Grandes Fazendas produzem Grandes Gripes – Trecho em Zine + Entrevista com Rob Wallace

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Apresentamos uma versão em zine para leitura e impressão do primeiro capítulo do livro “Grandes Fazendas Produzem Grandes Gripes: Expedições Sobre a Influenza, Agronegócio e Ciência da Natureza“. Atualmente em processo de tradução para o português, é um livro de 2016, escrito pelo cientista e socialista Rob Wallace, que analisa as terríveis relações entre expansão do agronegócio no capitalismo e o surgimento de epidemias como SARS, Zika, Ebola, H1N1, H5N1 e muitas outras doenças infecciosas.

Robert Wallace é biólogo evolucionista, filogeógrafo e uma das principais fontes citadas pelo já célebre artigo Contágio Social – Coronavírus, China, Capitalismo Tardio e o ‘Mundo Natural’, dos comunistas chineses do Coletivo Chuang, que apresentam críticas contundentes ao capitalismo de estado e extremamente autoritário da China, ao capitalismo ocidental e as narrativas racistas e superficiais sobre a pandemia — na nossa opinião, uma das melhores análises até o presente momento sobre a pandemia em curso.

A seguir, trazemos também uma tradução da entrevista com Rob Wallace publicada em março na revista alemã em Marx21, sobre o Covid-19 e sua relação com o capitalismo.


O coronavírus  mantém o mundo num estado de choque. Mas, em vez de combater as causas estruturais da pandemia, os Governos estão se concentrando  em medidas de emergência. Uma conversa com Robert Wallace (Biólogo Evolucionista) sobre os perigos do Covid-19, a responsabilidade do agronegócio e as soluções sustentáveis para combater as doenças infecciosas


Pergunta: Qual é o perigo do novo coronavírus?

Robert Wallace: Depende em que momento  se encontra o surto local de Covid-19: no inicio, no momento de pico, no final? Qual é a resposta da sua região em matéria de saúde pública? Quais são os seus dados demográficos? Qual é a sua idade? Está imunossuprimido? como é a sua saúde geral? Para perguntar sobre uma possibilidade não diagnosticável, a sua imunogenética, a genética intrínseca à sua resposta imunitária, se ajusta ou não ao vírus?

Então todo este barulho  sobre o vírus é apenas tática para gerar medo?

Não, certamente que não. A nível da populacional, o Covid-19 registrava, no início do surto de Wuhan, uma taxa de mortalidade de 2 a 4%. Fora de Wuhan, a taxa de mortalidade parece cair  para mais ou menos 1% ou ainda menos, mas também parece disparar em pontos aqui e ali, incluindo em locais na Itália e nos Estados Unidos. O seu alcance não parece grande em comparação com, digamos, a 10% da SARS , a gripe de 1918 com  5-20%, a “gripe aviária” H5N1 com 60%, ou em alguns pontos o Ebola com 90%. Mas excede certamente os 0,1% de taxa de mortalidade da gripe sazonal. O perigo, porém, não é apenas uma questão de taxa de mortalidade. Temos de lidar com aquilo a que se chama taxa de penetração ou de ataque comunitário: quanto da população global é atingida pelo surto.

Pode ser mais específico?

A rede global de viagens está em uma conectividade recorde. Sem vacinas ou antivirais específicos para o coronavírus, nem, neste momento, qualquer imunidade grupal ao vírus, mesmo uma cepa com uma mortalidade de apenas 1% pode representar um perigo considerável. Com um período de incubação de até duas semanas e provas crescentes de alguma transmissão antes da doença – antes de sabermos que as pessoas estão infectadas – poucos locais estariam livres de infecção. Se, por exemplo, o Covid-19 registrar 1% de mortalidade no decurso da infecção de quatro mil milhões de pessoas, são 40 milhões de mortos. Uma pequena parte de um grande número pode ser também um grande número.

Estes são números assustadores para um patógeno ostensivamente menos que virulento.

Definitivamente, e estamos apenas no início do surto. É importante compreender que muitas novas infecções mudam ao longo do curso das epidemias. A infecciosidade, a virulência, ou ambas, podem atenuar. Por outro lado, outros surtos aumentam em termos de virulência. A primeira onda da pandemia de gripe, na Primavera de 1918, foram uma infecção relativamente leve. Foi a segunda e terceira ondas, no Inverno e em 1919, que mataram milhões de pessoas.

Mas os céticos da pandemia argumentam que muito menos doentes   foram infectados e mortos pelo coronavírus do que pela gripe sazonal típica. O que pensa sobre isso?

