Para Barrar o Golpe Fascista!

Nosso último artigo foi transformado em vídeo pelo coletivo Antimídia. Para quem não conhece, a Antimídia é um coletivo anarquistas, membro da rede internacional Kolektiva, produtor de vídeos informativos e educativos, produzindo materiais sobre acontecimentos atuais e temas caros à luta anticapitalista e anticolonial de todas as épocas. Dentre nossas recentes colaborações estão o vídeo e textos da Outra Campanha.

Assista, compartilhe, passe a diante e organize a resistência!

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Enquanto centenas de milhares de pessoas tombam vítimas da COVID-19 em todo território ocupado pelo Estado Brasileiro, Bolsonaro se prepara para assegurar seu controle do Estado: difundindo discursos de fraude eleitoral, armando seus apoiadores e buscando obter mais controle sobre as polícias. Como barrá-lo e impedir que sejamos controlades por um regime ainda mais autoritário e violento?

 

Do Genocídio Pandêmico a Um Levante Fascista – O que Precisamos para Barrar Bolsonaro

Agentes de saúde antes de examinar o corpo de uma pessoa em durante o surto de coronavírus em Manaus.

A pandemia da Covid-19 no Brasil chega a números absurdos 210 mil pessoas mortas, cidades entrando em colapso. Sabíamos que o bolsonarismo deixaria um legado de repressão, violações e morte. Mas a crise sanitária está elevando as consequências ao extremo da devastação humana e ecológica. Em Manaus falta oxigênio e vítimas da Covid-19 e outras enfermidades morrem sufocadas enquanto o presidente e seus ministros dizem que “não podem fazer nada”. Não existe mais auxílio emergencial e os despejos seguem mesmo durante a pandemia, a letalidade policial aumentou 7% em relação à 2019 (cerca de 6 mil execuções) e o desemprego atinge índices históricos.

Para agravar o cenário, o presidente se isola entre a extrema-direita global, negando a pandemia, sabotando qualquer iniciativa e discursos médicos-científicos que viabilizem a vacinação e recomendando falsos “tratamentos precoce” da doença com hidroxicloroquina e vermífugos – ideia que até mesmo Donald Trump abandonou meses antes de perder as eleições.

Bolsonaro é o último chefe de Estado que segue como apoiador declarado, e ainda fiel, dos delírios de Trump, reproduzindo sua narrativa de fraude eleitoral e sendo o único líder mundial que apoia os discursos que justificam a invasão do Congresso estadunidense por uma multidão de fascistas no dia 6 de janeiro.

Multidão invade o Capitólio impulsionada por discurso de Trump com bandeiras racistas e neonazistas: serão eles a imagem do futuro?

E vai além: Bolsonaro é o único caso do mundo de um candidato que mesmo tendo ganho a eleição alegou, sem provas, que o sistema eleitoral brasileiro é fraudulento e que, caso o país não abandone as urnas eletrônicas, voltando as antigas cédulas para votação de papel, haverá manipulação também na eleição presidencial de 2022. Com isso, sinaliza que seria necessário haver uma reação à suposta fraude do futuro, nos moldes da invasão ao Capitólio que ele acaba de celebrar.

Por mais que certas mitologias insistam, a história não se repete. Mas é fácil encontrar padrões de atuação política e discursos entre grupos ou líderes mundiais que compartilham interesses e um mesmo momento histórico. Como o fracassado Trump, Bolsonaro surfa na mobilização de grupos sociais que transformam seu ressentimento em ação política autoritária, supremacista e estridente. Essa onda que garante uma base de apoio reduzida, mas fiel e ativista. Seus apoiadores funcionam por meio de uma lógica identitária onde fatos ou dados científicos não têm relevância se não reforçarem suas próprias crenças e nem favorecerem as políticas do seu líder. Nesse caso, seguir recomendações médicas não é uma questão de saúde e cuidado de si e dos outros, mas apenas uma polêmica na disputa limitada entre a extrema-direita reacionária e social-democracia gestora, identificada, no Brasil, com os anos de governo do PT.

Nessa lógica de identificação sectária e paranóica, sua base mais radical é inflamada para realizar nas ruas e outros locais o que o discurso do presidente e seu time (ainda) não podem fazer abertamente: a violência física e o assassinato direto da oposição. Embora saibamos que suas políticas são responsáveis pela morte de milhares de pessoas, seja na pandemia, nos desastres ambientais ou pela mão da polícia, o discurso de Bolsonaro e sua família ainda é tratado como uma “metáfora” ou como “mera brincadeira” por seus defensores mais poderosos da mídia ou em cargos públicos. Quando diz que a “ditadura matou pouco”, ou que o que o Brasil passou entre 1964 à 1985não foi uma ditadura”, ou mesmo quando diz que vai “metralhar a esquerda”, Bolsonaro se foge de qualquer responsabilidade alegando que não está falando literalmente ou está sendo mal interpretado. Mas, assim como Trump incentivando (e depois elogiando) neonazistas que atiraram e mataram manifestantes antirracistas em agosto 2020 e invadiram o Congresso em janeiro de 2021 para manter seu governo no poder, o comportamento de Bolsonaro abre caminho para que seus apoiadores se sintam ainda mais encorajados a agir no mundo real.

As políticas de liberação de armas no Brasil e propostas de isenção de impostos sobre elas caminham para facilitar o acesso a armamentos para quem tem dinheiro para isso e se identifica com o discurso reacionários do presidente. As 180 mil novas armas registradas em 2020 já são um recorde, representando um aumento de 91% em relação a 2019 e um aumento geral de 183% desde o início do governo.

Bolsonaro demonstra querer formar uma base radicalizada – e armada – para defender seus interesses nas ruas conforme o exemplo trumpista. No contexto estadunidense, onde a posse legal de armas como pistolas ou fuzis já é parte da cultura, Trump foi capaz de insuflar seus apoiadores até que um de seus apoiadores, membro de uma milícia supremacista, matou duas pessoas e feriu uma terceira com tiros de AR-15 em agosto de 2020, num protesto antirracista em Kenosha, com a conivência da polícia.

Com tantas novas armas nas mãos de pessoas que se influenciaram pela propaganda bolsonarista, não é difícil imaginar manifestações de onde partidários do presidente acabem abrindo fogo ou praticando outras formas de violência contra outros manifestantes ou minorias que já são alvo do racismo, sexismo e xenofobia.

E se há alguma dúvida quanto a atuação da polícia, os recentes esforços do governo federal em tirar o controle das Polícias Militar e Civil dos governos estaduais e transferi-lo para Brasília (revisão do Projeto de Lei nº 4.363, de 2001), revelam o interesse de centralizar o comando das forças policiais, assim como acontece com as Forças Armadas. Vale lembrar que o golpe de estado organizado pela extrema direita na Bolívia em 2019 foi executado pela polícia, sem que o Exército tentasse impedir.

Além disso, Bolsonaro concede agrados e praticamente se tornou um paraninfo oficial de formaturas em academias de polícia. A polícia é uma das bases políticas mais sólidas de Bolsonaro, e o presidente constantemente encaminha propostas que fortalecem esse apoio. Como a que amplia o excludente de ilicitude para a polícia, isentando policiais de punição por qualquer ato ilegal cometido em serviço, ou seja: estimulando para que matem ainda mais!

