artigo: LUTAR SERÁ CRIME

Manifestantes desprotegidxs atrás de uma ideia - São Paulo, 14 de janeiro de 2015
Manifestantes desprotegidxs atrás de uma ideia – São Paulo, 14 de janeiro

Nas últimas semanas, desde o ataque premeditado e covarde da Polícia Militar de São Paulo contra uma manifestação inteira no dia 12 de janeiro, surgiu um grande debate sobre a violência policial, a necessidade do ataque e da polêmica em torno da exigência de que os movimentos avisem com antecedência o trajeto percorrido em um protesto.

Como já foi explicado, a Polícia Militar não pode usar a Constituição da ditadura democrática de 1988 para justificar sua exigência ou o ataque a um protesto que descumpre uma regra não existente. O texto exige apenas que seja divulgado o local de encontro e diz que nenhuma reunião deve ser criminalizada de antemão. Obviamente, o local de encontro é sempre divulgado abertamente na internet ou cartazes.

Atacando o ato quando esse tenta seguir livremente um caminho escolhido, a Polícia está atacando os direitos da Democracia que diz defender. Outro ponto é que a Polícia também descumpriu diante de centenas de câmeras o próprio  manual “anti-distúrbio” da corporação. Como atirar balas de borracha, jogar bombas e atacar com cassetetes pessoas sem aviso, sem ser atacada primeiro e sem deixar uma rota de fuga para que as vias sejam de fato liberadas. Não houve tentativa de “liberar” a via, mas sim de encurralar ferir o maior número de pessoas.

Mesmo com as imagens inundando a internet e matérias de jornais corporativos denunciando os erros e violações da Polícia e do Estado que comandou suas ações, o Secretário da Segurança disse que a PM agiu dentro da legalidade e que a “população” em geral aprovou a ação policial que evitou que “maiores prejuízos” acontecessem. Para o ato seguinte, prometeu seguir o mesmo procedimento. E para o ato do dia 14 de janeiro o MPL-SP tentou inovar com dois pontos diferentes para concentração e em ceder e divulgar previamente o trajeto dos dois.

Não cabe aqui exigir punição aos policiais ou demandar que forças armadas, capangas mercenários e assassinos, andem na linha e respeitem um estado democrático. Nem mesmo nos iludir que algum dia o Estado, as classes que o controlam e governantes individualmente ajam dentro das leis que criam.

A polícia e o Estado como um todo jamais se preocuparam em seguir seus próprios códigos ou leis. Sua função não é manter nenhuma liberdade ou “direito” dos governados, e sim o controle e a autoridade por quaisquer meios necessários. Isso inclui suspender seus direito de expressão, ir e vir, de moradia e até violar seu corpo e sua vida através da tortura ou assassinato.

Essa sempre foi a realidade brasileira e será em todo mundo enquanto caminhamos para um estado de exceção permanente. Não esperamos nada das leis ou da Constituição e nem nos espantamos ao ver os “defensores da lei” agindo fora das suas próprias regras. É assim que eles ganham a vida e assim que mantêm o controle. Apenas nos resta saber sobreviver e aumentar nosso poder coletivo em meio ao estado de sítio e de crise.

Velhos slogans não vão nos ajudar

Após longos momentos de lutas e de criminalização dos movimentos sociais, suspensão do direito de greve e de protesto, prisões arbitrárias e montagens, a reação tem sido reproduzir a ideia de que nenhuma luta social deve ser considerada ilegal. “Lutar não é crime” é um dos slogans mais presentes em faixas, cartazes e pixações nas ruas nos últimos três anos. Mas, se paramos para pensar, faria mesmo algum sentido querer o fim das injustiças do Capitalismo, a destruição do patriarcado, da supremacia branca e toda forma de racismo, o fim da propriedade privada,  a abolição do Estado, da Democracia, das fronteiras, e toda forma de controle, opressão e hierarquia, e ainda assim querer que isso não seja criminalizado?

Promessas para o furuto: se não for crime, ao menos vai doer um bocado.
Promessas para o futuro: se não for crime, ao menos vai doer um bocado.

