“NÃO TEMOS MEDO DAS RUÍNAS”: DECLARAÇÃO DE TÊKOŞÎNA ANARŞÎST SOBRE ATUAL SITUAÇÃO EM ROJAVA

Desde 2020, a guerra civil na Síria não sofreu grandes desdobramentos. Com a Rússia, maior aliada do regime sírio, ocupada com a invasão da Ucrânia, e o Irã distraído com as agressões de Israel em Gaza e no Líbano, as forças jihadistas, como o grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS), tomaram Aleppo, cidade mais importante no norte da Síria, desafiando o poder do ditador Bashar al-Assad e impondo nova ameaça à luta por liberdade e a revolução social em Rojava. Em em meio a esses eventos, o grupo Tekoşîna Anarşîst (Luta Anarquista/TA), atuando em Rojava há pelo menos 5 anos, lançou um comunicado sobre a situação e sua posição diante dos novos desdobramentos da guerra civil síria.

entrevistamos companheiros do TA em 2020 e traduzimos uma outra entrevista feita pela da federação Anarquista uruguaia (fAu) aqui em nosso blog. Convidamos a todas as pessoas interessadas na superação do capitalismo, do fascismo, do patriarcado e do colonialismo a conhecer o processo revolucionário em Rojava e a contribuição de anarquistas em solo para essas lutas. A tradução do artigo abaixo foi feita pela editora Terra Sem Amos.


“NÃO TEMOS MEDO DAS RUÍNAS”

Há mais de cinco anos, as Forças Democráticas Sírias (SDF) puseram fim ao califado do Estado Islâmico (ISIS). Agora, com a nova ofensiva do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), corremos o risco de reviver suas atrocidades. O HTS uniu diversos grupos jihadistas, incluindo ex-combatentes do califado em suas fileiras. Recentemente, eles iniciaram uma grande ofensiva, rompendo o cerco de Idlib e provocando o colapso do Exército Árabe Sírio (SAA). Aleppo foi a primeira grande cidade capturada, com a apreensão de grandes quantidades de armamento avançado deixado para trás por soldados do regime.

As SDF reagiram rapidamente, enviando reforços para proteger o bairro curdo de Sheh Maqsoud, em Aleppo, bem como os campos de refugiados na região de Sheba. No entanto, as forças que representam o exército turco, o Exército Nacional Sírio (SNA), iniciaram uma nova ofensiva coordenada com o HTS, invadindo essa mesma região de Sheba. Os refugiados deslocados pela invasão turca de Afrin em 2018 são, mais uma vez, forçados a abandonar seus lares sob a mira de armas. Mais de 100.000 pessoas agora buscam abrigo em tendas improvisadas às margens do rio Eufrates, ainda ameaçadas por novos avanços de grupos jihadistas.

Esses novos desdobramentos agravam a instabilidade no Oriente Médio e devem ser analisados em conjunto com outros conflitos em curso na região. A ocupação israelense de Gaza, juntamente com os ataques contra o Hezbollah, enfraqueceram a posição do Irã na Síria, limitando sua capacidade de apoiar o SAA. Tropas russas, também enfraquecidas após quase três anos de guerra na Ucrânia, abandonaram várias posições terrestres e estão bombardeando brutalmente Idlib e Aleppo. Os Estados Unidos tentam se manter fora do conflito, sabendo que Trump pode pressionar pela retirada de suas tropas do território sírio. Os soldados turcos ainda não estão abertamente envolvidos, mas o Estado turco está mexendo os pausinhos do SNA para continuar suas políticas genocidas contra o povo curdo. Assad está tentando obter apoio internacional de outros países árabes, e o Irã já começou a enviar reforços para uma contraofensiva conjunta com o SAA. Em meio a esse caos, a Revolução de Rojava e o Movimento de Libertação Curdo resistem como a principal esperança para revolucionários no Oriente Médio.

A maior movimentação de forças na Síria nos últimos cinco anos está em curso e pode ter implicações que ainda não conseguimos prever. É uma situação complexa, e vemos como muitos jornalistas têm dificuldade em compreendê-la. Grande parte da mídia ocidental tem sido complacente com o avanço do HTS, chegando até a chamá-los de oposição revolucionária, “rebeldes” contra a ditadura de Assad. Também desejamos a queda do regime, mas o HTS e seu “governo de salvação” não são uma solução libertadora. Seu objetivo é substituir a dinastia Assad por leis da sharia e um estado islâmico, pouco diferente do que o Talibã está fazendo no Afeganistão ou do que a República Islâmica do Irã tem feito desde 1979. Esse não é um futuro que podemos aceitar, e muitos sírios também não aceitarão.

Nós, como anarquistas e internacionalistas em Rojava, desempenharemos nosso papel nesses tempos desafiadores. Lutaremos ao lado das SDF para defender e expandir o projeto revolucionário, construindo uma sociedade sem Estado onde prevaleçam os princípios do confederalismo democrático, pluralismo e da revolução das mulheres. Conclamamos todas as forças anarquistas e outros movimentos revolucionários, agora mais do que nunca, a defender Rojava!

Sabemos que a guerra traz sofrimento e destruição, mas também pode abrir oportunidades para uma vida livre para aqueles que estão prontos. Vimos o que a vitória sobre o ISIS nos possibilitou e estamos prontos para continuar lutando por um futuro melhor. Porque não temos medo de ruínas!

Muitos camaradas estão perguntando: O que posso fazer para apoiar a revolução?
  • Viajar para o Nordeste da Síria (NES) não é possível no momento, pois as fronteiras estão fechadas. Mas você pode garantir que o que está acontecendo na Síria seja conhecido, escrevendo artigos, realizando entrevistas, podcasts, organizando palestras e eventos em coordenação com comitês de solidariedade já existentes.
  • Se houver manifestações de solidariedade em sua região, participe e apoie! Se não houver, talvez você possa organizá-las!
  • Você também pode fornecer apoio econômico aos mais necessitados, já que a crise humanitária atual é crítica e requer nossa atenção. Para isso, a Heyva Sor, uma organização independente, já está trabalhando para apoiar e prover assistência aos afetados pela guerra no nordeste da Síria.