Sobre a Violência

O discurso armamentista da direita é baseado na antiga ideia de que o “cidadão de bem” deve ter o direito de defender sua propriedade. Numa sociedade capitalista e patriarcal, isso significa: homens brancos, possuidores de imóveis ou terras com liberdade para usar a violência contra quem não tem. O Estado, que detém o monopólio da violência legal, mas garante “legitimidade” para que o rico possa matar pobres quando se sentir ameaçado – mas jamais vai tolerar que pobres, pretos, mulheres, indígenas e outros grupos marginalizados possam se defender da mesma forma contra agentes do Estado ou do Capital. A autodefesa é negada para todos esses grupos. Em outras palavras, só pode se defender quem já tem a proteção do Estado, como uma extensão da defesa ao direito de propriedade. E quem já é alvo, deve permanecer sem defesa ou sofrer duras punições casto tente revidar.

Mas não é somente a direita que trabalha para manter esse monopólio da autodefesa. Quando parte da esquerda condena protestos “violentos”, os bloqueios, o vandalismo, a desobediência e o contra ataque à violência policial, ela está complementando o mesmo discurso armamentista de Bolsonaro e seus apoiadores. Mesmo sem uma intenção explícita, as consequências de seu discurso pacificador afirmam: esses corpos não têm o direito de se defender, não podem revidar, devem traduzir seu ódio e sua insatisfação para um canal “legítimo” dentro de instituições que foram criadas pela elite para controlá-los e silenciá-los. Desnecessário dizer que quem concede essa legitimidade é a mesma lei burguesa que acolhe a violência policial e criminaliza qualquer resistência.

Vamos nos defender: a polícia sempre estará do lado do fascismo!

É compreensível que líderes de movimentos e partidos de esquerda reproduzam esse discurso, pois precisam da legitimação do poder estatal para disputar seus cargos e o controle das instituições. Se candidatos como Guilherme Boulos, que mandou integrantes do movimento sem-teto agredir adeptos da tática Black Blocs em atos em São Paulo, estimularem a desobediência e o confronto com a polícia, como esperar que a mesma polícia vá obedecer suas ordens caso sejam eleitos? Ou pior, como convencerão as pessoas que elas não devem desobedecer ou atacar a polícia quando ela estiver cumprindo as suas ordens?

Assistimos ao fim da representatividade democrática, desgastada e ineficiente. Com a perda da confiança em seus processos, o fracasso em prover o bem-estar geral dentro do neoliberalismo, a violência e o autoritarismo se tornam os únicos recurso para manter o comando do Estado. Sendo assim, nenhuma pessoa ou grupo que almeja um dia controlar esses governos e polícias irá nos salvar do fascismo, pois nunca agirão contra essas instituições que sempre abriram caminho e sustentaram regimes fascistas.

Nossa Ação é Direta

Em meio a um cenário de radicalização e promessa de violência, é inútil esperar que polícias, leis ou exércitos impeçam a escalada do fascismo dentro e fora das instituições. A história recente nos mostra que todo aparato criado sob a justificativa de reprimir extremistas e fascistas, especialmente após os atentados de 11 de setembro, acabam sendo usados contra movimentos sociais e minorias. Nos EUA pós 2001, movimentos anticapitalistas, antifascistas e de libertação animal e da terra (Animal Liberation Front e Earth Liberation Front), se tornaram os principais alvos do combate ao “terrorismo doméstico”, mesmo nunca causando uma única morte ou atentado contra qualquer pessoa.

Fascistas e outros tipos de nacionalistas e populistas como Bolsonaro, Trump, Modi, Putin e Erdogan tendem a levar a balança do jogo político todo para a direita. Por isso pensar apenas numa polarização entre direita x esquerda nas urnas não é o suficiente, pois exclui do espectro político movimentos pela libertação real, anticapitalista e antiautoritária. Políticos e grupos neoliberais e conservadores reconhecem que a gestão genocida de Bolsonaro ou a tentativa fracassada de golpe com apoio de neonazistas orquestrada por Trump, são extremos perigosos. Como vemos no embate entre o governador de São Paulo e o governo federal, neoliberais como João Dória, que oferece ração para estudantes e pessoas em situação de rua e que manda a PM atirar para matar, vão se apresentar como a oposição moderada ao bolsonarismo. O risco que os fascistas nos apresentam é tornar o antifascismo um mero resgate das políticas assim como eram ontem, ou pior, que as mantenha como estão hoje. Com o medo do que pode ser pior, a esquerda se torna paralítica ou até mesmo reacionária diante de rupturas radicais.

Não é raro surgir na mídia ou na internet discursos de petistas – ou do próprio Lula – acusando os levantes de 2013 de serem os responsáveis pela escalada conservadora e fascistóide que levou ao impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e elegeu Bolsonaro. Ao fazer isso, tentam garantir que qualquer ação política fora de sua gestão eleitoral/estatal seja suprimida e sugerem que na era PT o povo brasileiro viveu uma plena revolução, com igualdade para todas e fim da opressão – como se os bancos não tivessem lucros recordes, a reforma agrária tenha sido paralisada, os movimentos abafados e a população carcerária aumentado dramáticos 620%.

As recentes mobilizações no Chile, Argentina, México e Estados Unidos conseguiram vitórias e importantes avanços porque não esperaram para revidar à violência policial e das leis. Decidiram romper com a institucionalidade e o controle burocrático da esquerda acostumada com os palácios, reformas paralisadoras e a conciliação de classe. Mesmo quando a luta é por mudanças legais e institucionais, como a legalização do aborto na Argentina ou a derrubada da constituição chilena em vigor desde a ditadura de Pinochet, a pressão direta das pessoas nas ruas, tomando, ocupando e bloqueando a normalidade são muito mais eficientes. Se quisermos saúde de gratuita de qualidade, o fim dos despejos e acesso a recursos e alimentos durante e após a pandemia, não podemos esperar que governantes se antecipem, e sim tomar a iniciativa em nossas mãos.

Anarcafeministas com os escudos roubados da polícia da Cidade do México, em 28 de setembro.

As mobillizações no Brasil em 2020, durante a pandemia, provam que os maiores sindicatos, movimentos e partidos da oposição são os últimos a tomarem alguma inciativa no mundo real para mudar algo. Uma das maiores e mais importante paralisação de trabalhadores foi organizada por entregadores e entregadoras rompendo com o isolamento da informalidade forçada pelos aplicativos de delivery. As mais combativas manifestações que barraram fisicamente carretas e passeatas bolsonaristas foram puxadas por torcidas e movimentos antifascistas nos quatro cantos do país.

É fundamental impedir os encontros e marchas para que fascistas não tenham espaço para fazer propaganda e recrutar novos membros paras suas fileiras. No entanto, percebemos que quando a esquerda está nas ruas em busca de palanque eleitoral e em defesa da institucionalidade, ela vai aceitar recuar e protestar contra o fascismo distante dos fascistas – como foi o caso de movimentos em São Paulo que negociaram a paz com a Polícia Militar para protestar alternadamente com os movimentos de direita.

Nota de repúdio: manifestantes em frente ao 3º Distrito Policial de Minneapolis, onde trabalhavam os assassinos de George Floyd.