É óbvio que um sistema baseado em tantas injustiças precisa de formas de tornar impossível ou ilegal qualquer forma de lutar pelo seu fim. Não faz sentido acreditar que vamos dar fim a um sistema, ou mesmo tentar viver de outra forma dentro de seu território, sem que isso seja considerado um crime gravíssimo ou que uma forte repressão recaia sobre nós. Os meios democráticos, legais e constitucionais apenas permitem que tenhamos as conquistas que mantenham o sistema funcionando, adaptando-o às novas demandas e aliviando tensões. Mas escravos com mais conforto e direitos não são menos escravos.

Direitos não vão nos proteger

As mudanças nos aparatos repressivos, policiais e militares introduzidas com a passagem pela Copa do Mundo em 2014 só confirma a tese de que mesmo os precários direitos que temos estão sujeitos a serem suspensos se assim desejarem os líderes das corporações e dos Estados. Entendemos que há motivos sérios e importantes quando gritamos que “lutar não deve ser crime”, pois não há porque aceitar passivamente a perda dos poucos direitos conquistados, como a greve, ou que ainda estão distantes para milhões de pessoas, como a moradia. Mas precisamos construir perspectivas que nos mantenham de pé mesmo diante da possibilidade de um futuro ainda pior, onde de fato se organizar e lutar por mudanças significativas sejam crimes – com foi há poucas décadas nos períodos obviamente ditatoriais. Precisamos de formas de pensar e agir independentemente do que permitem as leis e os direitos que nos são concedidos. Muitas das justificativas que damos para nossas lutas são dependentes de uma moral burguesa e estatal, que sugere que devemos “constituir” uma nova ordem fundada na mesma lógica de “legitimidade” que a atual.

A narrativa do poder constituinte remete a valores abstratos e inatingíveis semelhantes ao direito divino, ou a soberania da constituição. Quem reclamar ser o defensor desses valores, esta reclamando legitimidade maior para reinar sobre todas as outras. Um valor exterior ao qual subjugamos a nós mesmos. Como um sacerdote cuja palavra revelada conecta meros corpos mortais à verdade divina. Usar o mesmo pensamento, substituindo “vontade divina” ou “constituição” pela “vontade” do povo, apenas serviu para justificar a autoridade daqueles que tomaram o poder dizendo que iriam nos libertar da tirania do sistema anterior. O que queremos é apenas o que queremos porque nos interessa ou é compatível com nossa forma de vida e vontade de auto-determinação. Formas de vida diferentes surgem. Formas inimigas vão surgir e estarão em conflito. Privilegiar uma como detentora da única legitimidade constituída e projetá-la na vontade popular cria a soberania e a supremacia. Geralmente em favor de quem a criou. Se queremos um mundo onde caibam vários mundos, não podemos depender de uma narrativa que forneça a mesma legitimidade para todos os grupos humanos enquanto justifica uma falsa união ou uniformidade.

Podemos usar nossa capacidade de compreender a realidade para criar teorias e traçar objetivos que nos sirvam como uma máquina de guerra contra a ordem vigente. Não usamos de teorias para nossas estratégias. Nossas teorias são parte da estratégia. Precisamos daquelas que nos façam potentes independentemente de ser crime, inconstitucional, ilegítimo, moral ou qualquer outra forma de regulamentação estatal.

Quem quer se acostumar com as novas paisagens?
Quem já se acostumou com as novas paisagens?

Habitar a crise, sobreviver ao estado de exceção

Esse sistema não vai durar pra sempre. Crise econômica e política já são formas permanentes de se governar há muito tempo e fazem parte da gestão da sociedade, assim como a corrupção. Mas agora, o fim da linha parece sempre estar mais próximo. A crise hídrica que afeta o Sudeste do país começa a se estender para as regiões vizinhas e especialistas alertam para o fim do cerrado, o principal bioma que envolve o a região que é também onde ficam as maiores cidades e polos industriais do país. E as previsões variam das mais brandas – desemprego, doenças –, até as mais alarmantes – êxodo em massa, conflitos violentos, epidemias. Oficiais do Exército discutem o que fazer em caso de rebeliões se espalharem devido à falta de água, enquanto soldados fazem treinamento simulando ocupação das estações de tratamento de água de São Paulo. No horizonte, mais um mega evento se aproxima ainda em 2016 trazendo o fantasma de um estado de sítio permanente que permite que os ricos façam seus negócios em cima de nossa miséria.