Isto está longe de acabar. Mantenha-se informado e prepare-se para os próximos acontecimentos!


PARA SABER MAIS:

A História se Repete: Primeiro como Farsa, Depois como Tragédia – Por que o Partido Democrata é Responsável ​​pelo Retorno de Donald Trump ao Poder

Donald Trump venceu a eleição presidencial de 2024 nos Estados Unidos. Antifascistas, anarquistas e todos insubmissos deverão se preparar para lugar as mesmas batalhas de 2017-2020 novamente, em um terreno ainda mais perigoso, uma vez que Trump e sua base fascista conhecem melhor o terreno em que lutarão, além de terem mais cadeira no congresso e senado.

O retorno de Trump como presidente eleito pelo partido Republicano já é tratado como exemplo a ser seguido no Brasil por Jair Bolsonaro e seus familiares, que acompanharam de perto a apuração da eleição estadunidense. Apesar de condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral e tornado inelegível, Bolsonaro diz que será candidato voltar à presidência ou eleger um aliado próximo em 2026.

Outros paralelos entre o que aconteceu nos EUA e no Brasil podem ser traçados a partir da leitura do artigo a seguir, do coletivo CrimethInc., uma vez que desde a forma como concorreram, governaram e buscaram dar um golpe de estado ao perder a reeleições, um parece emular a cartilha do outro.

De qualquer forma, seja para combater o bolsonarismo nas próximas eleições, ou seus aliados ocupando cargos no executivo e legislativo, ou seus capangas ruas, é preciso avaliar como a esquerda brasileira fez de tudo para sabotar os protestos de rua, greves e organizações populares contra o governo Bolsonaro. Da  mesma forma que o partido Democrata condenou e atacou protestos radicais nos Estados Unidos, numa das maiores ondas de protestos de sua história, contra a polícia e o racismo.

Democratas tiraram a legitimidade de um levante popular amplo que trouxe ao debate a redução de investimentos em polícia e prisões, aceitando levar suas políticas ainda mais para a direita só para conseguir competir com Trump, enquanto abria caminho para o fascismo se radicalizar sem oposição popular. Por aqui, o ministro da Fazenda de Lula, Fernando Haddad, já avaliou como “moderada” a declaração de Trump ao anunciar vitória nas urnas.

Se não aprendermos com nossos erros por aqui e com a derrota da esquerda estadunidense, estaremos em desvantagem para enfrentar o fascismo que pode muito bem voltar ao poder em 2026, mas, o que é mais perigoso, se instalar no imaginário social como única saída “radical” para as crises do capitalismo.

Portando, publicamos e convidamos a todas as pessoas para entender a escala do que está acontecendo nos EUA e como foi o caminho até aqui.

Leia mais artigos do coletivo CrimethInc. em português aqui.


A batata quente muda de mãos novamente

Há muito tempo argumentamos que, no século XXI, o poder estatal é uma batata quente. Como a globalização neoliberal tornou difícil para as estruturas estatais mitigar o impacto do capitalismo sobre as pessoas comuns, nenhum partido é capaz de manter o poder estatal por muito tempo sem perder credibilidade. De fato, nos últimos meses, derrotas inesperadas minaram os partidos governantes na França, Áustria, Reino Unido, e Japão.

Na eleição de 2024, tanto Kamala Harris quanto Donald Trump já estavam manchados por seu relacionamento com o poder do estado, mas Harris era a única associada ao governo vigente e esta é uma das razões pelas quais ela perdeu. Dezenas de milhões de eleitores de Trump apoiam seu programa, sim, mas os eleitores que o empurraram para a vitória estavam essencialmente dando votos de protesto ao status quo.

Democratas fizeram tudo o que podiam para se associar à ordem dominante: movendo suas políticas para a direita, mudando o apoio de supostos “esquerdistas” dentro de suas fileiras, desmobilizando movimentos de protesto. Acontece que essa foi uma aposta perdida em um momento em que as pessoas estão sedentas por mudanças.

Resta saber como o resto do país responderá. Se a liderança do Partido Democrata for capaz de ceder e aceitar uma posição como sócios minoritários no fascismo, o futuro pode ser realmente sombrio. Por outro lado, se ficar claro que metade do país vai resistir ao programa Trump, parte da liderança Democrata será forçada a seguir sua posição como representantes dessa parte da população, como ocorreu em 2017.

O que acontecerá a seguir será decidido nas ruas.

O Partido da Cumplicidade

Republicanos se tornaram o partido do fascismo. Na preparação para esta eleição, os democratas se estabeleceram como o partido da cumplicidade com o fascismo.

O que significa reconhecer que Donald Trump é um fascista, mas não fazer nada além de incitar as pessoas a votarem contra ele? Se, de fato, Trump pretende introduzir o fascismo nos Estados Unidos — se, como ele prometeu explicitamente, ele irá perseguir milhões de pessoas (“a maior operação de deportação doméstica na história americana”), colocar os militares nas ruas para reprimir protestos e usar o sistema judicial para atacar qualquer um que se oponha a ele — então limitar-se à mera oposição eleitoral significa acolher o fascismo de braços abertos.

Quando o fascismo está a caminho, a coisa apropriada a fazer é organizar redes subterrâneas de resistência, como os antifascistas italianos e franceses fizeram nas décadas de 1930 e 1940. A coisa apropriada a fazer é se preparar para resistir por quaisquer meios necessários. Qualquer coisa menos que isso é cumplicidade.