Para o dia 23 de janeiro estão marcados diversos atos pelo Brasil contra a política genocida de Jair Bolsonaro e sua equipe. No entanto, não são apenas movimentos de base e a esquerda que estão convidando pessoas para irem às ruas no momento em que a popularidade do presidente despenca – a direita conservadora que vem rompendo com o governo que ajudou a eleger também está determinada a tentar limpar sua imagem voltar ainda mais fortes. Não podemos deixar que neoliberais e fundamentalistas cristãos monopolizem as revoltas que estão por vir e se tornem a imagem da resistência ao bolsonarismo nas ruas. Se falharmos, em breve veremos cenas como a do dia 6 de janeiro nos EUA, com manifestantes tentando novamente invadir o Congresso ou o STF em nome de um regime ainda mais autoritário e assassino.

Organizar a solidariedade, revidar avanços fascistas, tomar as ruas, ocupar para morar e plantar e, não menos importante, impor consequências aos ricos e ao Estado para pressionar por mudanças estruturais é a única garantia de que não teremos nossas demandas amortecidas ou cooptadas por pretensas lideranças. Os levantes do dia 20 de novembro de 2020, dia da Consciência Negra, após a morte de João Alberto em uma loja do Carrefour em Porto Alegre já nos mostram o potencial da coordenação informal em escala nacional da revolta que trazemos latente contra toda essa política de morte impregnado nas estruturas desse sistema.

Somente formas de ação popular e radicais vão ser capazes de defender comunidades de ataques fascistas e impedir que seus movimentos ocupem as ruas com suas ideias vazias e cheias de ressentimento.

A luta é radical e pela vida. E só poder ser agora.

De Ferguson a Porto Alegre: FOGO NOS RACISTAS, NOS FASCISTAS E NOS CAPITALISTAS!

 

Lançamento: Revista Tormenta – 2020

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Neste ano, transformamos nossa modesta retrospectiva anual em uma publicação reunindo os principais conteúdos que publicamos em nosso blog em 2020.

A Revista Tormenta estará disponível para download em PDF livremente e vendida a preços módicos nos melhores infoshops e distribuidoras subversivas ao sul do equador.

Neste ano conturbado colaboramos, também, com algumas publicações para pensar e agir em nosso mundo. Dentre eles, o livro “Antifa: Modo de Usar”, que conta com artigos, entrevistas e traduções que fizemos e publicamos no site e estão inclusos nessa edição de lançamento.

Conteúdo:
  • 2020: um Ano que dispensa apresentação
  • A Revolta é a Vida, a Resignação é a Morte
  • Pandemia e Agronegócio: Entrevista com Rob Wallace
  • ANTIFA: Contra o Que e ao Lado de Quem Lutar – Entrevista com Mark Bray
  • 6 Críticas à Criminalização e ao Mito do “Manifestante Infiltrado”
  • O Fogo que Arde Desde a Cordilheira
  • Cartas de Presos Anarquistas em Solidariedade a Mónica Caballero e Francisco Solar
  • Lula só Fez Autocrítica Onde Estava Certo
  • ROJAVA: Entrevista com Tekoşîna Anarşîst
  • Brasil: Epicentro do Vírus do Populismo?
  • Leituras e Indicações

Abaixo, a apresentação da Revista Tormenta.

2020: um Ano que dispensa apresentação

Escrevemos estas linhas e organizamos esta compilação com alguns dos principais artigos que lançamos em 2020 enquanto janelas e gôndolas destruídas ainda são trocadas em várias unidades do Carrefour pelo Brasil. A revolta que emergiu por conta do assassinato racista de João Alberto em Porto Alegre na véspera do dia da Consciência Negra mostrou que existe uma insurreição latente de forças dispostas a contra-atacar os ricos e suas polícias racistas. Num episódio de retaliação e resposta imediata que nos obriga a lembrar da rebelião após morte de George Floyd nos EUA, corpos revoltados, sobretudo de pessoas pretas e periféricas, demonstraram que é possível se rebelar mesmo na época mais pacificadora das lutas: as eleições.

Entre o primeiro e o segundo turno da eleição para prefeitos, as cidades com os protestos mais combativos foram justamente as que enfrentam “dilemas” maiores nas urnas: Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. As disputas eleitorais entre partidos de direita e de esquerda institucional – ou entre direita e mais direita no caso do Rio – não dão conta de responder a desejos tão profundos como ver lojas de uma empresa multimilionária em chamas, saqueadas com seus produtos e riquezas distribuídas livremente. O mais próximo que chegam é da discussão de políticas menos racistas dentro do capitalismo (que por essência, é racista, colonizador e promotor de extermínios). Costumamos repetir um enunciado bastante explícito: “ninguém é radical em ano par”. Revoltas, como as de 2013, podem ser rapidamente canalizadas e transformadas em capital político para quem quer “levar as demandas das ruas” para dentro dos palácios em ano de eleição, como em 2014. Se em 2018 foi a direita que deu ao seu mais escandaloso representante o cargo de presidente, é porque souberam canalizar desejos e as ferramentas que os produzem e controlam nas ruas e no mundo virtual. Dilma Roussef, a presidente que não sabia o que era meme enquanto era transformada em um, foi derrubada e perdeu lugar, por fim, para um presidente que faz seus próprios memes e atualiza as formas de governo com base no ressentimento e no orgulho ferido da figura do macho branco, adulto e heterossexual, que se sente ameaçado com a proliferação de práticas e corpos que escapem ao modelo de sua própria identidade dominante. Nesse caso, Narciso não apenas acha feio o que não é espelho. Ele manda matar. Seja pela miséria, seja pela torturas dentro e fora das cadeias, seja pela arma de um policial ou espancado até a morte no estacionamento de um supermercado.

Dentro deste cenário apocalíptico por si só, vimos chegar uma pandemia global inédita na modernidade. Governos viram nisso uma oportunidade de avançar medidas de isolamento e pacificação. Democratas esclarecidos, “progressistas” de toda a ordem, lançam mão dos aparatos jurídicos, policiais e militares para fortalecer os controles sobre as condutas, produzindo pilhas de corpos e um sufocamento ainda maior contra aqueles que se mantém vivos. E engana-se quem pensa que isso é a exceção, que é um desvio. O nome disso é justamente Estado Democrático de Direitos. Em simultâneo, bufões autoritários como Bolsonaro e o derrotado Trump se contentam em ver os efeitos da pandemia assumindo um contorno eugenista e genocida. Enquanto isso, aplaudem e estimulam o agronegócio e a expansão desenvolvimentista e colonial que incendeia a Amazônia e o Pantanal, nos alertando que é dessa destruição dos biomas que virão as próximas pandemias.

Em momentos de crises sobrepostas é que vemos quem são os inimigos da ordem, que são seus defensores e quem são seus falsos críticos – os quais vão se apropriar da rebelião para implementar reparos aos sistema e perpetuá-lo. Em meio a todas essas forma de pacificação, eleitoral e biológica, nos vimos em diversos dilemas que nos faziam pensar sobre quando é “a hora certa” de ir para as ruas e partir para ação, seja de solidariedade com os nossos ou em ataque contra os chefes do sistema que produz pandemias e ecocídios. Mas tanto a solidariedade quanto a revolta tomaram corpo entre os grupos explorados e excluídos com enorme potência. Alguns exemplos foram inspiradores como o do povo do território conhecido atualmente como Chile, que não deixou o vírus interromper de vez um ano de rebelião contra o neoliberalismo; e os movimentos negros e anticapitalistas dos EUA incendiando delegacias e prédios no país inteiro, organizando comunas e zonas livre de polícia quando autoridades mandavam todos “ficarem em casa”. Por aqui, antifascistas, motoboys, mulheres, indígenas e o povo preto periférico mostrou que também há disposição em nosso território para nos encontrar e revidar.