Seria o primeiro a celebrar se este surto se revelasse um fracasso. Mas estes esforços para considerar o Covid-19 como um possível perigo, citando outras doenças mortais, especialmente a gripe, é um dispositivo retórico para apontar  a preocupação com coronavírus como algo desproporcional.

Então, a comparação com a gripe sazonal é capenga…

Faz pouco sentido comparar dois agentes patogênicos em diferentes partes das suas curvas epidemiológicas. Sim, a gripe sazonal infecta muitos milhões em todo o mundo, matando, segundo estimativas da OMS, até 650.000 pessoas por ano. A Covid-19, porém, está apenas iniciando a sua viagem epidemiológica. E, ao contrário da gripe, não dispomos nem de vacinas, nem de imunidade de grupo para retardar a infecção e proteger as populações mais vulneráveis.

Mesmo que a comparação seja enganadora, ambas as doenças são causadas por vírus de um grupo específico, os vírus RNA. Ambas podem causar doenças. Ambas afetam a região da boca e da garganta e, por vezes, também os pulmões. Ambas são bastante contagiosas.

Estas são semelhanças superficiais que ignoram uma parte crítica da comparação entre dois agentes patogênicos. Sabemos muito sobre as dinâmicas da gripe. Sabemos muito pouco sobre a Covid-19. Estão impregnadas de incógnitas. Na verdade, há muito sobre a Covid-19 que era mesmo indecifrável até o surto se manifestar plenamente. Ao mesmo tempo, é importante compreender que não se trata de Covid-19 versus gripe. Trata-se do Covid-19 e da gripe. O surgimento de infecções múltiplas capazes de se tornarem pandêmicas, atacando populações em combos, deve ser a preocupação principal e central.

Há vários anos você  pesquisa as epidemias e as suas causas. O seu livro “Big Farms Make Big Flu” tenta estabelecer essas ligações entre as práticas agrícolas industriais, a agricultura biológica e a epidemiologia viral. Quais são seus insights ?

O perigo real de cada novo surto é o fracasso – ou melhor dizendo, a recusa conveniente de compreender que cada novo Covid-19 não é um incidente isolado. O aumento da ocorrência de vírus está intimamente ligado à produção alimentar e à rentabilidade das empresas multinacionais. Quem pretender compreender por que razão os vírus se estão a tornar mais perigosos deve investigar o modelo industrial da agricultura e, mais especificamente, a produção animal. Neste momento, poucos governos, e poucos cientistas, estão dispostos a fazê-lo. Muito pelo contrário.

Quando surgem os novos surtos, os governos, a mídia e mesmo a maioria dos estabelecimentos médicos estão tão concentrados em cada emergência em separado que descartam as causas estruturais que estão conduzindo múltiplos agentes patogênicos marginalizados para uma súbita celebridade global, um após o outro.

De quem é a culpa?

Eu disse agricultura industrial, mas há um âmbito mais vasto. O capital é a ponta de lança da invasão de terras das florestas primárias e das terras agrícolas de pequenos proprietários em todo o mundo. Estes investimentos impulsionam o desmatamento e o desenvolvimento que conduzem ao aparecimento de doenças. A diversidade funcional e a complexidade que estas enormes extensões de terra representam estão  sendo racionalizadas de tal forma que agentes patogênicos anteriormente encaixotados estão a alastrar ao gado local e às comunidades humanas. Em suma, os centros capitais, locais como Londres, Nova York e Hong Kong, devem ser considerados os nossos principais focos de doença.

Para que doenças é este o caso?

Neste momento, não existem agentes patogênicos isentos de capital. Mesmo os mais remotos são afetados, se bem que de forma distante. O Ebola, a Zika, os coronavírus, a febre amarela, uma variedade de influências aviárias e a peste suína africana  contam-se entre os muitos agentes patogênicos que saem das zonas mais remotas do interior para os circuitos peri-urbanos, as capitais regionais e, por fim, para a rede global de viagens. Desde morcegos frugívoros no Congo até a morte de banhistas de Miami, dentro de algumas semanas.

Qual é o papel das empresas multinacionais neste processo?

Neste momento, o Planeta Terra é, em grande parte, o Planeta Fazenda, tanto na biomassa como nas terras utilizadas. O agronegócio tem como objetivo monopolizar o mercado de alimentos. A quase totalidade do projeto neoliberal está organizada em torno do apoio aos esforços das empresas sediadas nos países industrializados mais avançados para roubar a terra e os recursos dos países mais fracos. Como resultado, muitos desses novos agentes patogênicos, anteriormente controlados por ecologias florestais há muito evoluídas, estão sendo libertados, ameaçando o mundo inteiro.

Que efeitos têm os métodos de produção do agronegócio sobre este aspecto?