Reformar as instituições que serão usadas pelos fascistas parar aplicar suas políticas é cumplicidade. Normalizar a violência contra as pessoas que os fascistas pretendem atacar é cumplicidade. Entregar as plataformas de comunicação por meio das quais as pessoas compartilham informações é cumplicidade. Desencorajar as pessoas do tipo de tática necessária para lutar contra um regime fascista é cumplicidade. Nos últimos quatro anos, os democratas fizeram cada uma dessas coisas.

A liderança do partido Democrata já está preparada para coexistir com fascistas, para ser governada por fascistas. Eles prefeririam o fascismo a mais quatro anos de protestos tumultuados. Ter um partido mais autoritário no poder lhes dá um álibi — os faz parecer bons em comparação, mesmo que sejam eles que canalizam as pessoas para fora das ruas e pavimentam o caminho para Trump executar seu programa.


O Caminho para o Fascismo

Vamos explicar por que os democratas são culpados por essa situação.

A Polícia

Democratas começaram a era Biden-Harris dobrando seu apoio à polícia, precisamente quando milhões de pessoas nos Estados Unidos estavam se perguntando se era hora de procurar uma maneira mais eficaz de lidar com a pobreza e as crises de saúde mental do que continuar canalizando grandes quantidades de financiamento público para a militarização dos departamentos de polícia. Quando Trump assumir o cargo novamente em 2025, os departamentos de polícia em todo o país que o governo Biden financiou e glorificou estarão na vanguarda da imposição da agenda de Trump.

A virada pró-polícia do Partido Democrata ajudou a trazer ex-policiais como o prefeito de Nova York, Eric Adams, para o gabinete em 2020. A administração de Adams tem sido um desastre; ele é atualmente o primeiro prefeito de Nova York a enfrentar acusações federais, incluindo suborno, conspiração e fraude. Desde então, Trump estendeu a mão para Adams, um homem forte corrupto para outro. É isso que acontece quando você coloca o poder do estado diretamente nas mãos das forças de repressão.

A Lei

Desde o início do primeiro governo Trump, os democratas concentraram suas críticas a Trump na ideia de que o que ele estava fazendo era ilegal, usando o slogan “Ninguém está acima da lei”. Como debatemos em 2018,

Se você está tentando estabelecer a base para um poderoso movimento social contra o governo de Trump, “ninguém está acima da lei” é uma narrativa autodestrutiva. O que acontece quando uma legislatura escolhida por manipulação eleitoral aprova novas leis? O que acontece quando os tribunais lotados com os juízes que Trump nomeou decidem a seu favor? O que você fará quando o FBI reprimir os protestos?

Agora, com a Suprema Corte controlada pelos indicados de Trump e este se preparando para retomar o poder, veremos as respostas para essas perguntas. Qualquer um que esteja determinado a impedir Trump de executar sua agenda precisará se preparar para quebrar as leis que a legislatura de Trump vai aprovar e os juízes de Trump irão aplicar.

Marchar sob a bandeira “ninguém está acima da lei” é cuspir na cara de todos aqueles para quem o funcionamento diário da lei é uma experiência de opressão e injustiça. É rejeitar a solidariedade com os setores da sociedade que poderiam dar a um movimento social contra Trump alavancagem nas ruas. Finalmente, é legitimar o próprio instrumento de opressão — a lei — que Trump eventualmente usará para suprimir seu movimento.

Como alertamos em julho passado, uma vitória de Trump significa que todas as instituições com as quais os centristas contavam para protegê-los — a política eleitoral, o sistema judiciário, a polícia, a inclinação dos cidadãos comuns de obedecer à lei e respeitar as autoridades — agora são armas nas mãos de seus inimigos.

A Mídia

Quando os donos do Twitter o venderam para Elon Musk em 2022, eles entenderam que estavam colocando o controle da principal plataforma de comunicação política do século 21 nas mãos de um megalomaníaco de extrema direita. Uma das primeiras coisas que Musk fez foi banir algumas das contas anarquistas mais conhecidas que ajudaram a mobilizar pessoas durante o primeiro governo Trump. Este foi um passo no processo de reduzir o Twitter a um veículo de propaganda de extrema direita.

Como apontamos na época,

A aquisição do Twitter por Musk não é apenas o capricho de um plutocrata individual — é também um passo para resolver algumas das contradições dentro da classe capitalista, para melhor estabelecer uma frente unificada contra os trabalhadores e todos os outros que sofrem a violência do sistema capitalista.

De fato, o financiamento de um grupo de bilionários foi um dos principais fatores que permitiram que Trump vencesse a eleição de 2024. Os bilionários conseguiram mudar sua lealdade para Trump em parte porque, com as plataformas de comunicação e os protestos de rua controlados, eles não precisaram temer que uma segunda administração Trump criasse um caos que seria ruim para os negócios.

Isso nos leva ao próximo ponto.

Esvaziando as Ruas

O esforço dos democratas para desacreditar e desmobilizar o movimento contra a polícia caiu diretamente nas mãos de seus adversários, preparando o caminho para Trump retornar ao poder sem resistência.

Ao competir com os Republicanos para se afirmarem como o partido da lei e da ordem, os Democratas permitiram que os Republicanos levassem o discurso sobre “crime” tão para a direita que Trump e seus capangas puderam usar a retórica de combate ao crime, embora crimes violentos tenham diminuído nos últimos anos. Isso contrasta dramaticamente com a maneira como Donald Trump se recusou a recuar seus pontos de discussão um milímetro sequer.

Ao mesmo tempo, Democratas buscaram impedir que novos movimentos ganhassem força. Quando o acesso ao aborto foi restringido em todo o país, por exemplo, os Democratas fizeram o melhor que puderam para impedir uma mobilização popular eficaz em resposta.

Beneficiou as perspectivas eleitorais dos democratas em 2024 esvaziar as ruas? Vamos voltar para 2020 para uma resposta.