Carregamos a memória das 180 mil mortes pela Covid19, subnotificadas e concentradas na população negra e pobre. Assim como as 3.148 pessoas mortas pela polícia no Brasil apenas no primeiro semestre. Sabemos que a letalidade desse projeto genocida contabilizará ainda mais vítimas até o fim de dezembro. Uma segunda onda do vírus está a caminho e não existe uma vacina para um projeto de Estado e sua normalidade. Apenas a rebelião e a autodeterminação dos de baixo. É preciso acabar com a normalidade!

Internacional Fictícia,
26 de Novembro de 2020.

Brasil: Epicentro do Vírus e do Populismo? – parte 3

IV. Solidariedade e Ataque na era da COVID-1984

“Ninguém no mundo, ninguém na história, conseguiu sua liberdade apelando para o senso moral de seus opressores.”

Assata Shakur

A respeito desses momentos, a recomposição estatista progressista foi um passo atrás. Um retrocesso. Para aqueles que postam na emancipação coletiva, o ponto de referência deve ser sempre o grau mais elevado alcançado pela luta social, e nunca aquilo que é possível conseguir. O possível é sempre o Estado, o partido, as instituições existentes. Mas a emancipação não pode deter-se aí.”

Raul Zibechi e Decio Machado – Os Limites do Progressismo

A história se esquece dos moderados”

Andrew Bird

Porto Alegre, 3 de Maio de 2020

Desde as eleições em 2018, as pessoas e movimentos sociais se perguntam qual seria a forma de uma resistência radical ao governo de Jair Bolsonaro. Como resistir a um inimigo que parece absorver qualquer oposição e transformar toda polêmica em combustível para sua agenda e toda oposição em pretexto para mais repressão? E como apresentar uma oposição que não seja tragada por uma versão pacificadora, conciliadora e sem radicalidade por uma esquerda que se acostumou e se identifica com a gestão estatal e vê na revolta popular um risco à ordem da qual também fazem parte? Alguns episódios mostraram que muitas pessoas estão dispostas a dar o primeiro passo. Em 2019, antifascistas interromperam um ato e entraram em confronto com grupos comemorando aniversário do golpe militar de 1964.

Durante os primeiros meses da pandemia, as melhores repostas foram sendo dadas na prática cotidiana por movimentos sociais, antifascistas e torcidas organizadas encarando e atrapalhando atos pró-governo nas ruas; por entregadores e entregadoras organizando greves inéditas em nível nacional, assim como por moradores de favelas e ocupações em todo o país organizando a solidariedade. São esses exemplos de ação direta por solidariedade entre pessoas pobres e excluídas, e também os enfrentamentos à ordem e seus defensores que gostamos de registrar e celebrar. Tais lutas não fizeram o “possível” enunciado por diversos líderes estatais, que consistia em fazer a administração catastrófica da catástrofe, não esperaram, lidaram com a contingência de maneira a não se deixar paralisar – é nisso que apostamos!

Retomar as Ruas: Antifascista e Torcidas Organizadas

Sem a natureza hierárquica e hegemônica do Estado, que monopoliza o uso da força, da economia, ideologia oficial, informação e cultura; sem a onipresença dos aparelhos de segurança que penetram todos os aspectos da vida, da mídia ao quarto; sem a mão disciplinadora do Estado como um Deus na terra, nenhum sistema de exploração ou violência poderia sobreviver.

Dilar Dirik, Democracia Radical: a Linha de Frente Contra o Fascismo

A luta antifascista emergiu na mídia e nas pautas dos movimentos como há décadas não se via no Brasil, com ampla cobertura das ações e protestos, mas também recebendo ameaças de criminalização e repressão. Desde 2015, como citamos, a tomada das ruas pela direita aos domingos, pedindo impeachment do PT, deu lugar às campanhas para eleger Bolsonaro em 2018. Após a eleição, grupos de direita “inovaram” mais uma vez com seus “protestos à favor” do governo, organizados aos finais de semana para não atrapalhar o fluxo de veículos e mercadorias nos dias de semana e contar com mais fora do horário de trabalho – o oposto dos atos que os movimentos anticapitalistas organizam com intuito de paralisar o fluxo urbano.

No entanto, esse avanço da direita na tomada das ruas não foi apenas uma conquista própria, mas algo construído com a conivência e o apoio direto das polícias e agentes de segurança. Documentos internos da Polícia Militar vazados à imprensa comprovam o óbvio: o comando da polícia trata manifestações pró-governo como atos inofensivos e festivos, recebendo elogios mesmo quando desrespeitam normas de isolamento e o uso de máscaras. Mesmo sendo inconstitucional discriminar manifestações políticas com base ideológica, ligando certas organizações e até partidos políticos a crimes de vandalismo, forças policiais de elite sequer acompanhavam os atos da direita, enquanto protestos de oposição eram vistos como uma “ameaça à ordem” e fortemente reprimidos. É claro que, novamente, vemos as linhas de exclusão que direciona repressão para manifestações populares de esquerda, periféricas, de maioria negra e pobre, enquanto policiais escoltam, protegem e tiram fotos com apoiadores do governo, em sua maioria brancos, dos bairros nobres, fazendo carreatas em veículos de luxo. Isso demonstra como o Estado influencia e tenta controlar quais ações políticas vão ganhar espaço nas ruas e quais serão sempre alvo da repressão.

Desafiando essa lógica, torcidas e trabalhadores e trabalhadoras precarizadas organizaram diversos atos públicos nas ruas em 2020. Nos dias 3 e 17 de maio, antifascistas em Porto Alegre interromperam protestos bolsonaristas que pediam a volta da ditadura militar aos cantos de “Recua, fascista”. Foram alguns dos primeiros atos do ano – e após muitos meses – a desafiar hegemonia bolsonarista nas ruas.

Como em outros lugares do mundo, a mídia debateu sobre a “necessidade” de se reunir nos espaços públicos para confrontar manifestações em apoio a Bolsonaro e pela reabertura do comércio. Se os patrões e a mídia não veem problema em nos fazer aglomerar no ônibus lotados, nas filas dos bandos esperando nossos benefícios, nos empregos precários e serviços de entrega que crescem enquanto sofremos com o vírus e a falta de recursos, então julgamos necessário nos reunir para bloquear os defensores de um sistema econômico assassino, o fluxo de mão de obra para produção e de mercadorias para o consumo.

Avenida Paulista, 31 de Maio de 2020.

Na cidade de São Paulo, cerca de 70 torcedores do Corinthians organizaram um pequeno ato dia 9 de maio, no mesmo horário e local que um ato pró-governo. A ação barrou o protesto bolsonarista chamou atenção nas mídias sociais, junto com as imagens de Porto Alegre no dia 17, e serviu para convocar mais pessoas para a rua. No fim do mês, torcedores de diferentes times de futebol ocuparam as ruas em São Paulo e frustrar protestos de apoiadores do presidente no dia 31, quando os atos ganharam uma escala nacional. Torcedores da Gaviões da Fiel, uma das maiores torcidas do país, com uma longa ação política desde os anos de chumbo da Ditadura, convocaram as manifestações que contaram com grupos de torcidas rivais, como Palmeiras, São Paulo e Santos. O momento de união das torcidas e outros grupos antifascistas reuniu uma multidão quase dez vezes maior do que o lado bolsonarista. A polícia tentou manter linhas de isolamento, mas um confronto ocorreu entre antifas responderam a provocações de manifestantes carregando bandeiras do Pravy Sektor, partido neonazistas ucraniano, e bandeiras dos EUA. A polícia interveio, direcionando seu ataque aos antifascistas, e protegendo neonazistas na Av. Paulista se tornou o palco de um grande confronto. Antifascistas resistiram e ergueram barricadas bloqueando as vias por um bom tempo.

