podemos esperar que governantes se antecipem, e sim tomar a iniciativa em nossas mãos.

Anarcafeministas com os escudos roubados da polícia da Cidade do México, em 28 de setembro.

As mobillizações no Brasil em 2020, durante a pandemia, provam que os maiores sindicatos, movimentos e partidos da oposição são os últimos a tomarem alguma inciativa no mundo real para mudar algo. Uma das maiores e mais importante paralisação de trabalhadores foi organizada por entregadores e entregadoras rompendo com o isolamento da informalidade forçada pelos aplicativos de delivery. As mais combativas manifestações que barraram fisicamente carretas e passeatas bolsonaristas foram puxadas por torcidas e movimentos antifascistas nos quatro cantos do país.

É fundamental impedir os encontros e marchas para que fascistas não tenham espaço para fazer propaganda e recrutar novos membros paras suas fileiras. No entanto, percebemos que quando a esquerda está nas ruas em busca de palanque eleitoral e em defesa da institucionalidade, ela vai aceitar recuar e protestar contra o fascismo distante dos fascistas – como foi o caso de movimentos em São Paulo que negociaram a paz com a Polícia Militar para protestar alternadamente com os movimentos de direita.

Nota de repúdio: manifestantes em frente ao 3º Distrito Policial de Minneapolis, onde trabalhavam os assassinos de George Floyd.

Para o dia 23 de janeiro estão marcados diversos atos pelo Brasil contra a política genocida de Jair Bolsonaro e sua equipe. No entanto, não são apenas movimentos de base e a esquerda que estão convidando pessoas para irem às ruas no momento em que a popularidade do presidente despenca – a direita conservadora que vem rompendo com o governo que ajudou a eleger também está determinada a tentar limpar sua imagem voltar ainda mais fortes. Não podemos deixar que neoliberais e fundamentalistas cristãos monopolizem as revoltas que estão por vir e se tornem a imagem da resistência ao bolsonarismo nas ruas. Se falharmos, em breve veremos cenas como a do dia 6 de janeiro nos EUA, com manifestantes tentando novamente invadir o Congresso ou o STF em nome de um regime ainda mais autoritário e assassino.

Organizar a solidariedade, revidar avanços fascistas, tomar as ruas, ocupar para morar e plantar e, não menos importante, impor consequências aos ricos e ao Estado para pressionar por mudanças estruturais é a única garantia de que não teremos nossas demandas amortecidas ou cooptadas por pretensas lideranças. Os levantes do dia 20 de novembro de 2020, dia da Consciência Negra, após a morte de João Alberto em uma loja do Carrefour em Porto Alegre já nos mostram o potencial da coordenação informal em escala nacional da revolta que trazemos latente contra toda essa política de morte impregnado nas estruturas desse sistema.

Somente formas de ação popular e radicais vão ser capazes de defender comunidades de ataques fascistas e impedir que seus movimentos ocupem as ruas com suas ideias vazias e cheias de ressentimento.

A luta é radical e pela vida. E só poder ser agora.

De Ferguson a Porto Alegre: FOGO NOS RACISTAS, NOS FASCISTAS E NOS CAPITALISTAS!