Na época, em artigo de opinião após artigo de opinião, os centristas expressaram preocupação de que os confrontos de rua de maio e junho de 2020 pudessem influenciar a eleição para Donald Trump. Na verdade, o registro de eleitores democratas em junho de 2020 aumentou em 50%, enquanto o registro de eleitores republicanos cresceu apenas 6% naquele mês. Uma pesquisa entre o eleitorado constatou que, dentre as pessoas que citaram os protestos como um fator de determinação para votar em 2020, uma porção 7% maior disse que votou em Joe Biden.

Em outras palavras, a Revolta por George Floyd ajudou a eleger Biden.

E lembre-se: a Revolta de George Floyd não começou com uma campanha de registro de eleitores. Ela começou com a queima de uma delegacia de polícia. De acordo com uma pesquisa da Newsweek, 54% dos entrevistados acreditavam que queimar a delegacia era justificável. Se isso não tivesse ocorrido, o movimento não teria conseguido empurrar os assassinatos de George Floyd, Breonna Taylor e outros para o debate público, e não haveria ganho eleitoral para o Partido Democrata. Não há como criar movimentos poderosos sem tomar medidas reais contra as causas da injustiça.

Como o partido que coopta movimentos de resistência, os democratas teriam se beneficiado de movimentos mais poderosos em 2021-2024. Eles preferiram perder.

A Catraca Política

A campanha de Harris recebeu o apoio do ex-presidente George W. Bush, da ex-representante Liz Cheney, do apresentador de rádio conservador Charlie Sykes e de muitas outras figuras de direita. Isso não ocorreu apenas porque a agenda de Trump era chocante até mesmo para aqueles que antes representavam a face do establishment republicano — também porque Harris representava um projeto político centrista, deixando os Republicanos determinarem o discurso sobre questões como imigração.

Como já argumentamos anteriormente,

O sistema bipartidário dos EUA funciona como uma catraca, com o Partido Republicano puxando constantemente as políticas públicas e o discurso permitido para a direita, enquanto os Democratas, ao tentarem adquirir poder perseguindo o centro político, servem como um mecanismo que impede que as políticas e o discurso retornem.

Essa estratégia ajudou os Republicanos a normalizar o que antes eram ideias marginais sobre imigração e crime, mas não tornou os Democratas mais elegíveis.

Para voltar atrás no tempo, podemos ver que a vitória de Trump em 2024 marca uma virada crucial no discurso político do século XXI. Quando Trump foi eleito em 2016, o consenso neoliberal parecia invencível; sua vitória parecia representar um acaso em que um político atípico chegou ao poder cooptando a retórica do chamado movimento antiglobalização. Hoje, está claro que o auge do consenso neoliberal acabou e algo mais terá que vir a seguir. No entanto, por décadas, os democratas têm colaborado com os republicanos para esmagar movimentos que propunham uma alternativa. Eles suprimiram as forças dentro de seu campo, como a campanha de Bernie Sanders, que representavam um caminho a seguir; foi isso que tornou possível para Trump se apresentar falsamente como um representante da rebelião.

Isso tornou inevitável que a extrema direita detenha o poder na próxima fase, já que os Democratas ajudaram a suprimir alternativas anarquistas, antiautoritárias e de esquerda.

Dessensibilizando o Público

Finalmente, de forma dolorosa, o governo Biden já fez muito do trabalho para dessensibilizar o público em geral para o programa que um segundo governo Trump encorajado tentará executar. Acima de tudo, o governo Biden conseguiu isso apoiando os militares israelenses na execução de um genocídio brutal em Gaza. Ao fazer isso, Biden e Harris acostumaram milhões de pessoas à ideia de que a vida humana não tem valor inerente — que é aceitável massacrar, aprisionar e atormentar pessoas com base em seu status em um grupo demográfico específico.

Este é exatamente o tipo de ambiente que permitirá que Donald Trump execute o tipo de políticas internas brutais que ele pretende fazer quando retornar ao cargo em dois meses e meio.


O caminho à frente

No final das contas, não podemos culpar os Democratas por tudo. Nós falhamos em construir movimentos poderosos o suficiente para sobreviver aos seus esforços para nos suprimir. Nós ainda não estamos preparadas para impedir Trump de deportar milhões de pessoas e canalizar bilhões de dólares a mais para bilionários e o aparato de segurança do estado.

Felizmente, esta história ainda não acabou.

Temos a responsabilidade de não deixar que as estatísticas eleitorais nos desmobilizem. Como escrevemos em 2016, em resposta à primeira vitória de Trump,

As eleições servem para nos representar uns aos outros no nosso pior, destilando os aspectos mais ofensivos, covardes e servis da espécie. Muitas pessoas que nunca arrancariam pessoalmente uma mãe de seus filhos são capazes de endossar a deportação da privacidade de uma cabine de votação, assim como a maioria das pessoas que comem carne nunca poderiam trabalhar em um matadouro. Se não fosse pela alienação que caracteriza o próprio governo, a maioria das políticas feias que compõem a agenda de Trump nunca poderiam ser implementadas.

Haverá uma breve janela de possibilidade agora, quando milhões de pessoas que contavam com os Democratas para mantê-los seguros acordarem e perceberem que somos a única esperança um do outro. Temos que agir imediatamente para fazer contato uns com os outros, para restabelecer tudo o que perdemos desde o ano de 2020.

Temos que empreender projetos proativos que nos diferenciem dos partidos políticos, projetos que mostrem o que todos têm a ganhar com nossas propostas e que ofereçam oportunidades para pessoas de todas as esferas da vida se envolverem no projeto de mudar o mundo para melhor.

A boa notícia é que podemos fazer isso. Já fizemos isso antes. Nos vemos na linha de frente.