Torcidas na Av. Paulista em São Paulo, em 31 de maio de 2020.

Entregadores de aplicativos se juntam ao protesto na linha de frente contra repressão policial.

As cenas repercutiram em todo o país, especialmente uma foto que registra um trabalhador de entregas por aplicativo atirando pedras contra a polícia. Sob o slogan “Somos Democracia”, entoado por diversas torcidas organizadas, uma imagem de oposição combativa e organizada era apresentada com os protestos contra o governo e o racismo desde o início de maio. A onda de revoltas que tomou os EUA após o assassinato de George Floyd dia 25 de maio nos EUA impulsionou ainda mais os movimentos que vinham tomando de volta as ruas no Brasil. As barricadas do dia 31 mostram que os sentimentos de repúdio ao racismo, a governos que flertam com o fascismo e a revolta contra suas forças repressivas são basicamente os mesmos de norte a sul do globo.

Antifascistas em São Paulo enfrentam “nacionalistas” com símbolos neonazistas da Ucrânia e bandeiras dos Estados Unidos protegidos pela Polícia Militar.

Ao todo, foram mais de 15 cidades em protesto no dia 31 de maio. No Rio de Janeiro, vimos forte presença de anarquistas e antifascistas aparecendo para confrontar um ato nacionalista pró-Bolsonaro em Copacabana. Houve confronto físico entre antifascistas e nacionalistas. Em Belo Horizonte os atos também começaram com pequenas chamados e se tornaram grandes manifestações. Em muitos casos, como no dia 31 de maio, foi possível bloquear, atrasar e impedir carreatas em apoio a Bolsonaro e pela reabertura do comércio. A torcida Resistência Alvinegra, fez um primeiro ato pequeno na Praça do Papa, com um vídeo onde leram um manifesto pela democracia e contra a agenda fascista de Bolsonaro e seus apoiadores. O chamado surtiu efeito e os atos semanais saltaram de uma dúzia para milhares de pessoas dias 31 de maio e 7 de junho, com diversas torcidas e movimentos sociais marchando para barrar as carreatas da direita, levando bandeiras e cantos antifascistas, homenagens a George Floyd e também João Vitor e Rodrigo Ciqueira, assassinados pelas polícias cariocas, além da vereadora e militante Marielle Franco, assassinada em 2018 por milicianos

Belo Horizonte, 31 de Maio

Nas semanas seguintes, mais cidades foram se juntando aos protestos antifascistas e contra o racismo. Em Salvador, a onda de protestos pelo Brasil e nos EUA levou grupos como Reação Antifascista Salvador, torcidas organizadas, sindicatos e quilombos a organizar um grande ato dia 7 de junho. Em Curitiba, uma manifestação com presença massiva de antifascistas marchou pelas ruas do centro da cidade no dia 1 de junho, que queimou a gigantesca bandeira nacional hasteada em frente ao palácio do governo e entrou em confronto com a polícia.

Mesmo com todos os seus problemas e conflitos internos, as torcidas organizadas possuem uma enorme capacidade de mobilização e diálogo com diversos setores da sociedade. Basta olhar o exemplo recente das torcidas organizadas Chilenas se juntando às linhas de frente em defesa dos protestos de 2019. Em 2013, a ocupação em defesa do Parque Gezi em Istambul, Turquia, também contou com um tremendo papel das torcidas que deixaram as rivalidades internas de lado para defender o parque e a ocupação da Praça Taksim das ofensivas policiais. Como aponta Mark Bray no livro Manual Antifa, a cultura e organização antifascista ganhou popularidade nas últimas décadas entre torcidas de futebol estadunidenses que organizadas por imigrantes que trabalhavam para combater a homofobia e transfobia. E na Europa, o autor considera que “alguns dos mais ferozes conflitos antifascistas aconteceram no contexto do futebol”. Essa tradição remonta à década de 1970, quanto grupos fascistas usavam torcidas e os jogos como espaço para recrutar novos membros e antifascistas modernos logo agiram para combater e impedir esse processo. É importante notar essa tradição retomando fôlego também no Brasil, onde o futebol e a relação das torcidas com os movimentos sociais é antiga e forte.

Infelizmente, vimos um refluxo nos atos, especialmente em São Paulo, a cidade com as maiores torcidas envolvidas nos protestos nacionais. Após os confrontos do dia 31 de maio, o governo do estado e o comando da PM tentaram mediar entre os movimentos antifascistas e os organizadores de atos pró-governos para que não organizassem protestos no mesmo horário na Av. Paulista novamente. Movimentos como o Povo Sem Medo, ligados ao candidato a prefeito Guilherme Boulos, a rede Somos Democracia e outros movimentos negros decidiram respeitar a decisão do Tribunal de Justiça que proibia os atos acontecerem juntos no dia 7 de junho. O sentido de organizar um ato para barrar fascistas que não poderia de fato barrar fascistas acabou sendo perdido.

A repressão direta ou a censura velada não demorou a atingir outros estados. Partidas futebol estavam acontecendo sem a presença de público, porém, torcidas organizadas podiam enfeitar o estádio com suas bandeiras. Em Belo Horizonte, no entanto, a torcida Resistência Alvinegra foi proibida pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) de estender sua bandeira que continha a imagem de Marielle Franco e a palavra “Antifa”. A bandeira era a mesma que esteve presente nos protestos de rua nos meses anteriores. A justificativa da entidade demonstra que em seu regulamento, a palavra “antifa” está no mesmo nível que expressões racistas e xenófobas.

Bandeiras Antifascistas removidas do Mineirão.

Está cada vez mais claro o receio das autoridades em permitir o crescimento de expressões e movimentos combativos como o antifascismo. Viemos agora de uma onde de levantes na América Latina, com Equador, Colômbia e Chile, se levantando contra os custos de vida e condições no neoliberalismo. Parte da esquerda e muitos movimentos anticapitalistas viram inspiração naquela luta, se perguntando levantes começariam por aqui também. O próprio Jair Bolsonaro expressou em 2019 que o governo está atento à onda de protestos nos países vizinhos, e em 2020 mostrou sua preocupação quanto a radicalização das ações nas ruas e seu medo do Brasil “virar o Chile” em resposta aos efeitos da crise do coronavírus. No entanto, as manobras do governo mostram um desejo de reproduzir o modelo neoliberal chileno, dando total liberdade para que o Capital aprofunde a exploração da mão de obra e do meio ambiente, enquanto o Estado corta e reduz serviços sociais para a população. E de fato, tanto a crise causada pela pandemia quanto as mortes causadas pela polícia geram protestos e confrontos, como no dia 15 de junho após a morte do jovem Guilherme, assassinado por policiais que trabalhavam como seguranças privados.