A agricultura direcionada  pelo capital, que substitui mais ecologias naturais, oferece o meio exato pelo qual os agentes patogênicos podem evoluir os fenótipos mais virulentos e infecciosos. Não se conseguiria conceber um sistema melhor para criar doenças mortais.

Como assim?

 O cultivo de monoculturas genéticas de animais domésticos retira a proteção imunológica  que poderia estar disponível para retardar a transmissão. As dimensões e densidades maiores da população facilitam taxas maiores de transmissão. Estas condições de aglomeração diminuem a resposta imunitária. O elevado rendimento, uma parte de qualquer produção industrial, proporciona um fornecimento continuamente renovado de produtos sensíveis, o combustível para a evolução da virulência. Em outras palavras, o agronegócio está tão concentrado nos lucros que a seleção de  um vírus que pode matar mil milhões de pessoas é tratada como um risco aceitável.

O quê!?

Estas empresas podem simplesmente externalizar os custos das suas operações epidemiologicamente perigosas sobre todos os outros. Desde os próprios animais até aos consumidores, trabalhadores agrícolas, ambientes locais e governos em todas as jurisdições. Os prejuízos são tão elevados que, se devolvêssemos esses custos aos balanços das empresas, o agronegócio, tal como o conhecemos, acabaria para sempre. Nenhuma empresa poderia suportar os custos dos danos que impõe.

Em muitos meios de comunicação social afirma-se que o ponto de partida do coronavírus foi um “mercado de alimentos exóticos” em Wuhan. Esta descrição é verdadeira?

Sim e não. Existem pistas espaciais a favor desta noção. O rastreio de contatos relacionados com infecções remonta ao Hunan Wholesale Sea Food Market, em Wuhan, onde animais selvagens eram vendidos. A amostragem ambiental parece indicar a extremidade oeste do mercado onde os animais selvagens eram mantidos.

Mas a que distância e até que ponto devemos investigar? Quando é que a emergência começou realmente? O enfoque sobre o mercado não leva em conta as origens da agricultura selvagem no interior e a sua crescente capitalização. A nível global, e na China, os alimentos selvagens estão a tornar-se mais formalizados como um setor econômico. Mas a sua relação com a agricultura industrial vai além da mera partilha dos mesmos sacos de dinheiro. À medida que a produção industrial – ovo, aves e similares – se expande para a floresta primária, exerce pressão sobre os operadores de alimentos selvagens para que estes se alimentem ainda mais na floresta, aumentando a interface com novos agentes patogênicos, incluindo o Covid-19.

O Covid-19 não é o primeiro vírus a desenvolver-se na China que o governo tentou encobrir.

Sim, mas não se trata, porém, de um excepcionalismo chinês. Os EUA e a Europa também serviram de pontos zero para novas gripes, recentemente o H5N2 e o H5Nx, e as suas multinacionais e aliados neocoloniais impulsionaram o surgimento do Ebola na África Ocidental e do Zika no Brasil. Funcionários de saúde pública dos EUA protegeram  o agronegócio durante os surtos de H1N1 (2009) e H5N2.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou uma “emergência sanitária de interesse internacional”. Será esta medida correta?

Sim. O perigo de um agente patogênico deste tipo é o de as autoridades sanitárias não controlarem a distribuição estatística dos riscos. Não temos ideia de como o agente patogênico pode reagir. Passamos de um surto num mercado para infecções espalhadas pelo mundo numa questão de semanas. O agente patogênico pode simplesmente esgotar-se. Isso seria ótimo. Mas nós não sabemos. Uma preparação melhor melhoraria as chances de reduzir a velocidade de difusão do agente patogênico.

A declaração da OMS também faz parte daquilo a que eu chamo teatro da pandemia. As organizações internacionais morreram face à inação. Vem-me à mente a Liga das Nações. O grupo de organizações da ONU está sempre preocupado com a sua relevância, poder e financiamento. Mas este tipo de atuação também pode convergir para a preparação e prevenção de que o mundo precisa para romper a cadeia de transmissão do Covid-19.

A reestruturação neoliberal do sistema de saúde agravou tanto a investigação como o tratamento geral dos doentes, por exemplo, nos hospitais. Que diferença poderia fazer um sistema de saúde mais bem financiado para combater o vírus?