Leitura Adicional


GEZI PARK: 10 anos dos levantes de junho na Turquia

Quando as revoltas contra aumento das tarifas do transporte pelo Brasil tomaram escala nacional em  junho de 2013, em Istambul, um levante balançaria toda a Turquia, numa região ainda abalada pelos levantes da Primavera Árabe. As duas revoltas contra o custo e qualidade de vida em economias emergentes demonstravam solidariedade mútua: bandeiras e faixas em São Paulo em apoio ao levante turco, mensagens em Istambul solidarizavam com a revolta popular brasileira.

Uma década depois, Recep Tayyip Erdogan ainda está no poder na Turquia e acaba de vencer mais uma eleição cheia de polêmicas e suspeitas de fraude. Seu projeto de poder busca restaurar uma soberania turca na região, passando por cima da natureza, dos povos, especialmente os curdos. E para isso, se apoia em movimentos nacionalistas de bases fascistas e financia de forma oculta os jihadistas do Estado Islâmico, dispostos a eliminar o povo e a cultura curda e ameaçar a revolução social em Rojava.

No Brasil, o ciclo da década se fecha com o retorno do PT ao poder com a eleição de Lula em 2022, como única aposta eleitoral para barrar uma reeleição da extrema direita com Jair Bolsonaro.

No mês em que muito se fala e analisa sobre os levantes de junho de 2013 pelo Brasil, retomamos também esse movimento rebelde que tomou a Turquia na esteira de levantes internacionais como a Primavera Árabe e o Movimento Occupy.

Como vimos em 2020 e 2021 durante a pandemia da Covid-19, torcidas organizadas brasileiras romperam com o discurso pacificado do “fique em casa” adotado pela maior parte da esquerda enquanto a extrema-direita fazia carreatas e atos públicos para divulgar suas políticas de ódio e morte. Novamente, as torcidas ganharam atenção ao enfrentar nas estradas os bloqueios de bolsonaristas insatisfeitos com a derrota nas urnas. O potencial de mobilização e combatividade das torcidas organizadas de futebol é visível em muitos momentos de agitação social como nos últimos anos no Brasil, mas também no Chile em 2019 durante o “Estallido Social” contra preço das passagens e custo de vida. Nas revoltas da praça Taksin e Gezi Parque na Turquia de 2013 também temos exemplos emblemáticos dessa convergência.

Para relembrar essas lutas e nos inspirar para as próximas, revisitamos esse artigo lançado em 2014 na publicação Balaklava que analisa o levante turco e seus paralelos com a revolta no Brasil de 2013.

11 de junho de 2013, Praça Taksim.

“Por aqui para chegar à Comuna de Taksim”

Ao fim de maio de 2013, uma semana antes das Jornadas de Junho no Brasil, iniciou-se uma série de conflitos na Turquia que resultaram no maior levante popular da história do país. Só a época e a relevância histórica e política já são suficientes para induzir alguns paralelos entre os dois episódios, mesmo com tantas diferenças de contexto e proporções. Os confrontos na Turquia foram muito mais radicais e marcados por uma violência ainda maior em números. A população se ergueu contra um projeto de renovação urbana que contava com a demolição de um parque no centro de Istambul e o movimento se transformou rapidamente num levante contrário ao autoritarismo do presidente Erdogan. Tudo começou no Parque Gezi, vizinho à Praça Taksim, e logo se espalhou pela cidade e por todo o país.

Diferentemente dos poderosos protestos que vimos recentemente na Grécia em 2008, Espanha em 2011 ou nos Estados Unidos em 2012, o levante turco não foi gerado por uma crise de austeridade, com cortes de recursos sociais para salvar bancos e corporações como medida para estabilizar uma economia em constante crise. O levante turco foi, assim como no Brasil, um levante resultante do desenvolvimento e do crescimento econômico de um país emergente, porém muito particular. O primeiro-ministro Erdogan é conhecido por convergir um islamismo reacionário com um neoliberalismo desenvolvimentista bastante agressivo. Ao mesmo tempo que resgata tradições conservadoras, impõe um desenvolvimentismo econômico e infraestrutural. Privatizando e vendendo o que resta de recursos públicos enquanto o desemprego continua em alta, se empenhando em grandes empreendimentos, como uma ponte ligando dois continentes, a demolição e o replanejamento de várias partes das cidades para empreiteiras lucrarem com a construção civil e para que novos negócios se estabelecerem no local. Na capital Istambul um audacioso projeto de renovação e gentrificação previa desmatar parte do Parque Gezi e remodelar a Praça Taksin para abrigar shopping centers e ser uma “zona de pedestres”, dentre outros projetos para os ricos. No entanto, Erdogan parecia ignorar a relevância histórica e política do local para a população.

A Praça Taksin é um tradicional ponto de encontro de mobilizações sociais, protestos de Primeiro de Maio, e carrega um peso histórico de ter sido palco de diversas lutas sociais e massacres. Lá estudantes foram enforcados em 1977 como inimigos do Estado durante o regime militar por protestarem em um Primeiro de Maio. Em outras manifestações ao longo do mesmo ano, 34 pessoas foram baleadas e mortas por paramilitares. Exatos 30 anos depois, em 2007, a esquerda organizou um grande protesto em memória dos mortos de 1977, mas o governo tentou impedir o protesto e radicais resistiram com pedras e molotovs. Nos dois anos seguintes, mais protestos, confrontos e resistência do povo contra a polícia marcaram os dias dos trabalhadores e trabalhadoras.

Então, no dia 28 de maio de 2013, ativistas já se amarravam em árvores para impedir que fossem derrubadas e no dia 31 o levante explodiu, ecoando por todo o planeta. A primeira coisa a chamar atenção da imprensa por aqui foi que a polícia turca utilizava bombas e munições fabricadas no Brasil para reprimir a população numa série de operações que, ao fim do levante, resultaram em pelo menos 6 mil pessoas feridas – sendo 10 cegas – e mais de 10 mortes. Mesmo assim, muito foi noticiado sobre as experiências de vida comunal, resistência e autogestão que tomaram lugar na ocupação dessa área central de Istambul por 10 dias de intensa resistência.