Como efeito, Bolsonaro e seus parlamentares aliados buscaram imitar Donald Trump e fazer declarações considerando antifascistas uma “ameaça terrorista doméstica”. Seu objetivo pode até não ser atingido usando a lei para criminalizar o antifascismo, mas sabemos bem quais lições a história nos mostra: Bolsonaro vai estimular os ânimos de suas bases dispostas a praticar atos de violência nas ruas contra minorias e dissidentes com a conivência da polícia. Grupos de extrema-direita radicalizados já fazem seu trabalho sujo legitimado pelo discurso do presidente: invadindo hospitais para tentar “provar” que não estão cheios de pacientes, como Bolsonaro insinuou em um pronunciamento, violando caixões para comprovar boatos de que não existem pessoas mortas, mas apenas pedras dentro deles para simular funerais, agredindo profissionais da saúde em hospitais ou organizando protestos por mais recursos para atender pacientes. Vimos grupos como o “300 Pelo Brasil”, acampando em Brasília e marchando até o STF com tochas e estética explicitamente inspirado nas marchas “Unite the Right”, de Charlottesville, nos EUA em 2017. Mesmo tento seu movimento reprimido e alguns dos seus membros presos, tanto os “300” quanto outros grupos menos organizados comprovam que o legado do governo de Jair Bolsonaro, além dos estragos de dentro das instituições estatais, deixará um legado de muito fascismo, racismo e ódio nas ruas.

Mas em todos os cantos das Américas, o recado está sendo dado: não vamos tolerar os avanços do fascismo e do populismo, nem mais mortes pelas mãos da polícia (a instituição mais fascista que caminha sobre esses solos) e as ruas, não pertencem àqueles que fazem “protestos à favor de governos” e fazem o trabalho sujo de gangues que a polícia (ainda) não é capaz de fazer diante das câmeras. Seguiremos tomando as ruas com as bases, com as torcidas — mesmo quando partidos e movimentos tradicionais sequer esboçam qualquer coragem de se juntar a nós.

Breque dos Aplicativos

Durante a pandemia, vários setores iniciaram greves para barrar a perda de ainda mais direitos e conseguir melhores condições de trabalho. Setores fundamentais como metroviários e os correios fizeram greves vitoriosas quando se viram mantendo serviços considerados essenciais enquanto trabalhavam mais tempo, mais pesado e sem equipamentos ou condições para preservar sua saúde. Associações de inquilinos também organizaram movimentos pela anistia e greve de aluguéis, com um pouco menos de repercussão na mídia, mas ainda assim realizando um trabalho fundamental. Mas um novo grupo surgiu chamando a atenção pela dimensão, pela força e pela criatividade em organizar quem estava isolado e desafiar um dos novos negócios que mais cresceu durante a pandemia: os Entregadores Antifascistas

Breque em São Paulo.

Profissionais trabalhando com suas motocicletas ou bicicletas para aplicativos de entrega de comida e produtos diversos sentiram um aumento significativo na demanda por seus serviços. Os pedidos por produtos entregues em domicílio foram decretados como essenciais para que milhões de pessoas pudessem ficar em casa. Enquanto isso, quem não podia ficar em casa, como os 9 milhões de novos desempregados no primeiro semestre de 2020, buscava seu sustendo no mercado informal – que já emprega mais de 40% da força de trabalho brasileira. As empresas internacionais como a Uber e Rappi, e a brasileira Ifood cresceram até 50% absorvendo serviços e nova força de trabalho recém-dispensada ou demitida das empresas que paralisaram ou faliram devido à pandemia, elevando a taxa de desemprego à 13,3% no país. No entanto, mais pedidos não significa mais dinheiro entrando para quem trabalha. Além de receber menos, entregadores estiveram sujeitos a mais riscos para a saúde.

Se opondo a essa lógica oportunista das novas empresas digitais, que invisibilizam as relações de trabalho tornadas individuais, surgiu o grupo Entregadores Antifascistas em São Paulo. Galo, um de seus fundadores gravou um vídeo desabafando sua frustração sozinho, no dia do seu aniversário, em março de 2020 após ser bloqueado pelo aplicativo por não terminar uma entrega por conta de um pneu furado. O vídeo viralizou nas mídias sociais e a projeção inspirou o Galo a criar um abaixo-assinado com mais de 600 mil assinaturas para exigir que os motoboys tivessem direito a refeição, itens de proteção e outros direitos básicos negados pelas empresas que tratam os motoboys como “empreendedores” e “parceiros”, não como funcionários. Quando outros se juntaram à causa, criaram o grupo Entregadores Antifascistas, uma forma de organização sindical ainda informal e movimento que também busca ser uma cooperativa autônoma. Dezenas deles participaram dos atos antifascistas em São Paulo no dia 7 de junho, onde gravaram mais um vídeo manifesto que circulou na imprensa e na internet, convocando mais entregadores e entregadoras a se organizarem com o movimento.

Logo após participar dos atos das torcidas e movimentos antifascistas, convocaram o “Breque dos App” para o dia 1 de julho, uma greve nacional de entregadores e entregadoras que atingiu 13 estados na luta por melhores salários, direitos e condições de trabalho. Para contornar as medidas punitivas que as empresas aplicavam contra indivíduos ou pequenos grupos que protestavam ou paralisavam suas atividades, a solução foi fazer um movimento ainda maior para pressionar, chamar atenção para a causa e a situação da categoria. Bloquearam avenidas com centezas de motocicletas, mas também a porta da sede de várias empresas de entrega. Um segundo grande dia de greve foi realizado dia 24 de julho.

Breque dos Aplicativos em São Paulo.

O exemplo de luta dos Entregadores Antifascistas nos lembra que, mesmo com a “uberização” das relações de trabalho que aprofundam a precariedade e a informalidade que já dominam países como o Brasil, é uma ilusão acreditar no discurso de que quem vende sua força de trabalho tem “autonomia”, é “empreendedor” ou está em pé de igualdade para se relacionar com empresas como “parceiros”. Nas palavras do próprio Galo: “Não somos empreendedores, somos força de trabalho!”. Por trás dos aplicativos e seus algoritmos existem proprietários com o controle total sobre a ferramenta, o serviço e o pagamento de quem mais trabalha. Ainda existe a velha divisão entre empregadoras e empregados, entre quem manda e quem obedece, quem trabalha por pagamentos mínimos e quem lucra fortunas. A “modernização” trazida pelas empresas e sua “GIG Economy” não passa de um “feudalismo digital” que se aproveita da falta de legislação para acabar com salários fixos, direitos, seguridade, aposentadorias e só pagar a motoristas, entregadoras e outros profissionais apenas por kilômetro rodado ou entrega feita, sem qualquer regra fixa – como na transição para a economia capitalista. Somente uma luta organizada de baixo para reunir indivíduos dispersos e isolados pela informalidade, criando uma nova linguagem de ação capaz de atacar e causar prejuízos aos patrões poderá chegar a alguma mudança, compartilhando experiência de luta radical, consciência de classe rumo a transformações sociais profundas.

Breque dos Aplicativos em Belo Horizonte: ocupações em apoio aos motoboys e motogirls.

Ações Solidárias e Apoio Mútuo: Nós Cuidamos de Nós!