Há a terrível mas contagiosa história do empregado da empresa de aparelhos médicos de Miami que, ao regressar da China com sintomas semelhantes aos da gripe, fez a coisa certa pela sua família e comunidade e exigiu um exame hospitalar local para o Covid-19. Ele temia que a sua opção mínima no Obamacare não cobrisse os testes. Ele estava certo. De repente, ele estava com uma conta de  3270 dólares . Uma opção americana poderia ser uma ordem de emergência que estipula que, durante um surto pandêmico, todas as contas médicas pendentes relacionadas com os testes de infecção e de tratamento após um teste positivo seriam pagas pelo governo federal. Queremos encorajar as pessoas a procurar ajuda, afinal de contas, em vez de se esconderem e infectarem outras pessoas – porque não podem pagar o tratamento. A solução óbvia é um serviço nacional de saúde – dotado de pessoal e equipamento adequados para fazer face a emergências de dimensão comunitária – para que um problema tão ridículo como o de desencorajar a cooperação comunitária nunca surja.

Assim que o vírus é descoberto num país, os governos de todos os países reagem com medidas autoritárias e punitivas, tais como a quarentena obrigatória de áreas inteiras de terra e cidades. Justificam-se medidas tão drásticas?

A utilização de um surto para testar o mais recente controle autocrático após o surto é um capitalismo de catástrofe que descarrilou. Em termos de saúde pública, eu erraria do lado da confiança e da compaixão, que são importantes variáveis epidemiológicas. Sem qualquer delas, as autoridades perdem o apoio das suas populações. O sentido de solidariedade e de respeito comum é uma parte essencial da cooperação de que necessitamos para, em conjunto, sobrevivermos a tais ameaças. As autoquarentenas com o devido apoio de brigadas de bairro treinadas, caminhões de abastecimento de alimentos que vão de porta em porta, libertação do trabalho e seguro desemprego – podem suscitar esse tipo de cooperação, de que estamos todos juntos nisto.

Como devem saber, na Alemanha, com a AfD, temos um partido nazista de fato com 94 cadeiras no parlamento. A extrema-direita nazista e outros grupos associados aos políticos da AfD utilizam a crise do coronavírus para a sua mobilização. Espalharam relatos (falsos) sobre o vírus e exigem mais medidas autoritárias por parte do governo: Restrição dos voos e à entrada de imigrantes, fechamento de fronteiras e quarentena forçada…

A proibição de viagens e o fechamento de fronteiras são exigências com as quais a direita radical quer racializar o que são hoje doenças globais. Isto é, evidentemente, um absurdo. Neste momento, dado que o vírus já está a caminho de se espalhar por todo o lado, o mais sensato é trabalhar no desenvolvimento do tipo de resiliência de saúde pública em que não importa quem apareça com uma infecção, temos os meios para as tratar e curar. Evidentemente, deixar de roubar as terras das pessoas no estrangeiro e de provocar os êxodos, em primeiro lugar, e podemos evitar que os agentes patogênicos surjam em primeiro lugar.

O que seria uma mudança sustentável?

A fim de reduzir o aparecimento de novos surtos de vírus, a produção alimentar tem de mudar radicalmente. A autonomia dos agricultores e um setor público forte podem refrear as ratazanas ambientais e as infecções descontroladas Introduzir variedades de efetivos e de culturas – e uma renovação estratégica – tanto a nível da exploração como a nível regional. Permitir que os animais destinados à alimentação se reproduzam no local para transmitir as imunidades testadas. Ligar apenas a produção à circulação. Subsidiar preços e programas de compras que apoiem a produção agroecológica. Defender estas experiências tanto das compulsões que a economia neoliberal impõe aos indivíduos e às comunidades como da ameaça da repressão do Estado liderada pelo capital.

O que os socialistas devem exigir perante a dinâmica crescente dos surtos de doenças?

O agronegócio como modo de reprodução social tem de acabar definitivamente, mesmo que não seja por uma questão de saúde pública. A produção altamente capitalizada de alimentos depende de práticas que põem em perigo toda a humanidade, neste caso ajudando a desencadear uma nova pandemia mortal. Devemos exigir que os sistemas alimentares sejam socializados de forma a impedir que surjam agentes patogênicos tão perigosos. Isso exigirá a reintegração da produção alimentar nas necessidades das comunidades rurais, em primeiro lugar. Isso exigirá práticas agroecológicas que protejam o ambiente e os agricultores à medida que cultivam os nossos alimentos. Em termos gerais, temos de curar as fissuras metabólicas que separam as nossas ecologias das nossas economias. Em suma, temos um planeta a ganhar.

A Luta é Pela Vida – parte II

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Esta é a segunda parte da coleção de textos anarquistas sobre pandemia, capitalismo e a luta pela vida. Assim como no primeiro tomo, os textos aqui reunidos foram escritos por grupos, associações e pessoas presentes em diferentes territórios. Contudo, como a pandemia teve maior expansão inicial nas terras conhecidas como China, Europa e América do Norte, o tomo UM focou nos estudos produzidos nessas localidades. Com o avanço do novo coronavírus para o sul, anarquistas dessas regiões escreveram análises, narraram acontecimentos e experimentaram propor ações coletivas a serem levadas a cabo por diferentes grupos libertários, “não como um programa, mas como uma conspiração”.