Um dos projeteis de gás lacrimogêneo brasileiros utilizados pela polícia turca.

Entre o primeiro e o dia 10 de junho, todas as ruas e avenidas que levavam à Praça Taksim foram tomadas por barricadas para se defender da polícia. Em grandes avenidas era possível ver até 12 barricadas, muitas com mais de três metros de altura, usando materiais de construção, lixo, ônibus e veículos da mídia corporativa. Como em muitas outros levantes populares, as barricadas baniram a presença do Estado da área e abriram espaço para que novas e inimagináveis relações sociais pudessem surgir e tomar forma. Placas no caminho indicavam “Por aqui para chegar à Comuna de Taksim”.

A região era tradicionalmente muito frequentada por pessoas de todas as idades, mas conhecida por ser uma zona boêmia. Chamou atenção o fato da violência urbana ter caído significativamente com a tomada da praça pelas pessoas e a expulsão da polícia de toda a região. Sem o Estado, a população experimentava a solidariedade, cooperação e luta contra a repressão, deixando relações nocivas e competitivas de lado. Mulheres, que compunham ao menos metade (se não a maioria) das pessoas presentes, ressaltaram a queda de violência sexista, abusos e assédios. Muito disso devido a sua participação, juntamente pessoas LGBTQIA+ e tantas outras, inclusive intervindo sobre gritos de guerra e pichações sexistas e homofóbicas.

Um curioso caso envolveu as torcidas organizadas de futebol, grupos feministas e o movimento LGBTQIA+, que se destacaram pela presença política e combatividade nas ruas. As torcidas dos maiores times de Istambul, historicamente arqui rivais, se uniram na luta pela resistência pela Praça Taksim, sendo responsáveis por muito da energia nos confrontos contra a polícia. No entanto, foram também responsáveis por muitos gritos e grafites com mensagens sexistas e homofóbicas que conhecemos bem no Brasil. Feministas e queers combateram isso de uma forma transformadora para as pessoas ali, gritando de volta respostas antipatriarcais e pichando sobre os grafites com xingamentos machistas.

Como resultado das intervenções e debates antissexistas, algumas torcidas marcharam até a frente de um escritório de uma das maiores organizações LGBTQIA+ que, assim como muitos movimentos e organizações de esquerda, ficava em um prédio próximo ao Parque Gezi. Ao chegarem, disseram que reavaliaram suas posturas e as mensagens sexistas e homofóbicas que vinham passando, tendo absorvido isso da sociedade e reproduzindo-as sem questionar seu conteúdo. Disseram que iriam tomar posturas diferentes contra isso e, para selar seu pedido de desculpas, deram de presente à organização um escudo da tropa de choque da polícia.

Esse episódio resume muito bem o contexto de convergência entre tantas pessoas, grupos, organizações e comunidades de diferentes trajetórias que nunca se imaginaram lado a lado numa barricada e que se uniam ali, fazendo de suas causas uma luta comum. Para defender esse espaço, era preciso estarem em contato e em constante questionamento e revisão de suas próprias atitudes. Até mesmo conflitos étnicos foram deixados de lado quando as pessoas se uniram contra o partido e Erdogan e sua polícia. Nos prédios ao redor da praça tomada era possível ver bandeiras da Turquia juntas de bandeiras do PKK, o Partido dos Trabalhadores Curdos, envolvida na luta revolucionária em Rojava, fronteira entre a Síria e Turquia. Alguns disseram ser esse o verdadeiro processo de paz entre povos turcos e o povo Curdo, que por século resiste ao racismo, à  xenofobia e têm sua cultura criminalizada e perseguida em todos os países da região.

O clima marcante dentro da comuna de Taksim era o bom humor, o otimismo e a positividade. Até mesmo as barricadas eram pichadas com frases engraçadas e piadas com figuras políticas ou até teóricos anarquistas. Manifestantes estavam sempre criando sátiras e memes a serem compartilhados na internet. O bom humor ajudava a manter a união e aliviar a tensão e afastar o medo da violência policial.

O espírito anticapitalista e antiautoritário era visível na cooperação envolvida em cada construção. Materiais corriam de mão em mão, por jovens, mulheres, homens, idosas. Muitas barricadas foram construídas assim. Ao seu lado, havia sempre uma tenda com água, pedras e até abrigo para vigilantes descansarem.

Um dos cordões em que pessoas passavam pedras para construção de barricadas.

Cooperações inusitadas apareciam, unindo pessoas de classes e papéis muito diferentes. Camelôs e ambulantes que trabalhavam na região passaram a adaptar seus negócios e muitos passaram a vender máscaras de gás. Em um momento, comerciantes e estabelecimentos não simpáticos à ocupação tinham de cooperar ou sofrer as consequências. O dono de uma loja de kebab, postou no Facebook sua indignação com os “cães que tomaram conta da região”. Minutos após seu post a loja foi reduzida a destroços. Até mesmo a Starbucks acabou dizendo à imprensa que apoiava a resistência e alegou que sempre iria dar suporte ao movimento. Logo depois foi atacada por não cumprir o que foi dito.

Curiosamente, muito apoio foi de fato dado por membros da burguesia, principalmente em infraestrutura. Empresários forneceram materiais para enfermarias improvisadas, uma empresa de telefonia levou veículos que funcionavam como antenas para receber e transmitir o sinal necessário para comunicação via e-mail, tweets e mensagens de celular. Em suas vans era possível ver escrito “estamos aqui para contribuir para sua comunicação” – talvez uma forma de evitar que fossem incendiadas. O motivo por trás desse apoio, no entanto, é compreensível se considerarmos que muitos liberais e progressistas nas elites viam no tradicionalismo islâmico de Erdogan uma ameaça a suas liberdades modernas. E viram no levante de Gezi uma oportunidade. Esse fato revelou uma certa falha das mobilizações em Gezi quanto a firmar uma força anticapitalista, mesmo com muitos grupos anticapitalistas envolvidos.