Não quebrar janelas ou respeitar um cordão policial não serão garantia de que ninguém vá para a cadeia. Talvez isso sirva para alguns jovens brancos, rebeldes alternativos, mas não parece ser a tendência para a maioria de nós daqui pra frente. Como continuar nos organizando quando o simples fato de se organizar for considerado crime? Na Espanha, cerca de 70 pessoas foram presas em 2015 numa mega operação que contra o “terrorismo” teve como alvo centros sociais e casa ocupadas em cidades como Barcelona e Madri. Depois de alguns dias quase todas foram soltas, menos sete delas, porque o juiz responsável pelo caso alegou que elas usavam e-mails com medidas extremas de segurança, como o servidor riseup.net”. Apenas não se sujeitar aos serviços corporativos que guardam e mapeiam todos os dados envolvidos em nossa comunicação já pode ser pretexto para nos enquadrar uma ameaça para o sistema.

"Mãos para cima: a Democracia chegou!"
“Mãos para cima: a Democracia chegou!”

Também não somos as únicas pessoas à espreita ou trabalhando para o fim desse sistema. Fascistas, terroristas, facções criminosas e outras inúmeras formas de poderes autoritários paralelos estão sob o controle repressivo ou dos acordos que nossos líderes promovem.

É preciso considerar o fim desse mundo como o conhecemos. Ele pode vir muito antes do que imaginamos e levar junto tudo que achamos ter garantido – inclusive “direitos” como os de manifestação ou de ir e vir. É também preciso saber sobreviver ao seu fim, habitar a crise, o estado de sítio e compartilhar desde já habilidades que nos mantenham com vida e com força. Se os meios ou métodos que adotamos são crime ou não, isso não deve ser o centro da nossa reflexão na hora de organizar nossa própria agenda e nossos objetivos a longo prazo, mas sim apenas um detalhe estratégico: devemos atrair atenção da polícia agora ou mais tarde?

Depende de quanto tempo temos para fugir ou quanta força temos para resistir. E quando qualquer forma de organização e luta forem crimes, precisaremos saber como continuar lutando. Se falharmos em nossas revoluções ou outras novas sociedades, temos ao menos que sobreviver da forma mais bela e feliz possível.

Nossos inimigos são muitos, andam juntos e sabem se organizar. Sozinhxs estaremos vulneráveis: precisamos nos encontrar!
Nossos inimigos são muitos, andam juntos e sabem se organizar.
Sozinhxs estaremos vulneráveis: precisamos nos encontrar!

publicação: “LUTANDO NO BRASIL – Parte II: RECIFE, SÃO ROQUE E RIO DE JANEIRO”

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Está é a segunda parte do projeto “LUTANDO NO BRASIL – Sobre grandes mobilizações e o que fazer quando a fumaça de dissipa”. Camaradas de Recife e do Rio de Janeiro compartilham reflxões e experiências sobre os últimos anos de luta e resistência no sudesde e no nordesde do Brasil. Além disso, dois relatos de pessoas que estiveram nas linhas de frente do resgate de animais e do confronto com forças policiais em São Roque, interior de São Paulo, nos convidam a refletir sobre uma das mais emblemáticas ações radicais da história recente do país.

artigo: INQUÉRITO BLACK BLOC – O ELOGIO A UM CRIME PERFEITO

Organizar-se nunca quis dizer filiar-se numa mesma organização. Organizar-se é agir segundo uma percepção comum, seja a que nível for. Ora, o que faz falta à situação não é a “cólera das pessoas” ou a penúria, não é a boa vontade dos militantes nem a difusão da consciência crítica, nem mesmo a multiplicação do gesto anarquista. O que nos falta é uma percepção partilhada da situação. Sem essa comunicação, os gestos apagam-se no nadae sem deixar vestígios, as vidas têm a textura dos sonhos e as sublevações terminam nos livros escolares.”

À Nos Amis”, Comité Invisível, 2014

Em outubro de 2013, ainda inspirados pelas lutas de junho, protestos e greves de professorxs da rede pública aconteciam simultaneamente no Rio de Janeiro e em São paulo. Em um deles, multidões atacaram a Polícia Militar em frente à Secretaria de Educação de São Paulo e dispersaram depredando bancos, lojas e destruindo uma viatura da Polícia Civil no centro da cidade. Horas depois, na mesma noite, duas pessoas que estavam fotografando o evento foram presas por policiais civis.

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Viatura da Polícia Civil SP devidamente reposicionada – 7 de outubro de 2013

Com elxs não foi encontrado nenhuma prova consistente de sua participação além de uma câmera com fotos do protesto e uma capsula gás-lacrimogêneo deflagrada que encontraram no chão. Mesmo assim, foram sequestradas, torturadas física e psicologicamente, além de terem suas casas invadidas sem mandado e saqueadas pelos agentes. No momento da prisão o delegado responsável já declarou que seriam processadas pela Lei de Segurança Nacional, criada ainda na época da Ditadura Civil-Militar brasileira  e que tipifica “depredar, provocar explosão ou incendiar para manifestar inconformismo político ou manter organizações subversivas”. A prisão causou repercussão pelo exagero em se usar uma lei anti-terrorismo que leva pessoas comuns a serem julgadas por um tribunal militar – o que não foi usado nem nos casos de uma série ataques cometidos por facções criminosas que mataram dezenas de policiais em São Paulo em 2006. Em dois dias um juiz decretou que respondessem ao processo em liberdade, mas ainda seguem correndo o risco de pegarem até 25 anos de prisão.

No dia seguinte à liberação das duas pessoas presas, o DEIC (Departamento Estadual de Investigações Criminais  de SP) usou esse caso onde a Lei de Segurança Nacional foi acionada para abrir uma investigação que enquadra a tática Black Bloc como uma prática de associação criminosa, coordenada nacionalmente por uma grande quadrilha e não como delitos isolados a serem julgados individualmente. Fica óbvio que toda a operação foi uma montagem  para se abrir uma investigação para mapear e criminalizar participantes de protestos e movimentos sociais em todo o país. Na época, queriam intimidar qualquer mobilização que viesse a atrapalhar a Copa do Mundo de 2014. O caso ficou conhecido também como “Inquérito Black Bloc, foi levado sob sigilo numa coordenação entre as Polícias, Secretarias de Seguranças de São Paulo e do Rio de Janeiro junto com o Ministério Público.

O desespero de um Estado frente a ameaça de uma difusão de táticas e ações insurrecionárias justifica o uso de qualquer recurso disponível para neutralizar o inimigo interno. Inúmeros casos no mundo inteiro, do Chile à Grécia, mostram um mesmo padrão na criação de montagens e mentiras pelo Estado. Mas nesse episódio que descrevemos há dois pontos muito particulares a serem analisados.

Primeiramente, o Inquérito Black Bloc parte do pressuposto de que uma tática que se tornou comum em quase todas as cidades onde houveram protestos não pode ser uma série de ações isoladas e espontâneas. Ou os agentes do Estado são realmente estúpidos e não conseguem entender uma forma de agir decentralizada e que não responde ou é “financiada” por um órgão central, ou eles sabem que isso é perfeitamente possível e preferem afirmar que há uma organização nacional instruindo formando pessoas para realizar os ataques. A segunda é especialmente útil para justificar penas mais severas aplicadas contra manifestantes, como o de formação de quadrilha. E é claro que o espetáculo midiático e um perfil criminoso criado pela polícia ajudou na propaganda da imagem do Black Bloc. Mas precisamos reconhecer que a rápida difusão da tática, seus modos de agir no anonimato, em pequenos grupos de afinidade independentes passaram muito bem a mensagem: “somos muitas pessoas indignadas, estamos nos encontrando, não aceitaremos a violência da polícia de braços cruzados, vamos apoiar e ter apoio de quem também deseja um mundo livre, não gostamos de bancos, lojas e seus bens de consumo”.

Numa sociedade que aboliu toda forma de diversão...
Numa sociedade que aboliu toda forma de diversão…

O Estado reconhece seu medo diante de um inimigo que, mesmo se dizendo decentralizado e sem lideranças, ainda demonstra grande eficiência para difundir seus métodos, sua mensagem, sua postura de enfrentamento e ainda sair impune. Esse é sem dúvida o maior elogio que pode ser feito a uma tática anarquista – que para a imensa maioria daquelxs que usaram dela, ainda segue sendo um crime perfeito, sem provas, rastros ou punições para suas ações ilegais.

Houveram debates acalorados e conflituosos quando o assunto era se posicionar quanto a presença de Black Blocs nos protestos. Se por um lado funcionou muito bem quando apoiaram protestos contra professores no Rio de Janeiro e se juntaram ao resgate de animais em um laboratório no interior de São Paulo, por outro os grupos Black Blocs foram explicitamente banidos de marchas de movimentos como os de trabalhadorxs sem-teto. E isso não necessariamente significa que estes sejam movimentos pacifistas ou que estejam sendo arrogantes. Quando preciso, entram em confronto com o Estado e nem sequer usam máscaras para tal, como foi no fim de abril de 2014 quando tentaram invadir e depredar a Câmara Municipal de São Paulo quando vereadores suspenderam a votação do Plano Diretor Estratégico, que determina como acontece o crescimento e a ocupação da cidade. Não entender que muitos movimentos simplesmente não precisam uma “ajuda” seria a verdadeira arrogância, além de cair num proselitismo imaturo e numa confiança exagerada em uma tática sem respeitar os métodos das outras pessoas em outras lutas.

...nossa diversão é abolir tal sociedade!
…a única diversão é abolir tal sociedade.

Não precisamos entrar agora no mérito do embate entre princípios da não-violência e da diversidade de táticas dentro da esquerda, ou da direita pacifista que esteve nas ruas também em 2013. Mas vamos considerar que mesmo pessoas e grupos de esquerda que reconhecem a necessidade da auto-defesa violenta muitas vezes tiveram incômodos ou atritos com aquelas adeptas da tática Black Bloc desde 2013. Seja por ser difícil dialogar com  seus membros sobre os objetivos de marchas específicas ou até mesmo por conta da performance masculinista e machista de muitos de seus membros.

Longe de ser um movimento social ou um modelo para qualquer coisa, Black Bloc é apenas uma tática que nos fez refletir sobre toda nossa ação. Uma tática anarquista que ficou conhecida em um momento do país no qual o anarquismo não era amplamente difundido, e que passou a ser o maior difusor de slogans e imagens, ocupando por meses as manchetes dos jornais como figura central dos protestos. Era comum ouvir nas ruas ou na mídia a associação mútua entre anarquismo e táticas Black Bloc. Importante salientar que muitas pessoas participaram pela primeira vez de protestos políticos através das ações Black Blocs, o que foi comprovado pela vivência nas ruas, por pesquisas realizadas nos atos e pela notável e massiva presença de adolescentes adotando a sua prática. Se havia um desencontro entre os movimentos autônomos e anarquistas com a nova geração que começava sua vida política através dessas táticas, a responsabilidade também recai sobre gerações mais velhas que até então não difundiram tão bem o debate e sua bagagem em lutas sociais radicais.

Uma tendência que tem tudo para se espalhar - Belo Horizonte, junho de 2014
Uma tendência que tem tudo pra se espalhar! – Belo Horizonte, junho de 2014

Além disso, uma ampla diversidade de pessoas que não se encaixam nas fileiras dos novos movimentos sociais autônomos que estavam a frente das lutas de junho de 2013, seja por não querer ou não poder, se juntou às manifestações através dos Black Blocs. Num momento de vazio político, passividade, cooptação dos movimentos e organizações sociais, de descrença e isolamento individuais, é muito positivo que uma tática anarquista tenha unido pessoas e suas potências para mostrar na prática que os maiores inimigos do povo e a liberdade são a polícia, o Estado e a elite econômica.

A ação anônima, entre afinidades, imediata e espontânea pode ser uma das poucas formas realmente participativas e disponíveis para poder agir sobre a realidade sem ser apenas a “base” organizada por universitários e seu senso de militância. Vestir máscaras e atirar de volta seu ódio nas ruas foi talvez a única forma de tornar visível a presença de corpos que ainda permanecem invisíveis no tano cotidiano da vida comum e quanto nos meios ativistas. O que nos leva a considerar que o perfil compartilhado pela maioria dos membros dos núcleos duros dos movimentos de luta pelo transporte não está acessível para a maior parte da população que atuou nas ruas nos últimos anos: um perfil masculino, estudante, branco, cis-heterossexual, que mora perto do centro da cidade e que não precisa trabalhar em tempo integral e pode se dedicar a “militância” ou “trabalho de base”.

Finalmente, devemos analisar o significado do artigo 15 da Lei de Segurança Nacional de 1983 que prevê a pena de 3 a 10 anos para quem pratica  sabotagem contra “instalações militares, meios de comunicações, veículos e vias de transporte, estaleiros, portos, aeroportos, fábricas, usinas, barragem, depósitos e outras instalações congêneres”. Ela segue uma lógica militar de proteger o que há de essencial para o funcionamento da economia: as infraestruturas que organizam a logística de seus recursos materiais e energéticos. Além de servir como punição exemplar e intimidadora para os movimentos sociais, o uso dessa lei nos indica qual é o verdadeiro medo e o verdadeiro ponto fraco desse sistema.

Precisamos admitir que as manifestações que nos últimos anos cercaram, atacaram ou ocuparam prédios do governo não causaram muito além de um transtorno momentâneo e que se um palácio for ocupado ou mesmo derrubado, basta os governantes encontrarem outros lugares de onde se organizar para controlar nossas vidas. Além disso, sabemos que o verdadeiro controle em nossa sociedade se dá fora dos palácios, câmaras e senados. Ela acontece em salas fechadas onde líderes não-eleitos das corporações e carteis decidem como a classe política vai governar em favor de seus interesses de mercado. Se queremos causar algum transtorno e ter nossas vozes ouvidas, não será segurando cartazes na frente de prédios, bloqueando uma rua ou uma avenida no fim da noite. Devemos considerar bloquear o fluxo massivo de matéria-prima, mercadorias, energia, força de trabalho e informação como algumas das poucas formas de realmente interromper o funcionamento desse sistema e chantagear seus chefes. Nosso entendimento compartilhado deve ser o de que devemos nos tornar a crise que queremos ver no Capitalismo, e aprender a viver dentro dela – não necessariamente nessa ordem.

As origens do Black Bloc enquanto tática, tal qual conhecemos hoje, remonta às lutas de resistência dos movimentos autônomos da Alemanha nos anos 80. Movimentos que defendiam ocupações e comunidades contra os despejos forçados pela polícia. Quando adotamos uma tática, é importante questionarmos a qual objetivo ela está servindo e em qual estratégia ela se encaixa. O que estamos defendendo quando marchamos ou lutamos nas ruas? Contra quem estamos lutando? Quem está ao nosso lado? Em um primeiro momento, esse tipo de ação radical pode ter sido adotada como uma válvula de escape para um grito entalado há tempos e a falta de objetivos ou senso de estratégia não torna menos importante o seu papel. Mas estar sempre apoiado no espontaneísmo pode fazer com que essa válvula de escape se torne justamente um alívio que nos permite voltar para o trabalho e para a miséria de nossos lares no dia seguinte. Assim como qualquer espetáculo, festa ou jogo de futebol. Ou pior, nossa tática pode se tornar tão inofensiva quanto previsível.

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Alemanha dos anos 1980

Também não parece interessante limitar nossa forma de ação a formas de ação dentro de protestos, ou seja, ações reativas provocadas por uma determinada conjuntura. Devemos nos organizar para criar as conjunturas específicas para as ações que queremos tomar. Uma vez que não há mais o fator surpresa e pessoas passam a organizar páginas do Facebook para o Black Bloc de cada cidade, fica cada vez mais fácil para o Estado exercer o controle, o isolamento e a repressão. E a tática que foi a porta de entrada para pessoas se envolverem em alguma ação política pode se tornar inviável novamente.

Uma noção compartilhada de quem são os inimigos, quem são nossxs amigxs, o que queremos e o que não queremos em um mundo livre foi a base para a difusão das táticas Black Bloc por todo o Brasil em poucas semanas. Como uma erva-daninha, ou seja, uma vegetação pioneira, ela pode ter aberto o caminho para que formas de organização mais complexas surjam junto a debates e ambições mais profundas. Inclusive sobre como usar certas táticas e a que elas servem. Mas isso ainda vamos descobrir nos próximos anos. O movimento alemão de ocupações que deu origem a sua forma clássica há três décadas atrás resiste até hoje em todo o mundo com os mesmos princípios: propriedade é um roubo, e se quisermos algo, devemos nos organizar para tomar, ocupar e resistir. Outras formas de ação surgem e se espalham. A primeira ZAD (Zona a Defender), começou no noroeste da França para proteger uma região que seria devastada pela construção de um aeroporto e deu origem a uma ocupação do território onde centenas de pessoas resistem e vivem plantando, produzindo e compartilhando o que precisam. Outras surgiram para impedir a construção de uma barragem no sudoeste e um complexo turístico nas florestas do sul da França. Hoje são dezenas delas para frustrar os interesses do governo e das empresas. Acolhem imigrantes, estimulam trocas e o apoio mútuo ao invés do uso do dinheiro e pretendem permanecer para deixar seu legado de resistência para as próximas gerações.

Muitas outras formas de entender e agir sobre o mundo ainda vão surgir. E muitos outros exemplos de resistência estão na luta que povos indígenas e quilombolas travam até hoje contra a expansão da sociedade em que vivemos e sua supremacia branca, urbana e industrial. Caberá a cada grupo saber fazer de seu lugar e tempo um campo fértil para novos experimentos. Seja ocupando ruas, praças ou territórios inteiros. Derrubando presidentes ou quebrando empresas. Para liberar o espaço e nossas vidas sem que o Capitalismo os tome de volta, vamos continuar a compartilhar nossas experiências e nossas noções sobre como alcançar nossos objetivos.

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Preparem-se para a próxima vez que isso explodir!

Para saber do caso e apoiar as duas pessoas presas na Lei de Segurança Nacional em 2013, acesse:

solidariedadelibertaria.noblogs.org

 

publicação: “LUTANDO NO BRASIL – Sobre grandes mobilizações e o que fazer quando a fumaça se dissipa”

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Muitas pessoas no meio anarquista dependem de uma narrativa triunfante, na qual caminhamos de vitória em vitória até o momento em que atingimos algo que realmente valha a pena. Mas os movimentos também têm seus ciclos de vida. Eles inevitavelmente atingem um auge e vão ao declínio. Se nossas estratégias se baseiam apenas em um crescimento infinito estaremos nos condenando a uma derrota inevitável. Isso vale também para as narrativas que determinam nossa moral”

After the Crest” – Crimethinc. Ex-workers Collective, 2013

As ondas de protestos que emergiram em 2013 contra o aumento das passagens no transporte coletivo desafiaram a ordem e o ruído fúnebre das suas cidades. Elas convidaram uma geração inteira para as ruas, promovendo encontros e alianças que seguiram influenciando outras lutas e que podem influenciar  as próxima ondas de agitação. Esses eventos foram ouvidos por todo o planeta da mesma forma como também foram influenciados pelos diversos levantes deflagrados em outros continentes e países de diferentes contextos.

No entanto, a vitória que barrou o aumento em diversas cidades e não levou ao fim da tarifa nem conseguiu ir muito além da questão do acesso à cidade de uma forma realmente radical. Muitos grupos tentaram transformar os protestos num mar de outras causas, mas quase todas elas em sintonia com as reformas que constam na agenda das elites e que passaram a ser sugeridas pela própria mídia burguesa. Em 2014 veio a resistência contra realização da Copa do Mundo FIFA e em 2015, várias cidades tiveram aumentos ainda maiores do que os de 2013 e nenhum deles foi revogado depois de semanas de protestos nas ruas.

De economia em crescimento, que trouxe milhões de pessoas da miséria para dentro dos níveis de consumo de uma versão precário de “classe-média”, o Brasil entrou agora em uma fase de políticas de recessão e cortes em benefícios sociais. Um emergente com sintomas de doença de país rico. A grande diferença é que os números da miséria e o abismo entre ricos e pobres são absurdamente maiores que os de uma Europa em crise. Além de uma crise financeira, a falta de água nos reservatórios e a seca dos rios está colocando grande parte do sudeste brasileiro frente ao que já pode se tornar maior crise hídrica de sua história.

Em 2013 o Estado se desdobrava para estudar e conter a impressionante difusão de formas mais ou menos organizadas de luta, principalmente táticas radicais como a dos Black Blocs, que surgiu e foi usada em inúmeras cidades. No ano seguinte, a Copa do Mundo foi o golpe final e o pretexto que faltava para uma rearticulação completa das formas de reprimir e criminalizar o protesto e os movimentos sociais. Para conter a organização e o protesto de quem denunciava as fraudes, a violência policial, os desalojos e as leis de exceção necessárias para a realização de um mega-evento mundial, foram oficialmente abertas as portas para um estado de exceção permanente cujo inimigo maior é sua própria população. Agora, com o fantasma da crise tanto financeira quanto de recursos hídricos – quando os níveis dos reservatórios de água da sua maior cidade chegam a 10% de sua capacidade total – o Estado e suas forças armadas discutem abertamente como conter uma população em revoltas generalizadas. Desemprego em massa, migrações forçadas, epidemias e como conter distúrbios civis em caso de total falta de água e alimentos estão nos painéis de discussões e na pauta dos comandos militares e agentes de segurança.

Outros momentos de pico das lutas sociais vieram antes e muitos ainda virão. Compreendemos que as vitórias alcançadas em 2013 nos levaram a um novo momento político onde muitas pessoas se sentiram empoderadas para tomar partido e se organizar. Ao mesmo tempo, um novo terreno foi criado pela repressão de Estado cada vez mais dedicado à contra-insurgência diante de um horizonte de crises econômicas e ambientais que ameaçam tomar o país.

Não será um único levante ou causa específica que vai trazer abaixo toda opressão de um sistema, mas também não será apenas mostrando de forma teórica e didática as contradições e violências de uma sociedade que conseguiremos trazer pessoas para o nosso lado das barricadas. Aliás, será preciso construir muitas outras coisas mais duráveis do que barricadas se quisermos compartilhar e disseminar formas de resistência e organização anti-capitalista e anti-autoritária para sobrevivermos aos tempos de crises e leis de exceção. Para tanto, é preciso praticar, demonstrar e comunizar soluções anarquistas para os problemas que temos agora e os que forem surgindo nos próximos anos. Soluções radicalmente libertárias que satisfaçam nossas necessidades imediatas mas que sejam condizentes com nossos objetivos a longo prazo. Que nos preserve do olhar e das operações policiais mas que estejam acessíveis a todxs que precisam se organizar.

É partindo dessa perspectiva que apresentamos esse projeto, LUTANDO NO BRASIL – Sobre grandes mobilizações e o que fazer quando a fumaça de dissipa. A organização e a primeira parte do texto foram feitos em São Paulo e não pretendem ser a melhor visão geral ou definitiva dos acontecimentos. Mas uma contribuição que analisa o todo sem esquecer de onde constrói sua perspectiva. Esse é o primeiro capítulo de uma série de publicações que, para dar poder aprofundar e compartilhar diferentes formas de ver e agir em cada lugar, conta com textos escritos por pessoas e coletivos de diferentes estados do país a pensar e compartilhar experiências, questões e soluções para lutas anti-capitalistas de agora e que virão.