Os textos aqui compilados tratam dos efeitos da pandemia a partir de diferentes pontos. Entre eles estão o modo pelo qual os Estados e as sociedades nacionais lançam mão mais uma vez da ideia de inimigo comum para se fortalecer e validar suas ações, independentemente de quanto sangue escorre pelas mãos de seus policiais, militares e políticos. A metáfora militar de guerra ao vírus induz a noção de que as principais forças que devem ser mobilizadas são as de segurança, polícias e exércitos, para combater tal inimigo. Inimigo este que é invisível, disseminado por corpos de pessoas. Logo, com a mobilização estatal de combater o vírus, todas as pessoas se tornam um potencial inimigo, passíveis de serem presas, espancadas e assassinadas em nome da salvação da espécie, da vida biológica. Mas sabemos: nem todo sabão e água do planeta conseguirão limpar o sangue que escorre das fardas.

Com o argumento de combater a pandemia, os Estados buscam defender a vida biológica, a humanidade, que ao universalizar nossas existências, cria uma abstração sobre nossos corpos e, com isso, expandem o controle em meios abertos e fechados. Aplicam leis e decretos, empregam a polícia e as forças armadas para restringir a circulação das pessoas. Junto ao capitalismo, que é indissociável do Estado, tentam manter a sensação de uma exceção temporária, de que este mundo não está caindo sobre suas cabeças, que tudo voltará ao normal, que tudo vai passar. Contudo, o que é esse “normal”? Uma vida de miséria, de exploração, de submissão, de extermínio. Os governantes, estatais e privados, mostram com isso o quanto temem a revolta das pessoas exploradas, insubmissas e alvos de seu extermínio.

Por isso, anarquistas em diferentes partes do planeta, sobretudo ao sul, explicitam que “não queremos voltar ao normal, pois o problema é a normalidade!”. Nos governam pelo medo e por meio de ameaças. Eles nos temem e sabem que somos uma ameaça a sua normalidade. Medo da morte, medo de que este mundo de produção capitalista, onde vamos da casa para o emprego e do emprego para casa (quando se tem um emprego e uma casa, obviamente). Num fluxo interminável de exploração, de mortificação de nossas vidas. Entendemos que nós não vivemos para servir a ninguém, nem ao Estado, nem às empresas, nem a Deus, nem ao patrão, nem ao marido; a ninguém! Não queremos mais uma vida de miséria, onde nossa existência se restrinja ao biológico, não queremos mais sermos governadas pelo medo, porque não queremos mais ser governados! Não aceitamos suas ameaças!

Compas da região uruguaia explicitam como o isolamento obrigatório acaba também por silenciar uma série de violências por sobre o corpo de mulheres e crianças feitas principalmente por pais e maridos, e o efeito do fato de existirem poucas iniciativas de (auto)defesa dessas pessoas expostas a este tipo de situação. O pouco estímulo às práticas de apoio mútuo ou, em muitos casos, o desconhecimento de tais iniciativas, acaba por levar algumas dessas pessoas que foram violentadas a recorrerem a uma segunda violação: a polícia, exames de corpo de delito (que muitas vezes funcionam como um segundo estupro), inquérito, delações etc., alimentando o Estado e o seu braço armado.

Além disso, nesta publicação, são retomados momentos históricos para repensarmos as práticas de resistência frente à atual situação, como as greves de aluguéis, fortalecimento de laços de interação, grupos de afinidade, expropriações, ocupações, entre outros.

Por fim, saudamos as iniciativas individuais e coletivas de autocuidado para enfrentarmos a pandemia, para nos fortalecermos, não porque tememos o fim deste mundo, mas para acelerar sua queda, sua ruína. Quando as iniciativas têm como base a ação direta, o antiautoritarismo, o Estado perde, pouco a pouco. Seu monopólio rui nas mãos de cada pessoa, que junto de companheiras, toma sua vida nas próprias mãos.

Que esse momento nos sirva para começarmos a pensar em questões pouco debatidas entre anarquistas, como práticas de saúde antiautoritária e autocuidado, vinculadas diretamente ao apoio mútuo. Como afirma um texto anônimo publicado em Buenos Aires, “que a quarentena fortaleça nossa ânsia de liberdade e reafirme nossa negação de toda autoridade!”

Saúde e liberdade!