Sem líderes

O movimento na Turquia também foi um movimento sem lideranças personalizadas, sem movimentos sociais e organizações partidárias tradicionais à frente. Os poderosos se viam frustrados em não conseguir encontrar líderes ou representantes com quem negociar e sabotar o movimento. Essa ausência de lideranças desenvolveu uma estrutura de decisão coletiva que foi talvez sua principal força. Os objetivos extrapolaram a preservação do parque e denunciaram uma crise de representação. A organização da comuna era totalmente autônoma. Pequenos grupos de afinidade armaram as primeiras tendas para se fixar e logo depois a região foi tomada por tendas e barracas de quase todos os grupos de esquerda, sociais e ativistas da cidade. Tudo funcionava com base no apoio mútuo e pessoas que nunca imaginaram um mundo sem polícia se surpreendiam com o clima harmonioso nesse território livre das garras do Estado. Assim como em muitos acampamentos do movimento Occupy, lojas grátis, bibliotecas, espaços para oficinas, enfermarias, várias cozinhas, espaços multimídia para produzir e transmitir conteúdo e muito eventos culturas preenchiam e enriqueciam o espaço.

As assembleias gerais eram descentralizadas e funcionavam como uma continuação das reuniões e demandas dos grupos de afinidades menores. No palco central havia um microfone aberto onde as pessoas podiam subir para falar do que quisessem. O caráter de ocupar uma parte da cidade e torná-la aberta a quem quer que seja para se juntar e construir em conjunto novas relações com as pessoas e o espaço foi fundamental para dissociar a ação política e o “protagonismo” de uma identidade engessada, como “trabalhadores” ou “estudantes” – categorias e identidades simplesmente inacessíveis para crescente parcela da população no capitalismo – e abrir espaço para ação e a livre associação rebelde independentes do seu papel na máquina.

Como sempre, o partido do governo tentava fragmentar a união da comuna espalhando mensagens distorcidas para criar uma divisão entre os chamados “provocadores” (isto é, aqueles que revidam quando a polícia ataca) ou os grupos “marginais” (esquerdistas e radicais). O já conhecido esforço para criar uma minoria deslegitimada a ser reprimida, para então, suprimir todo o movimento. No entanto foi difícil para Erdogan manter seu esforço de polarizar a sociedade e voltar a opinião pública contra a resistência do Parque Gezi. Toda vizinhança dos bairros centrais viam pessoalmente a truculenta e desproporcional ação da polícia ao mesmo tempo que a internet era inundada de imagens e relatos da repressão que manchava a imagem do governo de Erdogan.

A falta de aceitação do movimento em apontar representantes e porta-vozes para a armadilha disfarçada de negociação com o governo foi seguida por uma ofensiva ainda mais violenta do Estado para retomar o Parque. Depois de quase tomar a praça num violento ataque no dia 11 de junho, o Estado atacou a praça novamente quando ninguém esperava. Durante um festival que contava com a presença de muitas crianças e idosos a polícia entrou destruindo tudo e atacando a todos. A cidade explodiu em raiva mais uma vez, vizinhos se juntaram à resistência e abrigavam pessoas em suas casa, xingando os policias das janelas dos prédios.

Um movimento tão novo e com pouca experiência em atuação nas ruas, repleto de jovens que se mobilizavam pela primeira vez teve dificuldades de lidar com suas multidões sob os ataques da polícia. Cada noite era uma grande tensão, pessoas usavam capacetes, máscaras, e escreviam o tipo sanguíneo na roupa. Sua determinação era incrível. Mas o mais importante é que toda uma geração pode se encontrar e começar a sonhar juntas o que podem alcançar juntas.

Veículos da mídia encontraram novos usos durante a ocupação da Praça Taksin.

Novas relações

Em cada horta ou tenda médica; cada debate sobre sexismo e homofobia; ou na construção de cada palco ou barricada as pessoas estavam vivendo relações totalmente diferente das do cotidiano comum em qualquer cidade moderna. E essas relações emergiam em cada ação como uma forma de resistência a um poder hegemônico econômico e político. Esse é o espírito fundamental da comuna como máquina de guerra. Fazer de cada gesto uma forma de cuidar de si e das outras pessoas frente a um poder que tenta eliminar qualquer sombra de desobediência. Não buscar na estrutura uma forma de se incluir, mas sim uma forma de destruir toda a estrutura. Isso é uma batalha que tem como palco cada indivíduo e seus semelhantes. Escalando até o conflito político ou físico entre as comunas e os agentes do Império pelos territórios que queremos proteger.

Tão inesperado quanto, o levante no Brasil também foi marcado por violência policial e o uso indiscriminado dessas armas ditas “não-letais” que matam e mutilam. Demonstrações de solidariedade e apoio entre os povos de ambos os países circulavam pela internet. É difícil pontuar exatamente como e em que medida um levante influenciou o outro, mas podemos traçar alguns paralelos mais óbvios, inclusive com movimentos anteriores.

A resistência no Parque Gezi e na Praça Taksim empregaram amplamente formas de organização e estruturas semelhantes ao do movimento Occupy nos EUA e de ocupações de praças na Europa, ou Ocupa Sampa de 2012. As formas de divulgação e organização política são frequentemente comparadas às da primavera árabe de 2011. A inegável influência imediata do levante turco sobre as lutas de junho no Brasil foram visíveis tanto com manifestantes compartilhando maneiras de neutralizar bombas de gás made in Brazil quanto nas frases e gritos de guerra adaptados que lá diziam não se tratar de “apenas por algumas árvores” mas sim uma revolta contra um governo autoritário e o próprio sistema democrático, aqui transformado na balela do “não são só 20 centavos”. O problema está na forma como isso foi importado para o Brasil, atendendo à pautas direitistas e da embriagada classe média branca. Isso levou às mobilizações o risco de perder totalmente o foco da luta contra o aumento da passagem para pautas genéricas anticorrupção, contra o PT e outras tradicionais causas inofensivas e úteis para a elite.