Além dos impactos direto na saúde e na vida de milhões de pessoas, as previsões para um futuro próximo já apontam que a pandemia vai colocar mais até 66 milhões de pessoas na fome em todo mundo. No Brasil, além dos já mencionados 9 milhões de empregos perdidos, um dos primeiros problemas as serem enfrentados com a paralisação parcial da economia com as pessoas ficando em casa é a fome. Claro que a gestão Bolsonaro contribuiu para esse quadro: em seu primeiro ato como presidente, extinguiu órgãos responsáveis pelo combate a fome, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). No ano seguinte, afirmou a membros da imprensa internacional que “não existe fome do Brasil”.

Junto da crise sanitária e econômica, houve um aumento de até 40% no preço dos alimentos básicos. Em São Paulo, por exemplo, produtores viram uma queda de até 80% na venda de verduras e legumes para os bares e restaurantes da capital nos primeiros meses da pandemia. Até de 70% de algumas produções foi jogada no lixo por “não ter como distribuir”, enquanto milhares de pessoas nas cidades não sabiam como alimentar suas famílias. A lógica de mercado leva produtores a jogar fora alimentos antes de dividi-los com quem tem fome e torna ineficiente a distribuição de recursos em momentos de crise. Se não há relações de compra e venda e um retorno em lucro, não é útil levar alimento a quem mais precisa.

Em muitos casos, empresas tentam fazer publicidade disfarçada de caridade, doando produtos alimentícios industrializados e processados para colocar sua marca em reportagens de TV. Com imagens produzidas por elas mesmas, usaram do jornalismo corporativo para ocupar minutos milionários do horário nobre como publicidade gratuita para atribuir uma imagem de “solidariedade” a suas marcas.

Para mostrar que é possível nos organizar com uma outra lógica, no período de março a julho, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) organizou a doação de 2.300 toneladas de alimentos para comunidades em todo o país. A agricultura familiar é responsáveis por até 80% da produção de frutas e 60% das verduras consumidas pela população. O MST usa o mesmo modelo para produzir e vender alimentos abaixo do preço de mercado e ainda doar arroz, feijão, pinhão, erva-mate, fubá, farinha de milho, frutas e verduras em escala nacional durante a pandemia.

MST: 3 toneladas de alimentos doados durante a pandemia.

Mas não são apenas exemplos grandiosos em escala e que fizeram a diferença. Diversas iniciativas chamaram a atenção por desenvolver princípios anarquistas de apoio mútuo nas periferias, em ocupações urbanas e nas favelas, distribuindo alimentos e até fazendo higienização comunitária. Uma delas merece atenção especial pela dimensão e amplitude. Na favela Paraisópolis, uma das maiores de São Paulo, moradoras e moradores organizaram sua própria rede de atendimento de saúde, capacitando e equipando 240 moradores em 60 bases para atuarem como socorristas em casos de emergência. Além disso, realizaram a distribuição de refeições para apoiar quem estava doente, quem ficou em casa e não pode mais trabalhar e também quem não tinha opção além de sair para ganhar seu sustento.

Ação solidária do MOB no Morro dos Macados, Rio de Janeiro.
Membros da FOB em ação de higienização comunitária. “Só o Povo Salva o Povo.”

Solidariedade não é um serviço ou um “trabalho”, mas uma atividade essencial para todo movimento revolucionário ao longo da história. Pessoas educadas dentro do Capitalismo conhecem apenas a falsa escassez criada pela propriedade individual da terra. Em crises sanitárias ou econômicas, acreditam que a solução é uma competição ainda mais intensa por recursos, por dinheiro e até por saúde. Somente exemplos de ações diretas, voluntárias, solidárias e autônomas podem vencer a competição e o isolamento.

Como recordam camaradas da Federação das Organizações Sindicalistas Revolucionárias do Brasil (FOB), a Gripe Espanhola, última grande pandemia global, pode nos ensinar sobre valores anticapitalistas para a crise atual. Um século atrás, a Gripe Espanhola matou mais que os quatro anos de I Guerra Mundial e devastou as grandes cidades brasileiras, matando 35 mil pessoas, cujos corpos se amontoavam nas ruas e em valas comuns de cidades como Rio de Janeiro, então capital do país. Na mesma época, explodia a primeira grande greve geral, a Greve Geral de 1917, a Insurreição Anarquista de novembro de 1918 no Rio de Janeiro, ambas protagonizadas pelo movimento sindical anarquista que era hegemônico na época e conquistou importantes vitórias e direitos para toda a classe trabalhadora.

Nos manter saudáveis e com vida é uma tarefa ao mesmo tempo defensiva e ofensiva, como as demais formas de organização que vimos em ruas e bairros ocupados nos protestos contra o racismo e a polícia nos EUA (e nos movimentos de ocupações de praças e prédios nas últimas décadas). Precisamos de formas de cuidado que sejam solidários entre as classes oprimidas e hostis aos planos do Estado e do capital – não apenas uma muleta para a precariedade planejada e intencional de seus serviços. As torcidas organizadas já aprenderam e difundem essa lição ao promover a distribuição de cestas básicas ao mesmo tempo em que organizam protestos para barrar a extrema-direita nas ruas. Assim como o MST, que produz alimento saudável e barato enquanto enfrenta a maior concentração de terra do mundo e um dos maiores índices de violência no campo

Como qualquer um poderia prever, mesmo trabalhando para que pessoas tenham acesso à terra e pessoas no campo e na cidade tenham comida em casa, o MST segue sendo um dos principais alvos do governo federal e dos estados. Em Minas Gerais, o desalojo do assentamento Quilombo Campo Grande no dia 13 de agosto, deixou sem casa 450 famílias que ocupavam e produziam por mais de 20 anos em um terreno abandonado por seu proprietário que devia fortunas em impostos. Policiais Militares derrubaram a escola comunitária e incendiaram plantações, de forma semelhante às táticas do Estado Islâmico para expulsar agricultores de suas terras na Síria.

Famílias resistem ao despejo do Quilombo Campo Grande entre o fogo ateado pela polícia em suas plantações.

A história confirma que momentos de luta social radical, pandemias e a ação direta por solidariedade entre pobres e excluídos não são nenhuma novidade nessas terras. Agindo em solidariedade sob uma perspectiva revolucionária, coletivos e movimentos não pretendem apenas “preencher” o vazio dos serviços Estado nem muito menos servir como uma forma de caridade. Pretendemos mostrar que novas relações e princípios podem e devem surgir para solucionar os problemas causados pela tirania capitalista e superar a lógica que causa tais problemas.

Conslusão: O Velho Normal

Para nós, a política é outra coisa. São as palavras de Omama e dos xapiri que ele nos deixou. São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois são nossas mesmo. Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham consigo mesmos.

– Davi Kopenawa Yanomami, “A queda do céu”, 2016

“Quando engenheiros me disseram que iriam usar a tecnologia para recuperar o rio Doce, perguntaram a minha opinião. Eu respondi: “A minha sugestão é muito difícil de colocar em prática. Pois teríamos de parar todas as atividades humanas que incidem sobre o corpo do rio, a cem quilômetros nas margens direita e esquerda, até que ele voltasse a ter vida”. Então um deles me disse: “Mas isso é impossível”. O mundo não pode parar. E o mundo parou.”

Ailton Krenak, “O Amanhã Não Está à Venda”, 2020

O capitalismo não parou, mas vimos o impressionante efeito da breve desaceleração das atividades econômicas e industriais nas grandes cidades durante alguns momentos de isolamento social. Porém, não existe um “novo normal”. A normalidade não será tão “nova”, mas apenas uma reedição da velha: a corrupção, a ganância e as eternas ameaças do autoritarismo e das crises de um sistema condenado a fazer da crise sua forma de governo.

Ruas vazias em Brasília no início da pandemia.

Assistimos Donald Trump perder a eleição nos Estados Unidos para um outro racista abusador que tem uma policial como vice – e até janeiro de 2021 não especulamos se Trump vai tentar usar para resistir à derrota nas urnas nas cortes ou convocando milícias para promover mais violência nas ruas. Sua derrota afeta diretamente o futuro da política externa de Bolsonaro, sempre colocada como subserviente aos interesses imperialistas estadunidenses na América Latina.

Enquanto isso escândalos envolvendo Bolsonaro não param de surgir: o governo desviou 7,5 milhões de reais arrecadados para produzir testes da covid-19 uma organização da esposa do presidente e o vice-líder do governo no senado foi detido pela Polícia Federal com 33 mil reais na cueca durante uma busca que investiga o desvio de 8 milhões de reais desviados da compra de equipamentos para tratar pacientes com o coronavírus. O novo normal, com vírus ou com o populismo bolsonarista, se mostra muito semelhante toda uma era de normalidade de outros governos e crises. O mesmo serve para os negócios: 33 brasileiros se tornaram novos bilionários durante e os super ricos ampliaram suas fortunas a pandemia enquanto metade da população ativa está desempregada pela primeira vez na história do país. Pessoas morrem sem atendimento ou testes enquanto corruptos vivem vida de luxo financiada com dinheiro destinado ao combate ao coronavírus.

Como aponta o anarquista Uri Gordon, precisamos considerar os efeitos das perspectivas de colapso do capitalismo sobre nossas políticas radicais. Não apenas considerar que não mais temos pela frente “um mundo de prosperidade autogerida pela classe trabalhadora”, mas um enfrentamento das consequências de permitirmos que a burguesia espalhasse a tirania do capital pelo mundo por tanto tempo. Como aponta o autor, veremos três opções possíveis: “uma nova ordem social baseada na liberdade e igualdade, diferentes ordens sociais modificadas a partir da atual, mas que mantenham a opressão e a desigualdade, ou o colapso total de qualquer ordem social. Em outras palavras, um comunismo libertário de base, um eco-autoritarismo ou a guerra civil”. O perturbador é perceber que já vemos amostras desses três mundos futuros lutando pela sua existência nesse momento e bem debaixo de nossos pés.

A história não segue uma linha reta do progresso natural das sociedades e os espectros tirânicos, que alguns acreditam terem sido deixados para trás com a modernidade, assombram como o “bacilo da peste” que Albert Camus usou para nos advertir. A ironia em sua metáfora é justamente que não livramos o mundo nem de espíritos totalitários e obscurantistas, nem de pandemias infecciosas – ambos são ameaçadores da mesma forma que séculos atrás. E tanto o espectro fascista quanto as próximas epidemias já estão a caminho, segundo especialistas, podendo ser deflagradas por vírus contidos em biomas ameaçados, como a Amazônia. O desastre que vivemos e conecta todas as pessoas no mundo hoje não é um capítulo descontinuado na história. Ele é produto da exploração capitalista e do agronegócio, da domesticação e da devastação da vida animal e vegetal, do nível cósmico ao microbiológico. As forças autoritárias que aproveitam desse momento para refinar suas táticas e tornar mais brutais suas leis, são as mesmas que já vinham emergindo nas últimas décadas, agora e cada vez mais sob a sombra do populismo nacionalista de direita que engole todos os continentes. De políticos como Trump e Bolsonaro a grupos autoritários como o Estado Islâmico e as milícias fascistas, autoritários vão tentar dividir o mundo em uma guerra civil global nacionalista.

Não devemos nos apegar apenas às semelhanças de nossos chefes de estado. As Américas compartilham muito mais do que o nome de um traficante de escravos: a história de resistência dos povos ameríndios, escravizados, mulheres e toda classe trabalhadora é muito maior e tem muito a nos ensinar nesse momento. Ao contrário de grande parte da esquerda que, pareciam mais encantados com a imaginação de um suposto “novo normal” do que atenta às desordens que já estavam em curso, acreditamos que se não usarmos nossas habilidades e nossa capacidade de organização para fortalecer laços comunitários e nossa capacidade organizativa para a luta social, podemos ter certeza que autoritários fortalecerão seus mecanismos dentro e fora dos Estados. As ações solidárias entre comunidades e de combate ao fascismo nas ruas prefiguram cenários possíveis para toda luta antiautoritária de agora e do futuro, onde o meio pelo qual buscamos um novo mundo já mostra como deve ser esse novo mundo: quem se organiza em sua vizinhança e em sua terra para tirar dela sua comida e sua saúde não cairá junto aos centros do capitalismo em colapso global; quem promove a solidariedade não precisa entrar em uma competição em torno de recursos tornados escassos pela propriedade individual; quem organiza a autodefesa não ficará a mercê de polícias, exércitos e outros capangas do Estado e dos patrões para se defender de agressores fascistas e todo tipo de opressão racista ou patriarcal que encontrarmos.

A invasão europeia em 1500 gerou diversas pandemias mortais nas Américas – muitas intencionalmente usadas como armas biológicas pelos europeus. Provavelmente, povos Incas, Guaranis e muitos outros que habitavam essa terra também se perguntavam: “quando é que tudo vai voltar ao normal?” Cinco séculos depois, constatamos que não existe retorno ao que o Capitalismo destruiu. Viveremos por paisagens sempre marcadas por todos os mundos destruídos sobre essas terras, sempre rumo a um novo cenário. Se existe algo que podemos aprender com os povos originários das Américas é não esperar pelo “retorno” do que existiu, mas enfrentar e buscar superar o que veio para tornar pior a vida nesse mundo.

Aqui, lembramos do filme “Serras da Desordem” (2016) dirigido por Andrea Tonacci, que mistura ficção e documentário para acompanhar o índio Carapirú, sobrevivente do massacre do povo Awá-Guaja praticado por pistoleiros em 1978. Capirú passou a vagar sozinho por 10 anos percorrendo 2 mil quilômetros de distância de onde fugiu. A catástrofe evocada no filme é da imagem da perda de um mundo sem que outro possa vir e substituí-lo, deslocando-se em uma inadequação e falta de entendimento permanente. Em um momento do filme conseguimos ler a manchete de um jornal da época do encontro com Carapirú que diz: “Ele dança, pinta e ri. Mas está triste”.

A pandemia era algo que muitas pessoas esperavam como uma catástrofe anunciada, quando finalmente a peste chegou não veio da forma como havíamos imaginado. Afinal, o mundo não se comporta de acordo com nossas expectativas e aqueles que anseiam verdadeiramente a revolução disso deveriam (não) saber. Ainda não conseguimos e nem sabemos lidar com esse tempo, pois algo da vida anterior se perdeu para sempre, tentamos diariamente elaborar o confronto com o imponderável, as mortes de parentes, amigos, desconhecidos e fazer o luto, continuar nos empregos, sobreviver, abraçar alguém, lidar com a destruição e a angústia. Ainda tentamos estar juntos (ainda que muitas vezes separados), absorvendo as experiências de sujeitos e coletivos nesse processo, lutando e aprendendo a lutar até que possamos enfim respirar.

“O bacilo da peste não morre, nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis, na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada… viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”

– Albert Camus, “A Peste”.

[Leia do início: Parte 1 e Parte 2]