Nas últimas semanas, desde o ataque premeditado e covarde da Polícia Militar de São Paulo contra uma manifestação inteira no dia 12 de janeiro, surgiu um grande debate sobre a violência policial, a necessidade do ataque e da polêmica em torno da exigência de que os movimentos avisem com antecedência o trajeto percorrido em um protesto.
Como já foi explicado, a Polícia Militar não pode usar a Constituição da ditadura democrática de 1988 para justificar sua exigência ou o ataque a um protesto que descumpre uma regra não existente. O texto exige apenas que seja divulgado o local de encontro e diz que nenhuma reunião deve ser criminalizada de antemão. Obviamente, o local de encontro é sempre divulgado abertamente na internet ou cartazes.
Atacando o ato quando esse tenta seguir livremente um caminho escolhido, a Polícia está atacando os direitos da Democracia que diz defender. Outro ponto é que a Polícia também descumpriu diante de centenas de câmeras o próprio manual “anti-distúrbio” da corporação. Como atirar balas de borracha, jogar bombas e atacar com cassetetes pessoas sem aviso, sem ser atacada primeiro e sem deixar uma rota de fuga para que as vias sejam de fato liberadas. Não houve tentativa de “liberar” a via, mas sim de encurralar ferir o maior número de pessoas.
Mesmo com as imagens inundando a internet e matérias de jornais corporativos denunciando os erros e violações da Polícia e do Estado que comandou suas ações, o Secretário da Segurança disse que a PM agiu dentro da legalidade e que a “população” em geral aprovou a ação policial que evitou que “maiores prejuízos” acontecessem. Para o ato seguinte, prometeu seguir o mesmo procedimento. E para o ato do dia 14 de janeiro o MPL-SP tentou inovar com dois pontos diferentes para concentração e em ceder e divulgar previamente o trajeto dos dois.
Não cabe aqui exigir punição aos policiais ou demandar que forças armadas, capangas mercenários e assassinos, andem na linha e respeitem um estado democrático. Nem mesmo nos iludir que algum dia o Estado, as classes que o controlam e governantes individualmente ajam dentro das leis que criam.
A polícia e o Estado como um todo jamais se preocuparam em seguir seus próprios códigos ou leis. Sua função não é manter nenhuma liberdade ou “direito” dos governados, e sim o controle e a autoridade por quaisquer meios necessários. Isso inclui suspender seus direito de expressão, ir e vir, de moradia e até violar seu corpo e sua vida através da tortura ou assassinato.
Essa sempre foi a realidade brasileira e será em todo mundo enquanto caminhamos para um estado de exceção permanente. Não esperamos nada das leis ou da Constituição e nem nos espantamos ao ver os “defensores da lei” agindo fora das suas próprias regras. É assim que eles ganham a vida e assim que mantêm o controle. Apenas nos resta saber sobreviver e aumentar nosso poder coletivo em meio ao estado de sítio e de crise.
Velhos slogans não vão nos ajudar
Após longos momentos de lutas e de criminalização dos movimentos sociais, suspensão do direito de greve e de protesto, prisões arbitrárias e montagens, a reação tem sido reproduzir a ideia de que nenhuma luta social deve ser considerada ilegal. “Lutar não é crime” é um dos slogans mais presentes em faixas, cartazes e pixações nas ruas nos últimos três anos. Mas, se paramos para pensar, faria mesmo algum sentido querer o fim das injustiças do Capitalismo, a destruição do patriarcado, da supremacia branca e toda forma de racismo, o fim da propriedade privada, a abolição do Estado, da Democracia, das fronteiras, e toda forma de controle, opressão e hierarquia, e ainda assim querer que isso não seja criminalizado?
É óbvio que um sistema baseado em tantas injustiças precisa de formas de tornar impossível ou ilegal qualquer forma de lutar pelo seu fim. Não faz sentido acreditar que vamos dar fim a um sistema, ou mesmo tentar viver de outra forma dentro de seu território, sem que isso seja considerado um crime gravíssimo ou que uma forte repressão recaia sobre nós. Os meios democráticos, legais e constitucionais apenas permitem que tenhamos as conquistas que mantenham o sistema funcionando, adaptando-o às novas demandas e aliviando tensões. Mas escravos com mais conforto e direitos não são menos escravos.
Direitos não vão nos proteger
As mudanças nos aparatos repressivos, policiais e militares introduzidas com a passagem pela Copa do Mundo em 2014 só confirma a tese de que mesmo os precários direitos que temos estão sujeitos a serem suspensos se assim desejarem os líderes das corporações e dos Estados. Entendemos que há motivos sérios e importantes quando gritamos que “lutar não deve ser crime”, pois não há porque aceitar passivamente a perda dos poucos direitos conquistados, como a greve, ou que ainda estão distantes para milhões de pessoas, como a moradia. Mas precisamos construir perspectivas que nos mantenham de pé mesmo diante da possibilidade de um futuro ainda pior, onde de fato se organizar e lutar por mudanças significativas sejam crimes – com foi há poucas décadas nos períodos obviamente ditatoriais. Precisamos de formas de pensar e agir independentemente do que permitem as leis e os direitos que nos são concedidos. Muitas das justificativas que damos para nossas lutas são dependentes de uma moral burguesa e estatal, que sugere que devemos “constituir” uma nova ordem fundada na mesma lógica de “legitimidade” que a atual.
A narrativa do poder constituinte remete a valores abstratos e inatingíveis semelhantes ao direito divino, ou a soberania da constituição. Quem reclamar ser o defensor desses valores, esta reclamando legitimidade maior para reinar sobre todas as outras. Um valor exterior ao qual subjugamos a nós mesmos. Como um sacerdote cuja palavra revelada conecta meros corpos mortais à verdade divina. Usar o mesmo pensamento, substituindo “vontade divina” ou “constituição” pela “vontade” do povo, apenas serviu para justificar a autoridade daqueles que tomaram o poder dizendo que iriam nos libertar da tirania do sistema anterior. O que queremos é apenas o que queremos porque nos interessa ou é compatível com nossa forma de vida e vontade de auto-determinação. Formas de vida diferentes surgem. Formas inimigas vão surgir e estarão em conflito. Privilegiar uma como detentora da única legitimidade constituída e projetá-la na vontade popular cria a soberania e a supremacia. Geralmente em favor de quem a criou. Se queremos um mundo onde caibam vários mundos, não podemos depender de uma narrativa que forneça a mesma legitimidade para todos os grupos humanos enquanto justifica uma falsa união ou uniformidade.
Podemos usar nossa capacidade de compreender a realidade para criar teorias e traçar objetivos que nos sirvam como uma máquina de guerra contra a ordem vigente. Não usamos de teorias para nossas estratégias. Nossas teorias são parte da estratégia. Precisamos daquelas que nos façam potentes independentemente de ser crime, inconstitucional, ilegítimo, moral ou qualquer outra forma de regulamentação estatal.
Habitar a crise, sobreviver ao estado de exceção
Esse sistema não vai durar pra sempre. Crise econômica e política já são formas permanentes de se governar há muito tempo e fazem parte da gestão da sociedade, assim como a corrupção. Mas agora, o fim da linha parece sempre estar mais próximo. A crise hídrica que afeta o Sudeste do país começa a se estender para as regiões vizinhas e especialistas alertam para o fim do cerrado, o principal bioma que envolve o a região que é também onde ficam as maiores cidades e polos industriais do país. E as previsões variam das mais brandas – desemprego, doenças –, até as mais alarmantes – êxodo em massa, conflitos violentos, epidemias. Oficiais do Exército discutem o que fazer em caso de rebeliões se espalharem devido à falta de água, enquanto soldados fazem treinamento simulando ocupação das estações de tratamento de água de São Paulo. No horizonte, mais um mega evento se aproxima ainda em 2016 trazendo o fantasma de um estado de sítio permanente que permite que os ricos façam seus negócios em cima de nossa miséria.
Não quebrar janelas ou respeitar um cordão policial não serão garantia de que ninguém vá para a cadeia. Talvez isso sirva para alguns jovens brancos, rebeldes alternativos, mas não parece ser a tendência para a maioria de nós daqui pra frente. Como continuar nos organizando quando o simples fato de se organizar for considerado crime? Na Espanha, cerca de 70 pessoas foram presas em 2015 numa mega operação que contra o “terrorismo” teve como alvo centros sociais e casa ocupadas em cidades como Barcelona e Madri. Depois de alguns dias quase todas foram soltas, menos sete delas, porque o juiz responsável pelo caso alegou que elas usavam e-mails com medidas extremas de segurança, como o servidor riseup.net”. Apenas não se sujeitar aos serviços corporativos que guardam e mapeiam todos os dados envolvidos em nossa comunicação já pode ser pretexto para nos enquadrar uma ameaça para o sistema.
Também não somos as únicas pessoas à espreita ou trabalhando para o fim desse sistema. Fascistas, terroristas, facções criminosas e outras inúmeras formas de poderes autoritários paralelos estão sob o controle repressivo ou dos acordos que nossos líderes promovem.
É preciso considerar o fim desse mundo como o conhecemos. Ele pode vir muito antes do que imaginamos e levar junto tudo que achamos ter garantido – inclusive “direitos” como os de manifestação ou de ir e vir. É também preciso saber sobreviver ao seu fim, habitar a crise, o estado de sítio e compartilhar desde já habilidades que nos mantenham com vida e com força. Se os meios ou métodos que adotamos são crime ou não, isso não deve ser o centro da nossa reflexão na hora de organizar nossa própria agenda e nossos objetivos a longo prazo, mas sim apenas um detalhe estratégico: devemos atrair atenção da polícia agora ou mais tarde?
Depende de quanto tempo temos para fugir ou quanta força temos para resistir. E quando qualquer forma de organização e luta forem crimes, precisaremos saber como continuar lutando. Se falharmos em nossas revoluções ou outras novas sociedades, temos ao menos que sobreviver da forma mais bela e feliz possível.