Na Turquia a ampliação do discurso que motivava os confrontos ampliava a luta contra um governo autoritário, contra a democracia representativa, contra as forças policiais em si, contra o projeto urbanístico e juntava as pessoas para ações em favor de ocupar a cidade e torná-la um espaço gerido pelo e para o povo; enquanto isso, no Brasil, radicais, anarquistas e autonomistas não conseguiram ampliar a crítica ou difundir de forma mais ampla uma radicalidade além do discurso do “acesso à cidade” e correram o risco de ver a luta se tornar um caldeirão de causas inviáveis a curto prazo para a classe média brincar de ativismo no Instagram e a direita espreitasse o momento para inserir suas pautas. A radicalidade ficou por conta da ação meio desorientada de Black Blocs, durante e depois de junho. Enquanto o MPL lutou para manter a pauta da luta contra o aumento diante das explosão de temas genéricos e sem avanços possíveis no curto prazo. O que estrategicamente foi interessante para barrar imediatamente o aumento, beneficiando os bolsos de todos nós e abrir espaços para as multidões mostrarem que podem atingir seus objetivos se aceitarem assumir alguns riscos.

Da Turquia ao Brasil, da Grécia ao Chile, de Chiapas a Rojava, o trabalho, a moradia, o espetáculo e a miséria de nossas vidas serão as mesmas sob o Capitalismo. Cabe a todas as pessoas que querem organizar a revolta que destrua essa forma de vida intercambiar as lições de luta e os riscos que envolvem tomar as ruas quando novos atores chegam todos ao mesmo tempo disputando pautas e a dianteira dos chamados. Do contrário, corremos riscos semelhantes aos de camaradas anarquistas na Ucrânia que viram as ruas sendo tomadas por grupos conservadores e fascistas, enfrentando o Estado e seu aparato com as mesmas ferramentas que grupos libertários e radicais empregam em suas lutas, visando objetivos que desde o início já eram muito duvidosos. Ou, como vimos após os atos da extrema-direita de 2015 no Brasil, ferramentas desenvolvidas para lutas radicais podem facilmente ser apropriadas por reacionários.

Chamados serão feitos. Cabe principalmente a quem responder fazê-lo com o poder e as intenções necessárias para ampliar a revolta para caber nela tudo o realmente importa.


Mais sobre o tema:

QUEM TEM MEDO DE JUNHO 2013? – ciclo de eventos e debates

A maior revolta popular do país vista a partir de sua radicalidade e potência de transformação hoje Junho de 2013 no Brasil foi um acontecimento intempestivo.

Nos dias de revolta que varreram o Brasil naquele junho, governos e suas polícias, jornalistas e seus ventríloquos universitários, partidos de esquerda e de direita com seus respectivos representantes, assim como as organizações de direitos humanos e seus ativistas, se apressaram em isolar os vândalos dos manifestantes pacíficos. O objetivo político era associá-los à anarquia entendida como desordem para entregar militantes e manifestantes para a violência brutal das Tropas de Choque e enfiá-los em bancos de delegacias e/ou tribunais. Hoje, alguns destes agentes políticos lamentam que a extrema-direita tomou as ruas e repetem, como autômatos, que a democracia está em crise e ameaçada pelo fascismo. Muitos colocam a culpa dessa situação ou o início dela, nas revoltas de junho de 2013. Querem criminalizar as revoltas e silenciar a potência de transformação que ela traz. Como é comum na história política moderna, apontam para a anarquia como um monstro político a ser dominado ou eliminado.

Esse ciclo de eventos, com palestras, conversas e debates, visam falar de um outro junho de 2013. Trata-se de uma série não unificada, mas articulada, que ocorrerá durante o mês de junho de 2023 sobre a atualidade das insurreições de junho de 2013 nas cidades de Porto Alegre, Rio de Janeiro, Osasco, São Paulo e Belo Horizonte. Cada coletivo local fará as conversas e exibição de vídeos à sua maneira, mas que evitando o tom de efeméride para focar na singularidade e atualidade do acontecimento junho de 2013, destacando a revolta e suas conexões com outras mobilizações que estavam a acontecendo no planeta, os movimentos envolvidos e sua afirmação de autonomia e diferença com os movimentos sociais até aquele momento. Estamos interessados nos efeitos das insurreições de junho de 2013 ainda presentes hoje, tanto em termos de luta e características dos movimentos, quanto em termos de reação da ordem, com mudanças nas formas de repressão e controle e articulações da elite política para capturar insatisfações em processos institucionais, eleitorais e partidários.

Trata-se não de uma leitura final e totalizante do acontecimento, mas uma leitura libertária que busca mover a revolta no presente, soprando a brasa ainda acesa da labareda que varreu o Brasil há 10 anos.

DATAS: 
  • Porto Alegre: 19 de maio, no ESPAÇO.
  • Rio de Janeiro: dias 1, 6, 12 e 20 de junho, na Aldeia Maracanã, UERJ, ADEP & Cinelândia
  • Osasco: 14 a 16 de junho  na UNIFESP – Campus Osasco
  • São Paulo:  17 de junho na Praça do Ciclista (na concentração da Marcha da Maconha).
  • Belo Horizonte: 24 de junho na Kasa Invisível.

ORGANIZE TAMBÉM EM SUA CIDADE:

Muitos materiais foram produzidos por quem esteve nas ruas do lado dos debaixo e podem servir de introdução para debates e estudos. Abaixo, reunimos alguns desses materiais para exibição de vídeos e circulação de textos:
“Por que 2013 agora?”, vídeo por  Sonho, com colaboração dos coletivos Antimídia e Facção Fictícia.


Mais sobre o tema: